Os eleitos de Deus e o seu caminhar no tempo e no teatro de Deus (56)

1.3.2.4. Um estudo de caso

2) Na vida comunitária

 

a) Sensibilidade para com as necessidades dos irmãos

  Os irmãos mais abastados, sensibilizados com as necessidades dos mais pobres, “vendiam as suas propriedades e bens, distribuindo o produto entre todos, à medida que alguém tinha necessidade” (At 2.45. Leia também: At 4.32,36,37). O resultado imediato disto foi que “nenhum necessitado havia entre eles, porquanto os que possuíam terras ou casas, vendendo-as, traziam os valores correspondentes, e depositavam aos pés dos apóstolos; então se distribuía a qualquer um à medida que alguém tinha necessidade” (At 4.34,35). Esta ação refletia o profundo vínculo de comunhão e amor existente na comunidade primitiva.

 

Comenta Calvino:

 

“Repartir com os outros” tem uma referência mais ampla do que fazer o bem. Inclui todos os deveres pelos quais os homens se auxiliam reciprocamente; e é um genuíno distintivo do amor que os que se encontram unidos pelo Espírito de Deus comunicam entre si.[1]

 

Quando as viúvas dos helenistas (judeus de fala grega, provenientes da Dispersão), estavam sendo habitualmente[2] esquecidas na distribuição diária” (At 6.1), os apóstolos reconhecendo o problema e, ao mesmo tempo, não podendo absorver todas as atividades da Igreja, encaminharam à comunidade de forma direta, a eleição de “… sete homens de boa reputação, cheios do Espírito e de sabedoria, aos quais encarregaremos deste serviço” (At 6.3). Surgiu assim, o ofício de diácono na Igreja cristã, resolvendo o problema decorrente de uma injustiça involuntária.

 

Os apóstolos manifestaram aqui grande discernimento. Havia muito que fazer. A Igreja estava fundamentada e perseverava na doutrina dos apóstolos (At 2.42). O crescimento numérico de convertidos era evidente (At 6.1). Eles precisavam continuar ensinando, alimentando o rebanho. Isto era prioritário. Não poderiam se desviar de sua tarefa principal. Portanto, reconhecendo o problema e ao mesmo tempo não tendo como resolver tudo sozinho, encaminharam à comunidade, de forma direta, a eleição de “sete homens de boa reputação, cheios do Espírito e de sabedoria, aos quais encarregariam deste serviço” (At 6.3). A eleição foi feita. Os Apóstolos, então, se dedicaram mais especificamente a outra espécie de diaconia: “à oração e ao ministério (diakoni/a) da Palavra” (At 6.4), ofício para o qual foram especialmente chamados: Pregar a Palavra de Deus buscando sempre em tudo o discernimento em Deus.[3]

 

Alguns anos mais tarde, por volta de 46-48 AD., quando houve uma fome, causando como sempre, uma grande inflação,[4] “os discípulos, cada um conforme as suas posses, resolveram enviar socorro aos irmãos que moravam na Judéia, o que eles, com efeito, fizeram enviando-o aos presbíteros, por intermédio de Barnabé e de Saulo” (At 11.29,30). Posteriormente, Paulo levantou uma coleta entre os também pobres da Macedônia (2Co 8.1-4) e de Corinto, para os cristãos da Judéia (2Co 8 e 9; Rm 15.25,26).

 

A Igreja de Filipos, sensibilizando-se com a pobreza de Paulo, sem que ele nada pedisse, enviou-lhe ajuda pelo menos em três ocasiões (Fp 2.25; 4.14-20).

 

Quando Pedro estava preso, a Igreja orava incessantemente em favor dele (At 12.5).

 

Paulo chegou a Filipos, por volta do ano 49, em companhia de Silas, Timóteo e Lucas (At 16.1-3,10-12; 1Ts 1.1/2.2). Assim pôde pregar naquela colônia romana, evangelizando a Lídia, a vendedora de púrpura, e a todos os seus familiares (At 16.14,15). Poucos judeus residiam na cidade. O “lugar de oração” (At 16.13) indica a presença de alguns judeus, porém, em número inferior a dez homens, quantidade mínima considerada para se formar uma sinagoga. De acordo com a lei da Mishná, era permitido que dez homens judeus formassem, em qualquer lugar, uma sinagoga.[5] Havia cidades, inclusive, que possuíam várias. Estima-se que em Jerusalém houvesse cerca de 500 delas.[6]

 

Paulo expulsou o demônio de uma jovem adivinhadora, dando prejuízo aos seus senhores. Ele foi acusado, açoitado e preso (At 16.16-24). Na prisão testemunhou sua fé aos outros companheiros de cela. Teve também a oportunidade de pregar ao carcereiro que foi convertido juntamente com os seus familiares (At 16.25-34).

 

Quando as autoridades descobriram que Paulo era cidadão romano, reconheceram que haviam transgredido a lei visto que o haviam prendido e açoitado sem que houvesse um processo formal contra ele (At 16.35-38).

 

Libertos, Paulo e Silas vão embora. Lucas, ao que parece, permaneceu em Filipos (Compare: At 16.10,12,13 /At 16.40; 17.1). Quando Paulo e Silas partem, ao que parece, a Igreja ficou se reunindo na casa de Lídia (At 16.40). Ao longo dos anos os crentes filipenses permaneceram em contato com Paulo, auxiliando-o em seu ministério, provendo recursos para as suas necessidades (2Co 11.9; Fp 1.5; 2.25,30; 4.10,14-19). Paulo visitou a Igreja em, pelo menos, duas outras ocasiões antes de sua prisão em Jerusalém e a redação da carta destinada à Igreja (2Co 2.12,13; 7.5-7; At 20.1,3,6).

 

Paulo lhes escreve: Dou graças ao meu Deus por tudo que recordo de vós, fazendo sempre, com alegria, súplicas por todos vós, em todas as minhas orações” (Fp 1.3-4). Paulo diz dar graças a Deus (eu)xariste/w) por tudo que recordava daquela Igreja.

 

No Verso 5, ele explicita o motivo primeiro: “pela vossa cooperação (koinwni/a) no evangelho” (5). A palavra Koinwni/a[7] é derivada de koino/j, cuja ideia básica, bem como de todos os seus cognatos (koino/w, koinwno/j, koinwne/w, koinwni/a e koinwniko/j), é de “comum”, “comunhão”, “companheirismo”, “compartilhar”, etc.

 

Koinwni/a no Novo Testamento denota uma comunhão participante independentemente do conhecimento pessoal (Rm 15.26. ARA: “coleta”). Esta comunhão é resultante da comunhão que todos temos com o Pai e com o Filho (1Jo 1.3,6,7) e da comunhão do Espírito (Fp 2.1). A nossa comunhão com Cristo antecede ao tempo, visto que fomos eleitos nele antes da fundação do mundo (Ef 1.4).

 

É um privilégio poder socorrer, manifestar de forma liberal essa comunhão para com os nossos irmãos necessitados (2Co 8.4. ARA: “participarem”; 2Co 9.13. ARA: “contribuís”). “Koinõnia é o espírito do compartilhar gracioso em contraste com o espírito egoísta que deseja obter tudo para si”.[8] Esta prática é agradável a Deus: “Não negligencieis igualmente a prática do bem e a mútua cooperação (koinwni/a); pois com tais sacrifícios Deus se agrada” (Hb 13.16).

 

É necessário, contudo, que não nos iludamos, a união não era perfeita em Filipos.  Paulo os orienta constantemente quanto à necessidade de estarem unidos (Fp 1.27; 2.1-4; 4.2,3,5,7,9), contudo, a Igreja, que não era e nem poderia ser perfeita, demonstra uma cooperação espiritual, apesar das dificuldades inerentes à sua própria condição de pecadores egoístas…

 

Paulo reconhece a cooperação daqueles irmãos no Evangelho que se manifestava de forma concreta – mais recentemente – na ajuda que lhe prestara por meio de Epafrodito. A cooperação era constante desde o início (Fp 1.5). Não dependia simplesmente de estar entusiasmado, ou de uma alegria circunstancial, antes, era o resultado de uma união de espírito em Cristo Jesus. O nosso serviço deve ser feito de forma consciente do seu objetivo e a quem estamos servindo. A Igreja de Filipos cooperava no Evangelho, certamente, entendendo ser ele o poder de Deus para a transformação de vidas (Rm 1.16). Podemos descrever isto:

 

a) Lídia que fora convertida por intermédio da pregação de Paulo, abriu as portas de sua casa para hospedá-lo juntamente com Silas (At 16.15). Após a partida de Paulo e Silas, a igreja parece ter se centralizado em sua casa (At 16.40).

b) O carcereiro cuida com amor e carinho dos ferimentos de Paulo e Silas, fazendo-os compartilhar festivamente de sua mesa (At 16.33,34).

c) Na cidade seguinte, Tessalônica, Paulo já pode usufruir da comunhão participante dos filipenses que supriu de modo eficiente as suas necessidades (Fp 4.16).

d) Em Corinto, Paulo que não queria ser pesado aos irmãos daquela cidade, recebeu com alegria o suprimento dos filipenses (Fp 4.15/2Co 11.9).

 

Aqueles irmãos eram perseverantes em sua demonstração fraterna desde o início no Evangelho.

 

Estes são apenas alguns dos exemplos que refletem a comunhão espiritual da Igreja Primitiva. O curioso é que, em muitos casos, os irmãos nem sequer se conheciam, entretanto, entendiam de modo correto que todos eles faziam parte do mesmo corpo de Cristo (1Co 12.13).

 

São Paulo, 20 de maio de 2019.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 

 

 *Leia esta série completa aqui.


[1]João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 13.16), p. 395.

[2] O verbo paraqewre/w no imperfeito, sugere a ideia de algo frequente e habitual. Este verbo só ocorre aqui (At 6.1) no Novo Testamento.

[3] Stott lamentando a falta de seriedade moderna para com a Palavra, diz que se adotássemos esta mesma agenda apostólica, “…. envolveria para a maioria de nós, uma reestruturação radical do nosso programa e do cronograma, inclusive uma delegação considerável de outras responsabilidades aos líderes leigos, mas expressaria uma convicção verdadeiramente neotestamentária a respeito da natureza essencial do pastorado” (John Stott, Eu Creio na Pregação, São Paulo: Editora Vida, 2003, p. 132).

[4] Veja-se: Joaquim Jeremias, Jerusalém nos Tempos de Jesus, São Paulo: Paulinas, 1983, p. 184ss.

[5]Veja-se: Philip Schaff, History of the Christian Church, Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1996, v. 1, p. 456.

[6]Broadus B. Hale, Introdução ao Estudo do Novo Testamento, Rio de Janeiro: JUERP., 1983, p. 17. Variando as estimativas entre 394 e 480 (Cf. Philip Schaff, History of the Christian Church, Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1996, v. 1, p. 457).

[7] Koinwni/a * At 2.42; Rm 15.26; 1Co 1.9; 10.16 (2 vezes); 2Co 6.14; 8.4; 9.13; 13.13; Gl 2.9; Ef 3.9 (aqui, somente no Textus Receptus; em Scholz e Tischendorf: oi)konomi/a) Fp 1.5; 2.1; 3.10; Fm 6; Hb 13.16; 1Jo 1.3,6,7.

[8]W. Barclay, Palavras Chaves do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1988, p. 122.

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