O Senhor e seus pensamentos inatingíveis: a angústia do profeta

“Quão grandes (ld;G”) (gadal), SENHOR, são as tuas obras! Os teus pensamentos (hb’v’x]m;) (machashabah) (desígnios, intentos) que profundos!” (Sl 92.5).

Os seus desígnios, por serem verdadeiros e provenientes do Deus santo, sábio, justo e soberano, são inumeráveis, profundos e eternos: “O conselho do SENHOR dura para sempre; os desígnios (hb’v’x]m;) (machashabah) do seu coração, por todas as gerações” (Sl 33.11).

Aqui já nos deparamos com algo grandioso demais para nós. Pensamos sempre em termos de causa e efeito e, dentro das categorias tempo e espaço repletos de circunstâncias geográficas, culturais, sociais e pessoais. Curiosamente foi dentro dessas categorias tão importantes para nós, que Deus se revelou.

O salmista nos diz que os desígnios de Deus permanecem para sempre. Ou seja: muito do que podemos ver nessa vida não esgota nem mesmo aspectos do seu governo e propósito. Por isso, muitas vezes nos angustiamos com o que consideramos passividade, indiferença, demora de Deus ou, por presumir um fim que julgamos ser o melhor dentro de nossa lógica bastante consistente, pensamos.

Não foi justamente isso que enfrentou o profeta Habacuque?

Tempo e espaço determinam muitas de nossas prioridades conforme as circunstâncias. Em boa parte das vezes tais circunstâncias são elaboradas pela mistura de ambos os elementos conforme a nossa fórmula caseira de relacionar tempo e espaço.

Por isso, em nossa incompreensão e incertezas diante desses elementos, o tempo pode nos parecer, como ao angustiado poeta argentino Jorge L. Borges (1899-1986), uma “ilusão”¹. No entanto, sabemos, que ele é implacável em sua caminhada e transitoriedade. Mas, não nos esqueçamos, está sob a direção de Deus.

Quando estamos apressados, tudo parece demorado. Quando estou com tempo disponível, as distâncias ficam mais curtas. O relógio, em nossa mente, pode ser romanticamente domesticado, mas, o que de fato não ocorre concretamente.

Conforme a nossa base de avaliação comparativa circunstancial, posso dizer que algo é longe ou perto. Rápido ou demorado. Já observaram como uma viagem de duas horas é longa a partir, digamos, da primeira hora de percurso? Já uma viagem de 8 horas, você nem sequer considera a primeira hora porque ainda faltam muitas outras.

E a refeição servida no restaurante? Faz diferença o tempo de espera quando você está com fome, sozinho e, sem celular. Aliás, este é imprescindível. A sua percepção é diferente se estiver tranquilo, sem muita fome e com uma boa prosa ou conversando no zap? Mais tarde você conversará pelo zap com quem agora está com você à mesa…

Da mesma forma, como temos uma dimensão mais imediatamente material da realidade, tendendo a circunscrevê-la a isso apenas, os propósitos de Deus podem nos parecer demorados ainda que estejam perfeitamente sob à sua preservação, domínio e controle.

O profeta Habacuque viveu numa época extremamente difícil. O seu livro foi escrito por volta do ano 605 a.C., durante o reinado de Eliaquim, filho de Josias. Nesse período, o reinado de Eliaquim era apenas simbólico, pois quem de fato mandava em Israel era o rei egípcio, Faraó-Neco, quem inclusive destronou o antigo rei, irmão de Eliaquim, Jeocaz – levando-o para o Egito aonde viria falecer (2Rs 23.34) –, colocando Eliaquim no enfraquecido trono e, como sinal do seu poder, mudou o nome de Eliaquim para Jeoaquim.

O reinado de Jeoaquim (609-598 a.C.) ocorreu durante o ministério de Jeremias e Habacuque. Jeoaquim para pagar os tributos exigidos por Faraó, impôs pesados impostos sobre o povo de Israel (2Rs 23.35), construiu também prédios luxuosos com trabalho escravo, sendo descrito por Jeremias como um homem vaidoso, egoísta, ambicioso, violento e corrupto (Jr 22.13-18). O seu reinado foi marcado pela decadência moral e espiritual do povo, sendo as reformas feitas pelo seu pai Josias, gradativamente esquecidas.

Nesse contexto encontramos o profeta Habacuque [“Abraço ardente” (?)]², um fiel profeta de Deus, que tinha perguntas profundas, as quais revelavam a sua preocupação com o povo de Judá, bem como o desejo de entender a dura realidade dos fatos. Nesse livro nos deparamos com o profeta em conflito com a própria mensagem de Deus: Habacuque demonstra ter dificuldade em compreender o desígnio de Deus.

O povo estava em pecado: Violência, contenda, litígio, afrouxamento da lei, injustiça etc. (Hc 1.3-4). Ele orava constantemente ao Senhor, que aparentemente não o ouvia. A não percepção da manifestação de Deus causa-lhe angústia e incompreensão (Hc 1.2-3).

Agora Deus se revela a Habacuque, determinando a sua “sentença” [()af&am) (masã’), “oráculo”, que tem o sentido metafórico de “peso” e “fardo”. Temos o anúncio de julgamentos pesados contra o povo e o poder imperial (Hc 1.1). O fato de essa palavra ser usada já no primeiro verso, à semelhança de Naum (Na 1.1) e Malaquias (Ml 1.1/Zc 12.1), indica a severidade da mensagem. Essa forma figurada de falar a respeito de Israel não era estranha ao Antigo Testamento (Nm 11.11,17; Dt 1.12).

Contudo, a resposta de Deus foi por demais surpreendente para o profeta. Deus mostra que não está indiferente aos acontecimentos, mas, que levantaria os caldeus para oprimir aqueles opressores descritos pelo profeta (Hc 1.5-11). Aqui Habacuque se depara com a questão da santidade de Deus e a prevalência do mal. Como Deus, sendo justo, poderia castigar os injustos por intermédio de outros mais injustos ainda? O profeta desabafa:

Não és tu desde a eternidade, ó SENHOR, meu Deus, ó meu Santo? Não morreremos. Ó SENHOR, para executar juízo, puseste aquele povo; tu, ó Rocha, o fundaste para servir de disciplina. Tu és tão puro de olhos, que não podes ver o mal e a opressão não podes contemplar; por que, pois, toleras os que procedem perfidamente e te calas quando o perverso devora aquele que é mais justo do que ele? Por que fazes os homens como os peixes do mar, como os répteis, que não têm quem os governe?  A todos levanta o inimigo com o anzol, pesca-os de arrastão e os ajunta na sua rede varredoura; por isso, ele se alegra e se regozija. Por isso, oferece sacrifício à sua rede e queima incenso à sua varredoura; porque por elas enriqueceu a sua porção, e tem gordura a sua comida. Acaso, continuará, por isso, esvaziando a sua rede e matando sem piedade os povos? (Hb 1.12-17).

Mesmo que não possamos ter clareza quanto ao propósito de Deus em todos os atos da história, não podemos duvidar dele. Deus sustenta e controla o seu povo e os seus inimigos. Não há força neste mundo que não esteja sob a sua preservação e domínio. O fato de não entendermos perfeitamente os propósitos de Deus, é inteiramente natural afinal, Deus é o Senhor Eterno e Onisciente; os caminhos de Deus não são os nossos caminhos; a sua mente é inescrutável (Is 55.8,9; Rm 11.33).

A nossa mente finita não consegue compreender exaustivamente as perfeições de Deus. O limite de nosso conhecimento é determinado pela revelação. A revelação de Deus também não é completa no sentido de abarcar total e exaustivamente o ser de Deus. Porém, Deus se revela como de fato é. Portanto muitíssimos de seus atos soberanos nos escapam. O finito não pode comportar o infinito! No entanto, podemos conhecer a Deus genuína e verdadeiramente à luz de sua autorrevelação. Podemos conhecer a Deus genuinamente, porém, não exaustiva e absolutamente.

Deus é soberano na utilização dos seus meios. Ele usa sábia e soberanamente os meios que quer. Aqui ele usou os caldeus para disciplinar a Judá (Hc 1.12/Is 10.5-6). Deus é senhor dos meios e dos fins!

Os caldeus por certo atribuíam as suas vitórias aos seus poderosos feitos (Hc 1.11,15,16); eles não entendiam que por meio de sua própria e voluntária maldade havia a direção de Deus para o fim proposto. Os seus caminhos são com frequência incompreensíveis à nossa razão. As nossas categorias são finitas e, portanto, limitadas.

Pois eis que suscito os caldeus, nação amarga e impetuosa, que marcham pela largura da terra, para apoderar-se de moradas que não são suas. (Hc 1.6).

Não és tu desde a eternidade, ó SENHOR, meu Deus, ó meu Santo? Não morreremos. Ó SENHOR, para executar juízo, puseste aquele povo; tu, ó Rocha, o fundaste para servir de disciplina. (Hc 1.12).

Os caminhos de Deus são eternos. (Hc 3.6).

Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos, os meus caminhos, diz o SENHOR. (Is 55.8).

O livro do profeta Habacuque reflete o conflito entre a fé do profeta e a amarga experiência vivida. Como Deus pode permitir isso? Esta é a questão do profeta.

O livro objetiva mostrar que ainda que Deus tivesse usado uma nação pagã para disciplinar o seu povo, mais tarde, Deus mesmo destruiria os caldeus devido a sua idolatria e perversidade extrema, resultante de sua própria deliberação.

No entanto, não devemos nos precipitar. A aparente demora de Deus em nos atender visa nos estimular à prática perseverante da oração. Aprendo a perseverar perseverando.

Deus tem o domínio preciso de todas as coisas. Ele é o senhor do tempo e da eternidade; do espaço e do infinito.

Habacuque começa o livro trazendo um “fardo” (Hc 1.1): a sentença de Deus. Depois revela a sua incompreensão diante dos fatos que estão ocorrendo. Até que ele enquadra corretamente o problema dentro daquilo que tinha certeza absoluta: Deus é Todo-Poderoso, Eterno, Autossuficiente e Santo. O profeta então orou, colocando diante de Deus toda a sua perplexidade. Descansou em Deus e aguardou atentamente a sua resposta: tirou os olhos do problema e volveu-os para Deus (Hc 2.1). Deus lhe responde. Agora Habacuque mais maduro em sua fé, encerra o livro com uma palavra de confiança renovada, reafirmada, mesmo em meio a possíveis provações.

Ainda que a figueira não floresça, nem haja fruto na vide; o produto da oliveira minta, e os campos não produzam mantimento; as ovelhas sejam arrebatadas do aprisco, e nos currais não haja gado, todavia, eu me alegro no SENHOR, exulto no Deus da minha salvação. O SENHOR Deus é a minha fortaleza, e faz os meus pés como os da corça, e me faz andar altaneiramente. (Hc 3.17-19).

Aprendamos com o profeta essa lição: conheçamos o nosso Deus, entreguemos-lhe a nossa perplexidade e angústia, seja ela qual for, e aguardemos confiantes a sua resposta: Ele certamente responderá! Posso não saber o que me espera amanhã, porém, não posso ter dúvida do que me espera na eternidade. Um detalhe: o amanhã, como todos os nossos dias, está envolvido no propósito eterno de Deus.

O Deus incompreensível em sua extensão, nos ama – disso sabemos bem –, por isso, cuida graciosa, pedagógica e paternalmente de nós. Os seus caminhos são eternos! Os seus pensamentos são inatingíveis. Que Deus nos capacite a nele confiar. Afinal, esse Deus é o nosso pastor. De nada mais precisamos. Amém

São Paulo, 08 de novembro de 2018.

Rev. Hermisten M.P. Costa

 


¹Jorge L. Borges, História da Eternidade, Buenos Aires: Emecé Editores, (6. impresión), 1969, p. 29.

²O significado do seu nome é incerto. Pode ser derivado de uma palavra hebraica que significa abraço (“abraçar” ou “ser abraçado”) ou, “lutador”, conforme tradução de Jerônimo, considerando que Habacuque lutou com Deus. Tem sido especulado também que a derivação do seu nome poderia vir do acadiano, designando alguma planta ou árvore denominada pelos assírios de hambaqûqu. No entanto, esta planta ainda não pôde ser identificada. (Para maiores detalhes, veja-se: P.A. Verhoef, Habacuque: In: Merrill C. Tenney, org. ger., Enciclopédia da Bíblia, São Paulo: Cultura Cristã, 2008, v. 2, p. 11-12 (especialmente).

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