Eu lhes tenho dado a tua Palavra” (Jo 17.1-26) (99)

A despeito da irracionalidade moderna, inclusive entre nós ditos evangélicos que temos ignorado não impunemente as grandes batalhas espirituais, acadêmicas e consequentemente éticas, com as quais nos deparamos[1] – o desafio de Deus para nós não é para nos tornarmos irracionais ou ignorantes, antes é para que submetamos a nossa inteligência à Palavra.

Aqui não se pede nenhum sacrifício lógico-racional, antes o que se requer, é a humildade para reconhecer a nossa limitação diante da majestosa sabedoria de Deus (Rm 11.33-36), exercitando deste modo, por graça, a humanamente louca sabedoria de Deus em nossa vida, reconhecendo a nossa suficiência não em nossa inteligência ou valores, mas em Deus.

A pregação do Evangelho revela a insensatez de nossa sabedoria e a verdadeira sabedoria de Deus, que, em princípio, parece loucura. Isto é altamente ofensivo aos sábios deste mundo tão convictos de seus conhecimentos e métodos.

Calvino (1509-1564) comenta:

O fato de que o Evangelho é aroma de morte para os ímpios não vem tanto de sua própria natureza, mas da própria perversidade humana. Ao determinar um caminho de salvação, ele elimina a confiança em quaisquer outros caminhos.[2]

À frente:

Toda verdade proclamada referente a Cristo é completamente paradoxal pelo prisma do juízo humano. Entretanto, o nosso dever é prosseguir em nossa rota. Cristo não deve ser suprimido só porque para muitos ele não passa de pedra de ofensa e rocha de escândalo. Ao mesmo tempo que ele prova ser destruição para os ímpios, em contrapartida ele será sempre ressurreição para os fiéis.[3]

A pregação fundamenta-se no princípio de que a Palavra de Deus é infalível e que Deus, continua a falar por meio dela. Ou seja: A voz de Deus não se esgotou quando o cânon foi reconhecido.[4] Deus permanece falando por intermédio das Escrituras e por meio de seus servos que expõem  esta Palavra com fidelidade. O Deus que falou no passado continua a falar hoje.[5]

A responsabilidade da Igreja é proclamar pura e simplesmente o Evangelho de Cristo: “Porque não ultrapassamos os nossos limites como se não devêssemos chegar até vós, posto que já chegamos até vós com o evangelho de Cristo” (2Co 10.14).

Deus opera poderosamente por meio da sua Palavra, não de nossos argumentos, por melhores que sejam. Por isso, o nosso testemunho deve ser avaliado à luz da Palavra, em submissão ao Espírito. A nossa compreensão e aceitação da mensagem do Evangelho não indica a nossa superioridade ou inteligência, antes manifesta a soberana graça de Deus em salvar aqueles que são considerados irrelevantes diante do mundo e, que, como todos os demais, por si só jamais creriam. Portanto, não há lugar para vanglória, mas sim, gratidão a Deus (1Co 1.29).

Paulo faz um contraste entre a sua aparente fraqueza, conforme seus inimigos diziam (2Co 10.10),[6] com a força de suas armas, que eram poderosas não por si mesmas, mas “poderosas em Deus” (2Co 10.4); portanto, “o poder de suas armas depende de Deus e não do mundo”, destaca Calvino.[7]

Pedro indicando o poder e a perenidade da Palavra, diz:

Fostes regenerados não de semente corruptível, mas de incorruptível, mediante a palavra de Deus (lo,gou zw/ntoj qeou/),[8] a qual vive e é permanente. Pois toda carne é como a erva, e toda a sua glória, como a flor da erva; seca-se a erva, e cai a sua flor; palavra do Senhor (r`h/ma kuri,ou),[9] porém, permanece eternamente. Ora, esta é a palavra que vos foi evangelizada. (1Pe 1.23-25).

Relembra também que a sua mensagem foi justamente esta: “Ora, esta é a palavra que vos foi evangelizada(r`h/ma to. euvaggelisqe.n)(1Pe 1.25).

Evangelizar significa pregar a Palavra de Deus. Não somos senhores do texto, antes, seus servos.[10] Não podemos adulterar o texto. (2Co 4.2).  Somos chamados a expor as Escrituras em sua inteireza e profundidade, não as nossas opiniões.[11] Quando expomos a Palavra devemos estar solidamente convencidos de que aquela mensagem é proveniente do texto.

A evangelização consiste na exposição da Palavra de Deus e na sua aplicação às necessidades ontológicas e existenciais de nossos ouvintes.[12]

Somente pela Palavra de Deus, que permanece em nós, poderemos vencer o maligno:

Filhinhos, eu vos escrevi, porque conheceis o Pai. Pais, eu vos escrevi, porque conheceis aquele que existe desde o princípio. Jovens, eu vos escrevi, porque sois fortes, e a palavra de Deus (lo,goj tou/ qeou/) permanece em vós, e tendes vencido o Maligno. (1Jo 2.14).

Sem a Palavra a nossa luta seria apenas uma rendição incondicional. Neste confronto, sem a Palavra, estaremos sempre totalmente despreparados.

Maringá, 16 de julho de 2020.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]“A igreja está hoje perecendo por falta de pensamento, não por excesso do mesmo” (J.G. Machen, Cristianismo y Cultura, Barcelona: Asociación Cultural de Estudios de la Literatura Reformada, 1974, p. 19). “Quero também mostrar que os cristãos não precisam ter medo de pensar; que,  na verdade, os cristãos têm vantagens sobre não-cristãos quando se trata de usar o intelecto”  (Gene Edward Veith, Jr., De Todo o Teu Entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 13). Vejam-se também as oportunas observações de Craig. William L. Craig,  A Verdade da Fé Cristã, São Paulo: Vida Nova, 2004. p. 11-16.

[2]João Calvino, Exposição de Romanos, São Paulo: Paracletos, 1997, (Rm 1.16), p. 58.

[3]João Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 6.1), p. 201-202.

[4] Quanto à questão do reconhecimento do cânon, veja-se: Hermisten M.P. Costa, A Inspiração e Inerrância das Escrituras, 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2008.

[5] Veja-se uma boa exposição deste ponto in: John R.W. Stott, Eu Creio na Pregação, São Paulo: Editora Vida, 2003, p. 106ss.

[6]“As cartas, com efeito, dizem, são graves e fortes; mas a presença pessoal dele é fraca, e a palavra, desprezível” (2Co 10.10).

[7] João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2Co 10.4), p. 202.

[8] Na realidade a tradução seria a “Palavra viva de Deus”

[9] Contrastando o uso de r(h=ma e lo/goj, Betz  (1917-2005) diz que “Ao passo que logos muitas vezes pode designar a proclamação cristã como um todo no NT, rhêma usualmente diz respeito a palavras e expressões vocais individuais: o homem terá que prestar contas por toda palavra injusta (Mt 12.36); Jesus não respondeu palavra alguma a Pilatos (Mt 27.14); os seres celestiais falam palavras inefáveis (2Co 12.4)” (O. Betz, et. al. Palavra: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, v. 3, p. 419). Ilustrando esta tese, podemos perceber que na passagem que estamos analisando, Pedro está citando o texto de Isaías 40.6-9.

[10] “O pregador é chamado para ser servo da Palavra” (R. Albert Mohler, Jr., A Primazia da Pregação. In: Ligon Duncan, et. al., Apascenta o meu rebanho, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 17). “O pregador deve servir ao texto….” (Bryan Chapell, Pregação Cristocêntrica, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002, p. 20).

[11]“O dever do homem que ocupa o púlpito não é proferir as suas palavras, mas ser bíblico. Cabe-lhe expor esta Palavra porque é a Palavra de Deus, e lhe cabe falar a palavra que o Espírito Santo o habilita a falar” (D.M. Lloyd-Jones, Seguros Mesmo no Mundo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2005 (Certeza Espiritual: v. 2), p. 19). “Não estou aqui para ventilar minhas próprias ideias e teorias, porém para expor a Palavra de Deus” (D.M. Lloyd-Jones, O Caminho de Deus não o nosso, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2003, p. 67).

[12]Vejam-se: A.R. Vinet, Pastoral Theology; or, The Theory of the Evangelical Ministry, 2. ed. New York: Ivison, Blakeman, Taylor & Co., 1874, p. 189; D.M. Lloyd Jones, O Combate Cristão, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1991, p. 98.

One thought on “Eu lhes tenho dado a tua Palavra” (Jo 17.1-26) (99)

  • 21 de julho de 2020 em 08:44
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    Uma questão primordial , para os dias atuais onde ouço aberrações
    nos veiculos de informações de ” Igrejas… Pessoas que cometem erros crassos da Palavra de Deus onde o,Reverendo Dr. Hermisten Maia, enfatizou, claramente que somos
    servos do Senhor, logo devemos ser fidedigno de acordo com as Santas Escrituras .

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