Os eleitos de Deus e o seu caminhar no tempo e no teatro de Deus (55)

1.3.2.4. Um estudo de caso

 

Lucas descrevendo aspectos da rotina diária da Igreja Primitiva, diz: “E perseveravam na doutrina dos apóstolos” (At 2.42). Observemos primariamente que a Igreja estava bem fundamentada e perseverava não em qualquer doutrina (Mt 15.9); mas, sim, na doutrina dos apóstolos, que fora recebida de Cristo (At 1.21,22; Gl 1.10-12; 1Co 11.23ss; 15.1-3; 2Pe 1.16-21; 1Jo 1.1-4).

 

Os apóstolos, por sua vez, estavam alicerçados no próprio Cristo: “Edificados sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, sendo Ele mesmo, Cristo Jesus, a pedra angular”(Ef 2.20).

 

“A palavra dos apóstolos, primeiramente falada e posteriormente escrita, não apenas sustenta e garante a unidade da Igreja, mas também se espalhou por todo o mundo bem como em todas as épocas”, interpreta Bavinck.[1]

 

A despeito de suas limitações, que logo apareceriam, a Igreja Primitiva desfrutava de uma comunhão íntima, não artificial, gerada pelo Espírito Santo (At 2.42; 4.32/Ef 4.3/Fp 1.3-5). Jesus orou para que houvesse esta comunhão, a qual aponta de forma indicativa para a unidade amorosa do Pai com o Filho, e o amor divino manifesto em Cristo pelo Seu povo (Jo 17.20-23).[2] Vejamos agora, algumas manifestações desta unidade e comunhão.

 

1) Na vida devocional

a) No partir do pão

 Cremos que a expressão “partir do pão” (At 2.42) refere-se à Ceia do Senhor (Cf. At 20.7,11). A Igreja participava deste Sacramento lembrando a morte e ressurreição de Cristo, atestando publicamente a sua fé no regresso glorioso e triunfante de Cristo, “… até que Ele venha” (1Co 11.26).

 

Na Ceia temos uma representação real da unidade da Igreja em Cristo Jesus que deve ser preservada, conforme escreveu Calvino:

 

Ora, assim Seu corpo aí nos comunica o Senhor que um conosco inteiramente Se faça e nós com Ele. De fato, quando somente um corpo tenha Ele, do qual a todos partícipes nos faz, necessariamente, mercê de participação desta natureza, um só corpo também nós todo nos tornamos. Esta unidade representa-a o pão que no sacramento é exibido, o qual, como se de muitos grãos foi confeccionado, de tal modo entre si misturados que um do outro se não possa distinguir, nesta maneira convém também nós de tão grande concordância de espíritos termos sido unidos e ligados, que algo se não interponha de dissentimento ou divisão.[3]

 

Em uma antiga liturgia da Igreja Reformada Holandesa usada na Ceia do Senhor, apontando para a unidade que existe entre Cristo e a Sua Igreja e, entre os cristãos, os fiéis confessavam na Ceia:

 

Assim como, de muitos grãos, uma farinha é moída e um pão é assado e como, de muitas uvas, espremidas juntas, surge um só vinho, com todas as uvas misturadas juntamente, assim também todos aqueles que, pela fé, são incorporados em Cristo, devem ser, juntos, um só corpo.[4]

 

“A Ceia devia ser distribuída em reunião pública da Igreja, para nos ensinar sobre a comunhão em virtude da qual nos unimos todos em Jesus Cristo”, ensina João Calvino.[5]

 

Na Ceia o Senhor Se reúne pactualmente[6] com a Sua igreja e Sua igreja, como povo eleito e redimido, se reúne com o Seu Senhor (Ap 3.20). Nesta reunião revelamos a nossa irmandade sob o mesmo Senhor.

 

A Santa Ceia destrói barreiras sociais, culturais, raciais, políticas e econômicas. Todos estão unidos na mesma fé, comendo do mesmo pão e bebendo do mesmo vinho, que simbolizam o sacrifício de Cristo por nós. Esta comunhão é propiciada por Cristo que nos amou e Se entregou por nós (Gl 2.20).

 

Paulo desenvolve esta ideia em outros lugares:

 

16 Porventura, o cálice da bênção que abençoamos não é a comunhão (koinwni/a) do sangue de Cristo? O pão que partimos não é a comunhão (kkoinwni/a) do corpo de Cristo? 17 Porque nós, embora muitos, somos unicamente um pão, um só corpo; porque todos participamos do único pão. (1Co 10.16-17).

Pois, em um só Espírito, todos nós fomos batizados em um só corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres. E a todos nós foi dado beber de um só Espírito. (1Co 12.13).

 

Calvino, comentando sobre aquele que se ausenta da Ceia, perdendo o privilégio de participar da mesma, conclui: “…. porque ao fazê-lo se priva da comunhão da Igreja, na qual reside todo nosso bem”.[7]

 

b) Nas orações

 

A Igreja sentia prazer espiritual em participar do privilégio de poder falar com Deus em companhia dos irmãos; não havia reuniões seccionadas. A Igreja era um todo que perseverava unanimemente no templo e nas casas. (At 1.14; 2.42,46; 3.1; 12.5,12).

 

A Oração do Pai Nosso nos mostra a importância de orarmos em comunhão: “Pai nosso” e uns pelos outros: “O pão nosso”, “perdoa-nos as nossas dívidas”. De fato, a oração nos aproxima de Deus e, também do nosso próximo, sendo, portanto, um ato fundamental e vital da comunidade cristã.[8]

 

c) Louvando a Deus

 

O mesmo pode ser dito com respeito à adoração pública: “E estavam sempre no templo, louvando a Deus (Lc 24.53). A Igreja expressava a sua fé e gratidão louvando a Deus (At 2.47; Ef 5.18-20; Cl 3.16). O cântico deve ser uma expressão de nossa oração conforme ensinada nas Escrituras.

 

Bonhoeffer escreveu com sensibilidade: “O saltério é a oração da comunidade de Jesus Cristo; ele deve acompanhar o  Pai Nosso”.[9]

 

São Paulo, 20 de maio de 2019.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 

 *Leia esta série completa aqui.

 


[1]Herman Bavinck, Our Reasonable Faith, p. 535.

[2] 20 Não rogo somente por estes, mas também por aqueles que vierem a crer em mim, por intermédio da sua palavra;  21 a fim de que todos sejam um; e como és tu, ó Pai, em mim e eu em ti, também sejam eles em nós; para que o mundo creia que tu me enviaste.  22 Eu lhes tenho transmitido a glória que me tens dado, para que sejam um, como nós o somos;  23 eu neles, e tu em mim, a fim de que sejam aperfeiçoados na unidade, para que o mundo conheça que tu me enviaste e os amaste, como também amaste a mim(Jo 17.20-23).

[3]João Calvino, As Institutas, IV.17.38.

[4]Apud Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Espírito Santo, igreja e nova criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 4, p. 587.

[5]João Calvino, As Institutas, (2006), IV.18.7. “Além disso, nos exorta a abraçarmo-nos mutuamente em uma unidade tal como a que une e liga os membros de um mesmo corpo. Nenhum incentivo mais forte ou agudo poderia ser dado para mover e incitar entre nós uma caridade mútua do que o convite de Cristo, ao dar-se a nós, a não apenas seguir seu exemplo, dando-nos e entregando-nos mutuamente uns aos outros, mas porque ele se faz comum a todos, ele também nos faz um em si mesmo” (João Calvino,  Instrução na Fé, Goiânia, GO: Logos Editora, 2003, Cap. 29, p. 77).

[6]Veja-se: James Bannerman, A Igreja de Cristo: Um tratado sobre a natureza, poderes, ordenanças, disciplina e governo da igreja cristã, (v. 1 e 2), Recife, PE.: Editora Os Puritanos, 2014, p. 605.

[7] Juan Calvino, Breve Tratado Sobre La Santa Cena: In: Tratados Breves, Buenos Aires; México: La Aurora; Casa Unida de Publicaciones, 1959, p. 28.

[8]Veja-se: Eugene H. Peterson, O pastor contemplativo: voltando à arte do aconselhamento espiritual, Rio de Janeiro: Textus, 2002, p. 17,52-53.

[9] Dietrich Bonhoeffer, Orando com os salmos, Curitiba, PR.: Editora Encontrão, 1995, p. 15.

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