Rei e Pastor: O Senhor na visão e vivência dos salmistas (61)

Somos peregrinos e estrangeiros

A vida cristã não é a de um transeunte em férias, sem compromissos, sem agenda definida. A vida cristã se adéqua melhor à figura do peregrino, sempre buscando o melhor caminho para chegar ao seu destino. O cristão está comprometido com o propósito de seu Senhor (Ef 1.4). Todo o seu coração deve estar voltado para isso.

Somos peregrinos, estrangeiros e hóspedes neste mundo.[1] Valendo-me de uma expressão de Tullian, diria que somos “estrangeiros residentes”.[2] É natural que haja uma tensão em nós. Somos imperfeitos, limitados, temos nossos anseios que, por vezes, tendem a ser maximizados em meio a aspectos da nossa cultura tão convidativos e, em certo sentido, confortáveis. É necessário discernimento para que não caiamos no mundanismo intelectual e vivencial, o que inviabilizaria totalmente a nossa possibilidade de influência em nosso meio. Não podemos permitir que a nossa mente e o nosso comportamento sejam regidos pela forma mundana e pagã de pensar e agir. Ingressaríamos, assim, num ateísmo prático ou funcional.

O nosso problema, por vezes, é que enquanto os padrões de Deus se parecem abstratos e distantes, estamos perfeitamente aculturados aos padrões de nossa cultura que nos assediam continuamente e, portanto, se tornam tão familiares como o personagem de uma novela que se torna símbolo de algum tipo de comportamento. “Para muitos de nós, os padrões deste mundo decaído se tornaram por demais familiares, ao mesmo tempo em que os caminhos de Deus parecem distantes e estranhos”, resume Tullian[3]

No entanto, não há destinação mais nobre e sublime do que a nossa. Somos chamados à glória de Cristo. Isso nos basta. Não como prêmio de consolação, mas, porque não temos vocação maior. O Senhor de todas as coisas, de toda a realidade visível e invisível, nos destina à glória de seu Filho amado.

Portanto, a santificação não é algo periférico, ou acidental na vida do crente, antes, é um propósito para que devamos nos concentrar com todas as nossas forças espirituais a fim de cumprir o plano de Deus para nós. Em síntese: a santificação é um imperativo expresso por Deus em sua Palavra para todos os seus filhos. A vida cristã é um desafio à santidade conforme o propósito de Deus. De fato, não pode existir vida cristã estagnada, acomodada. A vida cristã é um desafio à santidade, conforme o santo e benfazejo propósito de Deus.

Por isso, repito: na vida dos eleitos de Deus não há lugar para a acomodação no pecado. Deus nos chama à santidade conforme o seu propósito sábio, soberano, santo e eterno. Sendo assim, a santificação faz parte essencial da vida da Igreja.

O intenso combate da fé

Os crentes, mesmo com uma nova natureza, tendo sido regenerados, terão que combater o pecado enquanto viverem. Este combate será árduo. A Bíblia não poupa figuras para descrever esta luta com cores vivas. Todavia, a Palavra de Deus nos garante, com ênfase maior, a vitória que temos em Cristo. Daí a nossa certeza de que devemos lutar contra o pecado, sabedores que Deus é por nós nesta luta. Este é o bom combate da fé. Bom por causa de sua necessidade e objetivo. Conforme exorta Paulo a Timóteo: “Combate (a)gwni/zomai) o bom combate (a)gw/n) da fé” (1Tm 6.12).

Este combate (a)gwni/zomai) muitas vezes se manifestará de forma angustiante devido à sua intensidade e gravidade. Por isso a ideia embutida de esforço extremo (Lc 13.24; Cl 1.29; 4.12; 1Tm 4.10), empenho (Jo 18.36), fadiga (Cl 1.29) e, figuradamente, é ilustrada com o esforço de um atleta que compete (1Co 9.25).

Paulo orienta os gálatas evidenciando as duas forças operantes em nós, os regenerados: “Porque a carne milita contra o Espírito, e o Espírito, contra a carne, porque são opostos entre si; para que não façais o que, porventura, seja do vosso querer” (Gl 5.17).

A Confissão de Westminster diz:

Esta santificação é no homem todo, porém imperfeita nesta vida; ainda persistem em todas as partes dele restos da corrupção, e daí nasce uma guerra contínua e irreconciliável – a carne lutando contra o espírito e o espírito contra a carne (XIII.2). (Rm 7.19,23; Gl 5.17; Fp 3.12; 1Ts 5.23; 1Pe 2.11; 1Jo 1.10).

A santidade perfeita no céu encontra os seus primórdios na vida dos eleitos aqui na terra. Isto indica a nossa responsabilidade presente.

O Apóstolo João, instrui e consola, nos estimulando à esperança gloriosa que teremos no Senhor:

Amados, agora somos filhos de Deus, e ainda não se manifestou o que havemos de ser. Sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque havemos de vê-lo como ele é. E a si mesmo se purifica todo o que nele tem esta esperança, assim como ele é puro. (1Jo 3.2-3).

“Como na presente vida não atingiremos pleno e completo vigor, é mister que façamos progresso até à morte”, conclui Calvino.[4]

Cristo morreu por nós para que ele nos apresentasse “a si mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem cousa semelhante, porém santa e sem defeito” (Ef 5.27). Dentro desta perspectiva, a Igreja procura viver de forma santa para se encontrar com Cristo, conforme o seu propósito sacrificial. “Teremos de ser santos antes de morrer, se quisermos ser santos quando estivermos na glória”, exorta-nos Ryle (1816-1900).[5]

O desejo da Igreja deve ser de se encontrar com Cristo de forma íntegra e irrepreensível. Por isso ela é chamada a viver hoje na presença de Deus, estando sempre preparada para o seu encontro final e jubiloso com o Senhor Jesus. Este era o alvo da intercessão de Paulo: “O mesmo Deus da paz vos santifique em tudo; e o vosso espírito, alma e corpo sejam conservados íntegros e irrepreensíveis na vinda de nosso Senhor Jesus Cristo” (1Ts 5.23).

Como vimos, Jesus Cristo, que se santificou pela Igreja e que se entregou por ela, exerce o seu poder para apresentá-la com alegria a si mesmo, uma Igreja irrepreensível, diante do escrutínio da sua glória (Jd 24; Ef 5.25-27).

O nosso padrão de santidade não é um simples “melhoramento” diante dos padrões humanos, mas sermos conforme Cristo: fomos eleitos para Cristo, a fim de sermos “conformes à imagem” dele. Portanto, devemos ser seus imitadores, seguindo as suas pegadas (Vejam-se: Rm 8.28-30/Jo 13.15; 2Co 3.18; Ef 4.32; 5.1-2; Fp 2.5-8; 2Ts 2.13; 1Pe 1.13-16; 2.21). “A santidade não é negativa, é positiva; é ser como Deus (…). A santidade não significa simplesmente obter vitória sobre pecados particulares. É ser como Deus, que é santo”, exorta-nos Lloyd-Jones.[6]

São Paulo, 28 de outubro de 2019.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] “….os filhos de Deus, onde quer que estejam, não passam de hóspedes deste mundo. De fato, no primeiro sentido ele (Pedro), no início da Epístola, os chama de peregrinos, como transparece do contexto; aqui, porém, o que ele diz é comum a todos eles. Pois as concupiscências da carne nos mantêm enredados quando em nossa mente permanecemos no mundo e cremos que o céu não é nossa pátria; mas quando vivemos como forasteiros ao longo desta vida, não vivemos escravizados à carne” (John Calvin, Calvin’s commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1996 (reprinted), v. 22, (1Pe 2.11), p. 78). “Somos estrangeiros e peregrinos neste mundo, (…) não possuímos morada fixa senão no céu. Portanto, sempre que formos expulsos de algum lugar, ou alguma mudança no suceder, tenhamos em mente, segundo as palavras do apóstolo aqui, que não temos lugar definido sobre a terra, porquanto nossa herança é o céu; e quando formos cada vez mais provados, então nos preparemos para nossa meta final. Os que desfrutam de uma vida tranquila, comumente imaginam que possuem para si um repouso neste mundo. Portanto é bom que nós, que somos inclinados a esse gênero de pândega, que somos constantemente levados de um a outro lado, tão propensos à contemplação das coisas aqui de baixo, aprendamos a volver sempre nossos olhos para o céu” (João Calvino, Exposição de Hebreus,São Paulo: Edições Paracletos, 1997, (Hb 13.14), p. 391-392). “Quanto trazemos ainda conosco de nossa carne é algo que não podemos ignorar, pois ainda que a nossa habitação está no céu, todavia somos ainda peregrinos na terra” (J. Calvino, Exposição de Romanos,(Rm 13.14), p. 462). Vejam-se também: João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 3, (III.11), p. 166; D.M. Lloyd-Jones, O supremo propósito de Deus, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1996, p. 367.

[2]W. G. Tullian Tchividjian, Fora de moda, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 93.

[3] W. G. Tullian Tchividjian, Fora de moda, p. 39.

[4]João Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 4.15), p. 130.

[5]J.C. Ryle, Santidade, São José dos Campos, SP.: FIEL., 1987, p. 46.

[6] D. Martyn Lloyd-Jones, O combate cristão, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1991, p. 127.

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