Eu lhes tenho dado a tua Palavra” (Jo 17.1-26) (62)

A Santificação e a responsabilidade do crente (Continuação)

Meditação e imaginação (Continuação)

A imaginação pode ser algo extremamente produtiva e útil quando a colocamos à disposição do serviço de Deus, na realização de projetos condizentes com a Palavra. Isto é válido para qualquer atividade, quer seja na arte, na visão missionária, quer próxima, quer distante, na elaboração de um livro, no planejamento de nosso mês, na preparação de uma festa etc. Podemos usar a nossa imaginação para visualizar o que pretendemos fazer e nos alegrar na consecução desses projetos.

O apóstolo Paulo é um exemplo positivo disso. Ele desejava muito visitar os crentes romanos; orava por aqueles irmãos. Enquanto isso, imaginava quando estivesse com eles, levaria uma mensagem instrutiva  e um compartilhar da fé edificante e confortador.    Por volta do ano 57 A.D., estando em Corinto, escreve:  

Porque Deus, a quem sirvo em meu espírito, no evangelho de seu Filho, é minha testemunha de como incessantemente faço menção de vós 10em todas as minhas orações, suplicando que, nalgum tempo, pela vontadede Deus, se me ofereça boa ocasião de visitar-vos.  11 Porque muito desejo ver-vos, a fim de repartir convosco algum dom espiritual, para que sejais confirmados,  12 isto é, para que, em vossa companhia, reciprocamente nos confortemos por intermédio da fé mútua, vossa e minha. (Rm 1.9-12).

Nesta ocasião Paulo acredita ter uma boa oportunidade de visitar Roma. Contudo, antes deve passar pela Judéia para levar as ofertas para os santos dali. Sua trajetória seria arriscada visto ter muitos inimigos na região. Ele então pede aos crentes romanos:

30 Rogo-vos, pois, irmãos, por nosso Senhor Jesus Cristo e também pelo amor do Espírito, que luteis juntamente comigo nas orações a Deus a meu favor, 31 para que eu me veja livre dos rebeldes que vivem na Judéia, e que este meu serviço em Jerusalém seja bem aceito pelos santos; 32 a fim de que, ao visitar-vos, pela vontade   de Deus, chegue à vossa presença com alegria e possa recrear-me convosco. (Rm 15.30-32).

A nossa imaginação meditativa tende a moldar o nosso comportamento,[1] reforçando propósitos, enchendo-nos de uma alegre perspectiva de concretização do que cremos ser útil e edificante. Deus diz a Josué diante do desafio de conduzir o povo na terra prometida: “Não cesses de falar deste Livro da Lei; antes, medita (hg’h’) (hãgãh) nele dia e noite, para que tenhas cuidado de fazer segundo tudo quanto nele está escrito; então, farás prosperar o teu caminho e serás bem-sucedido” (Js 1.8).

O meditar na Palavra e nos feitos de Deus é uma prática abençoadora pelo fato de ocupar nossas mentes e corações com o que realmente importa; estimula a nossa gratidão e perseverança em meio às angústias.[2] Isto nos traz grande alívio.

Davi no deserto se confortava meditando nos feitos de Deus: “No meu leito, quando de ti me recordo e em ti medito (hg’h’) (hãgãh), durante a vigília da noite. Porque tu me tens sido auxílio; à sombra das tuas asas, eu canto jubiloso” (Sl 63.6-7/Sl 77.11-12; 143.5)

Meditar na Palavra tem o sentido de considerá-la em nossas decisões, refletir sobre os seus ensinamentos. A meditação deve modelar, corrigir e confirmar o nosso comportamento. A meditação aqui é uma exortação à assimilação existencial da Palavra a fim de que esta se evidencie em nossa prática.

Comênio avalia:

A meditação é a consideração frequente, atenta e devota das obras, das palavras e dos benefícios de Deus, e de como tudo provém de Deus (que opera ou permite) e de como, por caminhos maravilhosos, todos os desígnios da vontade divina são exatamente realizados.[3]

A palavra “meditar”, em sua origem latina, significa, entre outras coisas, “preparar para a ação”. Desta forma, a meditação, como indicamos, não tem um fim em si mesma, mas, sim, visa conduzir o nosso agir e o nosso realizar.[4]

A prática do meditar na Palavra nos confere maior discernimento, nos estimula ao prazer de obedecer a Deus e de partilhar de seus ensinamentos. Vejam os testemunhos inspirados descritos por servos de Deus:

Quanto amo a Tua lei! É a minha meditação (hx’yf) (Sihãh) (considerar, perscrutar, cogitar) todo o dia. (Sl 119.97). 
Compreendo mais do que todos os meus mestres, porque medito  (hx’yf)(Sihãh) nos teus testemunhos. (Sl 119.99).

O Salmista narrando a sua prática prazerosa, diz: “Meditarei  (x;yfi) (Siha) nos teus preceitos, e às tuas veredas terei respeito” (Sl 119.15/Sl 119.27,48,78,148).

O nosso meditar na Palavra tem implicações direta em nossa santificação,[5] visto que se constitui em um estímulo constante, por graça de Deus, a que cumpramos os seus mandamentos. Ao mesmo tempo, como nos adverte Calvino, a Palavra nos previne contra as armadilhas diabólicas que visam nos afastar de Deus:

Visto que Satanás está diariamente fazendo novos assaltos contra nós, é necessário que recorramos às armas, e é mediante a lei divina que somos munidos com a armadura que nos capacita  a resistir. Portanto, quem quer que deseje perseverar em retidão e integridade de vida, então que aprenda a exercitar-se diariamente no estudo da Palavra de Deus; pois, sempre que alguém despreze ou negligencie a instrução, o mesmo cai facilmente em displicência e estupidez, e todo o temor de Deus se desvanece em sua mente”.[6]

Notemos que este praticar percorre muitas vezes o caminho de uma análise introspectiva, por meio da qual vemos o nosso comportamento e o avaliamos a partir da Palavra, para que pela misericórdia de Deus, possamos corrigi-lo:“Considero os meus caminhos, e volto os meus passos para os teus testemunhos”(Sl 119.59).

O estudo da Palavra deve ser acompanhado de oração, pedindo a Deus que nos capacite a compreender a Sua Palavra, desejando sempre nos submeter à vontade de Deus, harmonizando os nossos desejos com a vontade santa de Deus. Esta compreensão da Palavra é-nos concedida pela iluminação do Espírito de Deus. “Só quando Deus irradia em nós a luz de seu Espírito é que a Palavra logra produzir algum efeito. Daí a vocação interna, que só é eficaz no eleito e apropriada para ele, distingue-se da voz externa dos homens”, escreve Calvino.[7]

Maringá, 31 de maio de 2020.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]“O coração do justo medita (hg’h’) (hãgãh) o que há de responder, mas a boca dos perversos transborda maldades” (Pv 15.28).

[2]“Quando formos premidos pela adversidade, ou envolvidos em profundas aflições, meditemos nas promessas de Deus, nas quais a esperança de salvação nos é demonstrada, de modo que, usando este escudo como nossa defesa, rompamos todas as tentações que nos assaltam” (João Calvino, O Livro dos Salmos,  v.  1, (Sl 4), p. 89).

[3]João Amós Coménio,Didáctica Magna, 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, (1985), XXIV.7. p. 355.

[4]Packer assim define: “Meditação é o ato de trazer à mente as várias coisas que se conhecem sobre as atividades, os modos, os propósitos e as promessas de Deus; pensar em tudo isso, refletir sobre essas coisas e aplicá-las à própria vida”(J.I. Packer,  O Conhecimento de Deus,  São Paulo: Mundo Cristão, 1980, p. 15).

[5]“Não podemos fazer progresso na santidade a menos que empreguemos mais tempo lendo e ouvindo a Palavra de Deus, e meditando sobre ela; pois é ela que é a verdade pela qual somos santificados” (Charles Hodge, O Caminho da Vida, New York: Sociedade Americana de Tractados, (s.d.), p . 294).

[6]João Calvino, O Livro dos Salmos,v.  1, (Sl 18.22), p. 383.

[7] J. Calvino, Exposição de Romanos, São Paulo: Paracletos, 1997, (Rm 10.16), p. 374. A vocação eficaz do eleito “não consiste somente na pregação da Palavra, senão também na iluminação do Espírito Santo” (J. Calvino, As Institutas, III.24.2).

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