“Eu lhes tenho dado a tua Palavra” (Jo 17.1-26) (153)

7.5.4. Unidade e serviço (Continuação)

Ainda que de passagem, deve ser acentuado juntamente a Calvino que,“sempre que os homens são chamados por Deus, os dons são necessariamente conectados com os ofícios. Pois Deus não veste homens com máscara ao designá-los apóstolos ou pastores, e, sim, os supre com dons, sem os quais não têm eles como desincumbir-se adequadamente de seu ofício”.[1]

            À Igreja de Corinto com sérios problemas internos, havendo inclusive partidos que optavam por Paulo, Pedro, Cefas ou Apolo denegrindo os outros, Paulo orienta que todos somos chamados à unidade do serviço, dentro da variedade de nossos talentos e ofícios: “Ora, o que planta e o que rega são um; e cada um receberá o seu galardão, segundo o seu próprio trabalho” (1Co 3.8).

            Todos cooperamos juntamente, uns com os outros no serviço de Deus. Os serviços não são estanques, nem têm diferenças qualitativas, antes um completa o outro de forma necessária. E tudo isso, sob o governo soberano e providente de Deus.

            Observemos que estes ofícios (Ef 4.11), foram instituídos para o aperfeiçoamento dos santos a fim de que estes cumpram o seu serviço na Igreja; ou seja: o trabalho não é apenas pastoral ou dos Presbíteros Regentes e Diáconos, é também e fundamentalmente comunitário. Toda a Igreja é responsável: Lutero falou do Sacerdócio Universal dos Crentes; pois bem, este texto nos fala do ministério universal dos crentes. O carisma traz implicações de responsabilidade com a edificação de nossos irmãos. Na Igreja de Cristo não pode haver a divisão entre aqueles que trabalham e os que apenas ouvem comodamente. Todos somos chamados e capacitados ao trabalho cristão.[2]

            Notemos também, que Paulo está dizendo que todos os membros da Igreja são santos. Isso aponta para o nosso privilégio (somos santificados em Cristo Jesus) e nossa responsabilidade (devemos progredir em santidade). Neste ponto, a Igreja sofre tremendamente, porque ela abandonou a sua realidade e a sua meta de santidade (separação) e cada vez mais intensamente se parece com o mundo: na sua forma de pensar, de falar, de sentir, de vestir e de fazer. Ao invés desse comportamento aprendido por osmose sugerir maturidade, é, na verdade, um sintoma de infantilidade crônica: temos de modo demasiado, falado, sentido e pensado como meninos; enquanto que o propósito de Deus para o Seu povo é o inverso: que pensemos, sintamos e falemos como pessoas maduras na fé (1Co 13.11/1Co 3.1-2; Hb 5.11-14; 2Pe 3.18).[3] Paulo contrasta aqui os “meninos” (nh/pioj = “bebê”, “imaturo”, “criança pequena”) (Ef 4.14) com a “perfeição” (te/leioj “maduro”) (Ef 4.13).

             Calvino comenta:

Crianças são aqueles que ainda não deram um passo no caminho do Senhor, senão que hesitam, que não determinaram ainda que rumo devem tomar, mas que se movem às vezes numa direção e às vezes noutra, sempre duvidosos, sempre ziguezagueando”.[4]

            As crianças devido a sua ingenuidade, são mais influenciáveis, dadas à instabilidade. Os pagãos apresentam este comportamento, sendo conduzidos por qualquer nova doutrina. Em Listra, conduzidos por suas lendas,[5] pensaram que Paulo e Barnabé fossem Júpiter e Mercúrio, querendo a todo custo oferecer-lhes sacrifícios. Pouco depois, influenciados pelos judaizantes, apedrejaram a Paulo, deixando-o quase morto (At 14.8-20). Por sua vez, “o progresso da igreja é marcado por um crescimento da infância até a maturidade, na medida que ela assume o caráter de sua cabeça, Cristo”, enfatiza Martin (1925-2013).[6]

            Paulo para descrever esta inconstância infantil, usa um termo náutico que se refere a uma pequena embarcação que, em mar aberto não consegue manter o curso certo (kludwni/zomai = “ser arrastado, levado pelas ondas”) (Ef 4.14). Metaforicamente tem o sentido de “ser agitado mentalmente”. A ideia é a de andar em círculos, diante da variedade de ensinamentos. “Ele os compara com as palhas ou outros elementos leves, os quais são rodopiados pela força do vento a soprar em círculo ou em direções opostas”, interpreta Calvino.[7]

            Tomando as figuras usadas por Paulo, podemos observar que a criança gosta de entretenimento, novidade e indisciplina; se não tivermos firmeza doutrinária, se não estivermos ancorados na Palavra, seremos conduzidos de forma constante e sem direção. Este exemplo negativo, temos nos gálatas, aos quais, Paulo escreve: “Admira-me que estejais passando tão depressa daquele que vos chamou na graça de Cristo, para outro evangelho”(Gl 1.6). “Vós corríeis bem; quem vos impediu (e)gko/ptw)[8]de continuardes a obedecer à verdade?”(Gl 5.7).

            Calvino comentando a facilidade com que quase todos se curvaram diante do decreto idólatra de Nabucodonosor (Dn 3.2-7), sustenta que a base de nossa firmeza doutrinária está no apego irrestrito à Palavra:

Nada é firme, nada é estável entre os gentios; indivíduos que não foram instruídos na escola de Deus o que significa a verdadeira religião. Pois oscilam a todo instante ao sabor de qualquer brisa. Assim como as folhas se movem quando o vento sopra por entre as árvores, assim também todos os que não estão enraizados na verdade de Deus oscilarão e serão lançados para frente e para trás quando algum vento começa a soprar. O decreto régio não constitui uma brisa leve, e, sim, uma violenta tempestade. Pois ninguém pode opor-se impunemente aos reis e a seus editos. Por isso, sucede que os que não se acham plantados na Palavra de Deus, e não entendem absolutamente nada do que é verdadeira piedade, são arrastados pela investida de tal pé-de-vento.[9]

            Maringá, 16 de setembro de 2020.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] João Calvino,  Efésios, (Ef 4.11), p. 119.

[2] “Não há crescimento em igrejas que dependem de algumas poucas pessoas e os demais membros são espectadores. Sempre existe progresso e multiplicação em igrejas cujos membros são vibrantes e intentam servir a Cristo” (Iain Murray, A Igreja: Crescimento e Sucesso: In: Fé para Hoje, São José dos Campos, SP.:  Fiel, nº 6, 2000, p. 20).

[3] “Eu, porém, irmãos, não vos pude falar como a espirituais, e sim como a carnais, como a crianças em Cristo. Leite vos dei a beber, não vos dei alimento sólido; porque ainda não podíeis suportá-lo. Nem ainda agora podeis, porque ainda sois carnais” (1Co 3.1-2).“A esse respeito temos muitas coisas que dizer e difíceis de explicar, porquanto vos tendes tornado tardios em ouvir. 12 Pois, com efeito, quando devíeis ser mestres, atendendo ao tempo decorrido, tendes, novamente, necessidade de alguém que vos ensine, de novo, quais são os princípios elementares dos oráculos de Deus; assim, vos tornastes como necessitados de leite e não de alimento sólido. 13 Ora, todo aquele que se alimenta de leite é inexperiente na palavra da justiça, porque é criança. 14 Mas o alimento sólido é para os adultos, para aqueles que, pela prática, têm as suas faculdades exercitadas para discernir não somente o bem, mas também o mal” (Hb 5.11-14/2Pe 3.18). (grifos meus).

[4] João Calvino, Efésios, (Ef 4.14), p. 127.

[5] Veja-se: Hermisten M.P. Costa, Eu Creio,São Paulo: Parakletos, 2002, p. 250-251.

[6]Ralph P. Martin, Efésios: In: Comentário Bíblico Broadman,  Rio de Janeiro:  JUERP., 1985, v. 11, p. 190.

[7] João Calvino, Efésios, (Ef 4.14), p. 128.

[8] No seu emprego militar a palavra tinha o sentido de cortar uma árvore para causar um impedimento ou, abrir uma vala que obstaculizasse temporariamente o caminho do inimigo, daí a palavra tomar o sentido de “impedimento”, “empecilho”, “obstáculo”.  

[9] João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6,São Paulo: Parakletos, 2000, v. 1, (Dn 3.2-7), p. 190.

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