Rei e Pastor: O Senhor na visão e vivência dos salmistas (51)

A ética cristã é fortemente marcada pela certeza de que a nossa salvação é por graça. Pertence totalmente a Deus e, ao mesmo tempo, pela consciência da necessidade de sermos obedientes à Lei de Deus: “Um cristão medirá todas as suas ações por meio da lei de Deus, seus pensamentos secretos estarão sujeitos à sua divina vontade”, escreve Calvino.[1]

No entanto, é natural que os homens se inclinem prazerosamente para os ensinamentos que falam de suas virtudes e capacidade.[2]

Mente secular otimista

Em geral a mente secular é profundamente otimista em relação às suas potencialidades. Portanto, falar de pecado é algo que não encontra tão facilmente ouvidos prazerosos ou mesmo atentos. Daí, uma tendência comum é a tentativa de suavizar esta doutrina, mudando nomes, perspectivas ou simplesmente silenciando a respeito. Dentro de uma perspectiva mais filosófica, tenta-se driblar a real questão por meio da amenização da realidade com a apresentação do perdão, como se a noção de perdão, por si só, trouxesse alívio, enquanto a proclamação da realidade do pecado assustasse as pessoas, as afastassem da mensagem do Evangelho.

Pois bem, talvez isso seja assim no campo especulativo onde o pecado e o perdão são apenas conceitos vagos sobre os quais reflito por meio de uma análise fenomenológica, não me importando com a sua essência e fundamentação teológica.

Deste modo, o que importa é a percepção subjetiva do conceito, não a veracidade e implicações dos fatos. Neste sentido, recordo-me da declaração de Erasmo de Roterdã (1466-1536): “Por certo são numerosos e fortes os argumentos contra a instituição da confissão pelo próprio Senhor. Mas como negar a segurança em que se encontra aquele que se confessou a um padre qualificado?”.[3]

Crentes mimados

O cristão de hoje, em especial, tende a gostar de ser mimado no culto ficando numa posição confortável climatizada analisando com certa indiferença o que é dito, brincando com as coisas de Deus sem nenhum tipo de constrangimento ou culpa. Afinal, a graça de Jesus é maravilhosa!, complacentemente diz para si mesmo. 

            O homem é hábil em buscar “uma capa e subterfúgio para seu pecado”.[4] Ou, quem sabe, podemos nutrir até alguma noção sobre pecado, contudo, tendemos a pensar que isso é coisa praticada por pessoas ignorantes, deste modo, o conhecimento, por si só, nos liberta desta prática, supomos.

De fato, como pontua Horton,

A necessidade de misericórdia só é sentida depois que a realidade da culpa impressiona. (…) O grito pelo socorro da graça nunca cativará o ouvido enquanto não houver novamente um sentimento de culpa e desespero em nossas igrejas.[5]

            Por isso, entendemos que somente pela graça, por meio da Palavra, podemos ter uma clara consciência de nossa pecaminosidade ativa e concreta e de sua afronta a Deus.[6]

Ter consciência do pecado significa reconhecer o quão urgentemente precisamos de perdão. O Evangelho só se torna subjetivamente necessário – enquanto na realidade ele é urgentemente necessário – quando as pessoas percebem, por Deus, a sua necessidade. Enquanto isso não acontecer, ele soará sempre como algo descartável.

“Não podemos ser cristãos sem convicção do pecado. Ser cristão significa que compreendemos que somos culpados diante de Deus e que estamos sob a ira de Deus”, resume Lloyd-Jones.[7]

Maringá, 11 de outubro de 2019.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] João Calvino, A verdadeira vida cristã,São Paulo: Novo Século, 2000, p. 31.

[2]Cf. João Calvino, As Institutas,II.1.2.

[3] Erasmo, Opera Omnia, Leyde, 1704, v, col. 145-6, Apud Jean Delumeau, A confissão e o perdão: as dificuldades da confissão nos séculos XIII a XVIII, São Paulo: Companhia das Letras, 1991,p. 37. Em outro lugar, também indagou: “Por que se dar ao trabalho de confessar seus pecados a outro ser humano apenas pelo fato de ser um sacerdote, quando pode confessá-los diretamente a Deus?” (Apud Alister E. McGrath, Teologia, sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia cristã, São Paulo: Shedd Publicações, 2005,p. 84).

[4]João Calvino, O livro dos salmos,São Paulo: Parakletos, 2002, v. 3, (Sl 105.6), p. 671.

[5] Michael S. Horton, Os Sola’s de Reforma: In: J.M. Boice;  B. Sasse, Reforma Hoje,  São Paulo: Cultura Cristã, 1999, p. 123.

[6] “É mister graça e iluminação espiritual para crermos que nossos pecados são um problema sério aos olhos de Deus, conforme a Bíblia nos diz. Precisamos orar para que Deus nos torne humildes e dispostos a aprender, quando estudamos esse tema” (J.I. Packer, Vocábulos de Deus, São José dos Campos, SP.: Fiel, 1994, p. 63. Ver também p. 70s).

[7]D.M. Lloyd-Jones, O supremo propósito de Deus, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1996, p. 227.

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