Eu lhes tenho dado a tua Palavra” (Jo 17.1-26) (98)

Aos judeus que queriam ver sinais (shmei=on) e aos gregos que queriam sabedoria,[1] Paulo anunciava a Cristo crucificado (1Co 1.22-23). A mensagem da cruz nunca soou como algo simpático aos ouvidos que já dispunham de seu filtro cultural e teológico. Por isso, ela tem um duplo significado: Para os judeus, soava como escândalo[2] e pedra de tropeço visto que esta realidade não era compatível com as suas crenças; para os gregos, era loucura.[3] No entanto, esta era a mensagem de Paulo (1Co 1.22-23).

“A base da ofensa causada por Jesus é a cruz (1Co 1.23), que anula toda a sabedoria humana, e exclui toda a cooperação humana para a salvação”, analisa Guhrt.[4]

O que soava como loucura e escândalo revelava da glória de Cristo: Na cruz a glória do Filho é manifestada.

Hendriksen (1900-1982) comenta:

Jesus é glorificado quando o resplendor de seus atributos é demonstrado. Certamente que na cruz de Cristo e também na coroa divisamos essa glória. Na cruz, vista como sendo a culminação e o clímax de toda a obra da redenção, pela qual Ele salva Seu povo, o Filho manifesta Sua perfeita obediência, Seu infinito amor pelos pecadores e Seu poder sobre o príncipe deste mundo. Essa obediência, esse amor e esse poder redundam em glória para si mesmo. E também o faz a gratidão da multidão salva pela dádiva da salvação eterna.[5]

Paulo mostra que a pregação da Palavra foi o método prazerosamente estabelecido por Deus para alcançar os seus: Aprouve (eu)doke/w)[6] a Deus salvar aos que creem, pela loucura (mwri/a)[7] da pregação” (1Co 1.22). 

Pelo fato de os homens não conseguirem entender salvadoramente a mensagem do Evangelho dentro do seu quadro de referência naturalista ou simplesmente deísta, consideram-na loucura: Tudo que não se compatibiliza ao seu padrão de pensamento é escândalo (pedra de tropeço) ou loucura. Isto não significa que o homem natural, não regenerado, não possa entender a mensagem do Evangelho e até mesmo explicá-la a outros; o problema é que esta mensagem não faz sentido espiritual para ele. Ou seja: eu consigo entender o que você quer dizer só que não creio no significado do que você diz.[8]

A mensagem da cruz é considerada loucura pelos que estão a perecer, justamente porque ela não possui qualquer atrativo de sabedoria humana que a recomende às suas mentes.[9] “Os gregos estavam intoxicados com palavras bonitas; e o pregador cristão com sua tosca mensagem lhes parecia um personagem cru e inculto, do qual podiam mofar-se e ridicularizar em lugar de escutá-lo e respeitá-lo”, avalia Barclay (1907-1978).[10]

Maringá, 16 de julho de 2020.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] Os gregos desde o tempo dos sofistas foram acostumados com a retórica, valorizando excessivamente a beleza do discurso. A palavra “Retórica”, é uma transliteração do grego R(htorikh/ ( = “eloquência”). A palavra é proveniente de R(h/twr (= “orador público”, “advogado”, “homem de Estado”). Ocorre apenas em At 24.1, no NT. Estas palavras são derivadas de R(h=ma (= “palavra”, “expressão verbal”, “linguagem”, “poema”). Em Aristóteles (384-322 a.C.), R(h=ma significa um verbo, contrastando com um o/)noma, substantivo (Aristóteles, Poética, São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os Pensadores, v. 4), XX 1457a, 10-14, p. 461).

[2]O substantivo “escândalo”, no grego: ska/ndalon tem o sentido de “pedra de tropeço” (Mt 16.23), “tropeço” (Rm 11.9; 1Jo 2.10); “ofensa” (1Pe 2.8). “cilada” (Ap 2.14). Do mesmo modo, o verbo skandali/zw é utilizado com o sentido de: fazer tropeçar (Mt 5.29,30; 18.6,8,9; Mc 9.42,43,45,47; Lc 17.2) ou causa de tropeço (Mt 26.33); gerar maliciosamente escândalos (Rm 16.17; Ap 2.14). No grego secular, a  ideia da palavra no sentido literal é a de uma isca para atrair alguém para uma armadilha. Figuradamente refere-se às “armadilhas verbais” elaboradas para derrotar o oponente por meio de um argumento. Na LXX, o sentido básico é de ”tropeço” (Sl 119.165) e também de “armadilha” (Js 23.13; Jz 2.3; 8.27; 1Sm 18.21; Sl 69.22; 106.36; 140.5; 141.9). (Ver: William Barclay, Palavras Chaves do Novo Testamento,São Paulo: Vida Nova, 1988 (reimpressão), p. 182-184; J. Guhrt, Ofensa: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento,v. 3, p. 311-314)

[3] Barclay escreve: “para a mentalidade grega a primeira característica de Deus era a apatheia. Esta palavra significa mais que apatia: significa incapacidade total de sentir. Os gregos sustentavam que Deus não poderia sentir. Se pudesse sentir alegria ou tristeza, aborrecer-se ou apiedar-se, significava que nesse momento alguém o havia afetado. Se isto era assim, significava que o homem havia influído em Deus; portanto, era mais poderoso que ele. Deste modo, pois, sustentavam que Deus deve ser incapaz de todo sentimento e que nada pode afetá-lo jamais. Um Deus que sofria era para os gregos uma contradição” (William Barclay, 1 y 2 Corintios,Buenos Aires: La Aurora, 1973, p. 30-31). Isto é fato pelo menos para determinada vertente da filosofia grega representada por Epicuro (341-271 a.C.). Veja-se: Diôgenes Laêrtios, Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, 2. ed. Brasília, DF.: Universidade de Brasília, 1977, X.139. Quanto aos filtros judeus, gregos e romanos, vejam-se, por exemplo: James M. Boice, A Loucura da Pregação: In: R. Albert Mohler, Jr., Apascenta o meu rebanho: um apaixonado apelo em favor da pregação, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 33ss.

[4]J. Guhrt, Ofensa: In: Colin Brown, ed. ger.O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, v. 3, p. 312.

[5]William Hendriksen, O Evangelho de João, São Paulo: Cultura Cristã, 2004(Jo 17.1), p. 753.

[6] Tanto o verbo (eu)doke/w) quanto o substantivo (eu)doki/a) enfatizam aquilo ou aquele que é prazeroso, considerando a essência da coisa ou o que se tem em vista. Assim, vemos que Deus Se compraz em Jesus Cristo, o Filho amado (Mt 3.17; 12.18; 17.5; 2Pe 1.17), em quem reside, conforme a vontade de Deus, toda a plenitude da divindade (Cl 1.19/2.9). Deus tem prazer em revelar a Sua vontade aos “pequeninos” (Mt 11.25-26; Lc 10.21), concedendo o Seu Reino (Lc 12.32). Ele nos predestinou para adoção conforme o seu “beneplácito” (eu)doki/a)(Ef 1.5,9), assim como vocaciona os Seus servos conforme Sua vontade (Gl 1.15-16). Deus tem prazer em salvar o Seu povo através da pregação da Palavra (1Co 1.21). Deus opera em nós conforme a Sua liberdade soberana e prazerosa (Fp 2.13). No entanto, estas palavras não são utilizadas somente para Deus, elas também descrevem atitudes e aspirações humanas, como o desejo de Paulo pela salvação dos judeus (Rm 10.1); a sua oração em favor dos tessalonicenses (2Ts 1.11); a voluntariedade prazerosa da Igreja em socorrer os irmãos necessitados (Rm 15.26-27); o desejo de deixar o corpo para estar com Cristo (2Co 5.8); a abnegação de Paulo em prol dos tessalonicenses, compartilhando a sua própria vida (1Ts 2.8 “estávamos prontos” (eu)doke/w)/1Ts 3.1-5: Verso 1: pareceu-nos bem (eu)doke/w) ficar sozinhos em Atenas”); sofrer pelo testemunho de Cristo, a quem amava (2Co 12.10). O Evangelho deve ser pregado: “de boa vontade(eu)doki/a)(Fp 1.15).

[7]Conforme já expliquei em outros lugares, a ideia da palavra é de algo “imbecil”, “tolo”, “insensato”. Na literatura clássica está relacionada à falta de conhecimento e discernimento. Dentro do aspecto da insensatez, esta figura é aplicada ao sal que, se se tornar “insípido” (mwrai/nw) (Mt 5.13; Lc 14.34-35) para nada mais serve. No emprego feito por Paulo: a loucura da mensagem da cruz de Cristo está justamente pela sua falta de sentido intelectual para aqueles que querem avaliar o seu conteúdo dentro de seus pressupostos viciados. Em síntese, o Evangelho soa como algo “simplório”. Paulo diz que Deus tornou “louca” (mwrai/nw) a sabedoria deste mundo (1Co 1.20). Por sua vez, os ímpios se considerando sábios, “tornaram-se loucos(mwrai/nw) [Rm 1.22/Jr 10.14 [“estúpido” (mwrai/nw)], em sua idolatria, recebendo o justo castigo de Deus (Rm 1.23-27)]. Deste modo, a sabedoria de Deus será sempre loucura (mwri/a) para os sábios deste mundo que querem simplesmente adequar o Evangelho aos seus pressupostos (1Co 1.18,23; 2.14). Dentro desta perspectiva, Deus escolheu então as cousas loucas (mwro/j) do mundo” (1Co 1.27). Por outro lado, os que creem na loucura (mwri/a) da pregação serão salvos (1Co 1.21). A loucura (mwro/j) de Deus é mais sábia do que a sabedoria deste mundo (1Co 1.25). A sabedoria deste mundo é loucura (mwri/a) diante de Deus (1Co 3.19). Deus sabe que os pensamentos destes “sábios” são “vãos” [= “nulos”, “fúteis” (ma/taioj) *At 14.15; 1Co 3.20; 15.17; Tt 3.9; Tg 1.26; 1Pe 1.18](1Co 3.20) Portanto, se quisermos nos tornar sábios para Deus, tornemo-nos loucos (mwro/j) para as cousas deste mundo (1Co 3.18). De certa forma, somos os loucos de Cristo (1Co 4.10). Por sua vez, ilustrando que a “loucura” ou “insensatez” não são boas em si mesmas, Paulo faz recomendações práticas para que rejeitemos as questões “sábias” deste mundo que consistem em discussões e questões “insensatas” que produzem contendas, não tendo utilidade [2Tm 2.23; Tt 3.9 (“fúteis” (ma/taioj)]. Portanto, o Evangelho não tem a “loucura” e “insensatez” como virtudes (Mt 23.16-17; 25.1-13). A verdadeira sabedoria consiste em ouvir a Palavra de Deus e praticá-la. Loucura é desprezá-la (Mt 7.24-27).

[8] Ver: James M. Boice, O Evangelho da Graça, São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 108-109.

[9] Cf. João Calvino, Exposição de 1 Coríntios,São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 1.18), p. 56.

[10] William Barclay, 1 y 2 Corintios,1973, p. 32.

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