“Eu lhes tenho dado a tua Palavra” (Jo 17.1-26) (31)


4.2.5. A Igreja e a preservação da verdade

Em uma sociedade pragmática e imediatista onde o verdadeiro é o que funciona, e me proporciona mais conforto e sucesso, já não existe interesse pela verdade enquanto verdade. Ela tornou-se irrelevante.[1] No entanto, a busca da verdade pela verdade é uma característica fundamental da Igreja.

Já que cabe à Igreja o privilégio de proclamar a Palavra, ela tem de compreender as Escrituras para anunciá-la com fidelidade e vivenciá-la para proclamar com autoridade. Por isso, a Igreja é chamada de “coluna e baluarte da verdade”, porque a ela foram confiados os oráculos de Deus (Rm 3.2/1Tm 3.15).

A Igreja como baluarte da verdade está amparada no fundamento que consiste na obra de Deus realizada por intermédio de Cristo (Mt 16.18/Ef 2.20).[2] É isso que escreve Paulo ao jovem Timóteo: “Escrevo-te estas coisas, esperando ir ver-te em breve; para que, se eu tardar, fiques ciente de como se deve proceder na casa de Deus, que é a igreja do Deus vivo, coluna (stu=loj)[3] e baluarte (* e(drai/wma) da verdade (a)lh/qeia) (1Tm 3.14-15).

 Deus se dignou em preservar a verdade por meio da sua Igreja. Quando ela falha, neste propósito, ainda que a verdade não seja abalada em sua essência, ela se torna fragilizada em sua exposição e aceitação.

A igreja enfrenta aqui dois perigos evidentes:

          a) A “barganha” com o mundo. Na pretensão de ser ouvida de forma impactante, negocia os seus valores por meio da assimilação dos valores seculares. Na adoção desta prática, perde totalmente a sua relevância como voz profética de Deus para a sua geração. Ela pode até ser ouvida, contudo, perdeu o poder.

          b) A “privatização” da fé: a minha religião e nada mais. Criamos aqui uma espécie de tribalismo religioso onde cultivamos a nossa fé intramuros e nada temos a ver com o que se passa “lá fora”, exceto, quem sabe, por meio da internet ou televisão. Neste caso, a palavra de ordem é a autopreservação. Queremos apenas preservar nossos valores, associando o progresso a uma maior semelhança conosco. No profeta Jonas, temos um tipo ideal desta compreensão equivocada.[4]

A igreja é chamada a atuar no mundo, tendo uma compreensão missionária de sua essência e existência. Esta compreensão programática engloba uma agenda que envolve uma mudança de perspectiva em nossa relação familiar, profissional, social, econômica, política e religiosa. A relevância da verdade sustentada pela igreja deve se manifestar em todas as esferas.

          A Igreja tem, portanto, a grande responsabilidade de estudar a Palavra, proclamá-la e vivenciá-la. Ela é o meio de demonstração desta verdade (Ef 3.8-11). A nossa responsabilidade primeira é com a verdade de Deus.[5] Um desafio para a igreja, portanto, é pregar esta verdade com integridade, profundidade, firmeza e humildade.[6]

          A igreja basicamente preserva a verdade por meio do seu conhecimento, prática e ensino: devemos conhecer a Palavra a fim de poder usá-la corretamente. A Timóteo, Paulo recomenda:

Procura (spouda/zw = “esforçar-se com zelo”, “apressar-se”)[7] apresentar-te a Deus aprovado (do/kimoj = “aprovado após exame”),[8] como obreiro que não tem de que se envergonhar, que maneja bem (o)rqotome/w)[9]a palavra da verdade (a)lh/qeia). (2Tm 2.15).

          Calvino traduz a metáfora usada por Paulo, “maneja bem” (2Tm 2.15) por “dividindo bem”, fazendo a seguinte aplicação:

Paulo (…) designa aos mestres o dever de gravar ou ministrar a Palavra, como um pai divide um pão em pequenos pedaços para alimentar seus filhos. Ele aconselha Timóteo a ‘dividir bem’, para não suceder que, como fazem os homens inexperientes que, cortando a superfície, deixam o miolo e a medula intactos. Tomo, porém, o que está expresso aqui como uma aplicação geral e como uma referência à judiciosa ministração da Palavra, a qual é adaptada para o proveito daqueles que a ouvem.[10] Há quem a mutile, há quem a desmembre, há quem a distorce, há quem a quebre em mil pedaços, e há quem, como observei, se mantém na superfície, jamais penetrando o âmago da doutrina. Ele contrasta todos esses erros com a boa ministração, ou seja, um método de exposição adequado à edificação. Aqui está uma regra que devemos julgar cada interpretação da Escritura.[11]

          Quando ajudamos os servos de Deus que labutam pelo evangelho, estamos cooperando com a verdade: “Portanto, devemos acolher esses irmãos, para nos tornarmos cooperadores da verdade (a)lh/qeia) (3Jo 8).

  Maringá, 25 de fevereiro de 2020.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] Veja-se: William L. Craig, Apologética Cristã para Questões difíceis da vida, São Paulo: Vida Nova, 2010, p. 11.

[2] Ver: J. Blunck, Firme: In: Colin Brown, ed. ger., O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento,São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 2, p. 246.

[3] * Gl 2.9; 1Tm 3.15; Ap 3.12; 10.1.

[4] Veja-se: Tullian Tchividjian, Surpreendido pela graça, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, p. 99-100.

[5] Ver: Wayne A. Mack; David Swavely, A Vida na Casa do Pai, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 17-24.

[6]Veja-se: Joshua Harris, Ortodoxia humilde: defendendo verdades bíblicas sem ferir as pessoas, São Paulo: Vida Nova, 2013, p. 21.

[7]A ideia da palavra é de fazer todo o possível – de modo intensivo, urgente, diligente e zeloso –, para cumprir a sua tarefa. Denota uma diligência que se esforça por fazer todo o possível para alcançar o seu objetivo.

[8] O verbo dokima/zw ressalta o aspecto positivo de “provar” para “aprovar”, indicando a genuinidade do que foi testado (2Co 8.8; 1Ts 2.4; 1Tm 3.10). Este verbo se refere à ação de Deus, nunca é empregado para a “tentação” de satanás, “visto que ele nunca prova aquele que ele pode aprovar, nem testa aquele que ele pode aceitar” (Richard C. Trench, Synonyms of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1985 (Reprinted), p. 281). (Vejam-se mais detalhes sobre a “tentação”, em Hermisten M.P. Costa, O Pai Nosso, São Paulo: Cultura Cristã, 2001).

            No entanto, ambos os verbos podem ser usados indistintamente, mesmo não sendo “perfeitamente sinônimos” (Veja-se: H. Seesemann, peira/w: In: Gerhard Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, 8. ed. (reprinted) Grand Rapids, Michigan: WM. B. Eerdmans Publishing Co., 1982, v. 6, p. 23; H. Haarbeck, Tentar: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1983, v. 4, p. 599; Richard C. Trench, Synonyms of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1985 (Reprinted), p. 278ss.).

[9]O verbo o)rqotome/w – “cortar em linha reta”, “endireitar” –, que só ocorre neste texto, é formado por o)rqo/j (“direito”, “reto”, “certo”, “correto”) (* At 14.10; Hb 12.13) e te/mnw (“cortar”), verbo que não aparece no Novo Testamento. Na LXX o)rqotome/w é empregado em Pv 3.6 e 11.5 com o sentido de endireitar o caminho. Analogias e aplicações variadas são possíveis, tais como: a ideia de lavrar a terra fazendo os sulcos em linha reta; construir uma estrada em linha reta a fim de que o viajante alcance com facilidade o seu objetivo sem se desviar por atalhos; o alfaiate que corta o tecido de forma correta a fim de fazer a roupa (Paulo como fabricante de tendas estava acostumado a este serviço no que se refere ao corte dos tecidos de pelo de cabra); o pedreiro que corta a pedra de forma correta para o seu perfeito encaixe, etc. A partir de 2Tm 2.15 várias analogias são feitas, tais como: a ideia de conduzir a Palavra pelo caminho correto para atingir de modo eficaz seu objetivo, manuseá-la bem, ministrá-la conforme o seu propósito, expô-la de maneira correta, ensinar correta e diretamente a Palavra etc.  

[10]Este era o seu princípio pedagógico: “Um sábio mestre tem a responsabilidade de acomodar-se ao poder de compreensão daqueles a quem ele administra o ensino, de modo a iniciar-se com os princípios rudimentares quando instrui os débeis e ignorantes, não lhes dando algo que porventura seja mais forte do que podem suportar” (João Calvino, Exposição de 1 Coríntios,São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 3.1), p. 98-99).

[11] João Calvino, As Pastorais, (2Tm 2.15), p. 235.

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