“Eu lhes tenho dado a tua Palavra” (Jo 17.1-26) (144)

c) Louvando a Deus  (Continuação)

A Igreja Cristã que com o passar dos séculos idealizou seus templos de forma que o centro estivesse nos dirigentes e a congregação apenas assistia um ritual do qual pouco ou nada entendia, com a Reforma, por questões teológicas, passou por um rearranjo. Genebra é também um exemplo dessa transformação.

     Na Reforma feita por Calvino a partir de 1541 na Catedral de São Pedro em Genebra (Cathédrale de Saint Pierre), a disposição da santuário foi mudada. Se antes o púlpito estava no mesmo nível do coral no andar-mor juntamente com o trono do bispo, agora, o púlpito foi colocado no primeiro pilar à esquerda, de tal forma que ficava no centro da congregação que se sentava convergentemente, em torno da Palavra. Deste modo, os bancos formavam uma amplitude em torno do pregador, estendidos pelas galerias do transepto. No caso da Ceia, a mesa só seria posta quando fosse celebrada.[1] Consequentemente, o altar e o coral reservado aos sacerdotes e suas respectivas partes foram eliminados ou caíram em desuso.[2] 

          Calvino, considerando a complexidade e a riqueza da experiência cristã, entendia que “os salmos constituem uma expressão muito apropriada da fé reformada”,[3] e que “Tudo quanto nos serve de encorajamento, ao nos pormos a buscar a Deus em oração, nos é ensinado neste livro [Salmos]”.[4]

          Portanto, no Livro de Salmos temos um guia seguro para a edificação da Igreja que pode cantá-lo sem correr o risco de proferir heresias melodiosas.

          Escreve Calvino:

Não existe outro livro onde mais se expressem e magnifiquem as celebrações divinas, seja da liberalidade de Deus sem paralelo em favor de sua Igreja, seja de todas as suas obras. (…) Não há outro livro em que somos mais perfeitamente instruídos na correta maneira de louvar a Deus, ou em que somos mais poderosamente estimulados à realização desse sacro exercício.[5]

          Lutero considerava o livro de Salmos (1545) como um “espelho fino, claro e puro que te mostrará o que é a cristandade”, a nós também e a Deus: “Dentro deles também tu irás encontrar a ti mesmo e o verdadeiro conhece-te a ti mesmo,  além do próprio Deus e todas as criaturas.[6]  

          De forma parcialmente análoga, Calvino considerava os Salmos como “uma anatomia de todas as partes da alma”.[7] que isso explica, ainda que parcialmente, o seu tom tão pastoral no Comentário de Salmos. Nos Salmos, Calvino, mesmo seguindo o seu estilo característico, se expõe de um modo mais pessoal. Acredito que em nenhum outro de seus comentários temos acesso tão direto ao coração de Calvino como nesses.

Um fato notório é que Calvino na medida em que escrevia os seus comentários da Bíblia, ampliava a sua Instituição da Religião Cristã como resultado do seu aprofundamento bíblico, histórico e teológico,[8] tendo em vista também os novos questionamentos de seu tempo. Por sua vez nos seus comentários não raramente ele remete o leitor às Institutas.[9]

Aliás, a sua teologia nada mais era do que um esforço por comentar as Escrituras; por isso sua obra pode ser corretamente chamada de uma “teologia bíblica”, certamente escrita por um teólogo sistemático que tão bem sabia se valer dos recursos da exegese e da hermenêutica e, considerando a graça comum, recorria às demais ciências,[10] dispondo tudo isso de forma erudita e devocional.[11]

Por isso a história dos comentários bíblicos de Calvino e a das sucessivas edições das Institutas se confundem e se completam.[12] Há uma simbiótica relação progressiva.[13] A sua exegese tinha um escopo teológico e a sua teologia estava amparada em uma sólida exegese bíblica. Deve-se observar ainda o seu propósito em cada um de seus escritos.[14]

A última edição das Institutas foi feita em 1559 e, os comentários de Salmos em 1557. É natural supor que ele trabalhou em muitos momentos de modo concomitante em ambas as obras, ainda que com propósitos e estilos diferentes, porém, creio ser possível pensar nos comentários de Salmos como uma espécie de variação pastoral da Institutas,[15] ainda que não se limite a esta.[16]

          Retornando: No Prefácio do seu comentário ao Livro de Salmos, diz: “Se a leitura destes meus comentários confere algum benefício à Igreja de Deus como eu obtive vantagem da composição deles, eu não terei nenhuma razão para lamentar por ter empreendido este trabalho”.[17]

Maringá, 04 de setembro de 2020.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] Calvino combateu o costume da Alta Idade Média de se celebrar a Ceia uma vez por ano e mostra que no início da Igreja não era assim (J. Calvino, As Institutas,IV.17.44-46). Apresenta também um resumo das deturpações romanas deste sacramento (João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996,(1Co 11.30), p. 366-367). Sustenta que a Ceia deveria ser celebrada semanalmente e, que todos os membros deveriam participar do pão e do vinho. (J. Calvino, As Institutas,IV.17.43,44,46,48).   Na realidade, para tristeza de Calvino, a sistematicidade da Ceia por ele proposta jamais foi praticada em Genebra. Os magistrados compreendiam que a Ceia deveria ser ministrada apenas quatro vezes por ano. (Cf. T.H.L. Parker, The Oracles of God: An Introduction to the Preaching of John Calvin, Cambridge, England: James Clarke; Co, 1947, (2002) Reprinted, p. 33). Numa tentativa de negociar com os magistrados de Genebra, Calvino propôs então, que a Ceia fosse ministrada mensalmente; contudo, nem com isso concordaram.  Em Berna a Ceia era ministrada 3 vezes ao ano; Calvino em carta aos Magistrados de Berna (1555), lamenta a prática de Berna e Genebra – que considera um erro –, dizendo: “Queira Deus, cavalheiros, que tanto vós como nós sejamos capazes de estabelecer um uso mais frequente….” (John Calvin, “To the Seigneurs of Berne,” John Calvin Collection,(CD-ROM), (Albany, OR: Ages Software, 1998),nº 395, p. 163).  No entanto, “Calvino procurou atenuar a severidade destes decretos fazendo arranjos para que as datas da comunhão variassem em cada igreja da cidade, provendo assim oportunidade para a comunhão mais frequente do povo, que podia comungar em uma igreja vizinha” (William D. Maxwell, El Culto Cristiano: sua evolución y sus formas, Buenos Aires: Methopress Editorial y Grafica, 1963, p. 140-141).   No entanto, em Genebra Calvino não teve esta oportunidade, já que os magistrados determinaram que a Ceia fosse celebrada no Natal, na Páscoa, no Pentecostes e na Festa das Colheitas. (Veja-se: John Calvin, “To the Seigneurs of Berne,” John Calvin Collection,(CD-ROM), (Albany, OR: Ages Software, 1998),nº 395, p. 163. As cinco festas da Igreja Reformada eram: Natal, Sexta-Feira Santa, Páscoa, Assunção e Pentecostes. (Cf. Charles W. Baird, A Liturgia Reformada: Ensaio histórico,Santa Bárbara D’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 28). Veja-se também: J.J. Von Allmen, O Culto Cristão: Teologia e Prática, São Paulo: ASTE, 1968, p. 177ss.

[2] Vejam-se: André Biéler, Architecture in Worship, Edinburgh & London: Oliver & Boyd, 1965, p. 56-61. (Especialmente).

[3] John H. Leith, A Tradição Reformada: Uma maneira de ser a comunidade cristã, p. 336. Na leitura dos comentários de Salmos de Calvino é evidente a sua relação contextual e aplicação para o povo de Deus de todas as épocas (Veja-se: Wulfert de Greef, Calvin as Commentator na the Psalms. In: Donald K. McKim, ed., Calvin and the Bible, Cambridge: Cambridge University Press, 2006, p. 85-106.

[4] João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, p. 34.

[5] João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, p. 35-36.

[6] M. Lutero, Prefácio ao Livro dos Salmos: In: Martinho Lutero: obras selecionadas, São Leopoldo, RS.; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia, 2003, v. 8, p. 36. O Salmo favorito de Lutero era o 118. Temos em português a tradução de seu comentário (1530) com uma enriquecedora introdução histórica (Veja-se:   Martinho Lutero: obras selecionadas, São Leopoldo, RS.; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia, 1995, v. 5, p. 19-84). Considerava também o Salmo 110 “extremamente encantador” (M. Lutero, Conversas à Mesa, Brasília, DF.: Monergismo, 2017, 28, p. 26).

[7] “…. pois não há sequer uma emoção da qual alguém porventura tenha participado que não esteja aí representada como num espelho. (…) É através de uma atenta leitura dessas composições inspiradas que os homens serão mais eficazmente despertados para a consciência de suas enfermidades, e, ao mesmo tempo, instruídos a buscar o antídoto para sua cura.  Numa palavra, tudo quanto nos serve de encorajamento, ao nos pormos a buscar a Deus em oração, nos é ensinado neste livro” (João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, p. 33,34).

[8]Vejam-se: John H. Leith, A Tradição Reformada: Uma maneira de ser a comunidade cristã, São Paulo: Pendão Real, 1997, p. 152-153; Moisés Silva, Em Favor da Hermenêutica de Calvino: In: Walter C. Kaiser Jr. & Moisés Silva, Introdução à Hermenêutica Bíblica, São Paulo: Vida Nova, 1980, p. 252.

[9] Vejam-se, por exemplo: At 6.3; Rm 3.21,28; 1Co 1.1; 3.9,14; 5.5; 9.5-6; 2Co 4.17; 5.10; Ef 3.18-10; 1Tm 2.6; 3.8; 1Pe 1.20.

[10] “É bem verdade que os que receberam instrução sobre as artes liberais, ou que provaram algo delas, têm nesse conhecimento uma ajuda especial para aprofundar-se nos segredos da sabedoria divina. Contudo, mesmo aquele que desconhece essas artes não é impedido de ver grande parte das obras de Deus, sendo levado a admirar o Artífice que as criou” (João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, (I.1), v. 1, p. 63). Igualmente: As Institutas, I.5.2). “Se o Senhor nos quis deste modo ajudados pela obra e ministério dos ímpios na física, na dialética, na matemática e nas demais áreas do saber, façamos uso destas, para que não soframos o justo castigo de nossa displicência, se negligenciarmos as dádivas de Deus nelas graciosamente oferecidas” (J. Calvino, As Institutas,II.2.16). (Veja-se: J. Calvino, As Institutas, I.5.2; II.2.12-17).

[11] “A Institutio não é somente uma obra-prima de teologia Cristã; ela é um clássico devocional” [John Murray, Calvin as Theologian and Expositor, Carlisle, Pennsylvania: The Banner of Truth Trust, (Collected Writings of John Murray, v. 1), 1976, p. 311]. Veja-se também: John Murray, em Introdução à tradução americana da Instituição, (Reformation History Library,[CD-ROM], (Albany, OR: Ages Software, 1998), p. 6).

[12] Aliás, Calvino desejava que a Instituição fosse lida em conjunto com os comentários: Veja-se o Prefácio à edição latina a partir da segunda edição (1539) e o Prefácio à edição francesa (1560). (Jean Calvin, L’Institution Chrétienne,Genève: Labor et Fides, 1955, v. 1, p. XIX). Também, algumas vezes ele nos remete para seus sermões (Ver por exemplo: João Calvino, Efésios,(Ef 3.18), p. 105; (Ef 4.5), p. 110; As Pastorais,(1Tm 2.6), p. 67; (1Tm 3.8), p. 92; (1Tm 4.14), p. 124).

[13]Veja-se: Elsie Anne McKee, Exegesis, Theology, and Development in Calvin’s Institutio: A Methodological Suggestion. In: Elsie A. McKee and Brian G. Armstrong, eds. Probing the Reformed Tradition: Historical Studies in Honor of Edward A. Dowey, Jr., Louisville, Kentucky: Westminster; John Knox Press, 1989, p. 154-172.

[14]Veja-se: Alister E. McGrath, A Vida de João Calvino, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, p. 173.

[15]Veja-se: Herman J. Selderhuis, Calvin’s Theology of the Psalms, Grand Rapids, MI.: Baker Academic, 2007, p. 283-285.

[16] Veja-se: Richard A. Müller, The Unaccommodated Calvin, New York: Oxford University Press, 2000, p. 103-108.

[17]John Calvin, Commentary on the Book of Psalms,Grand Rapids, Michigan: Baker Book House (Calvin’s Commentaries, v. 4), 1996 (Reprinted), Preface, p. XXXV. (Tradução brasileira, João Calvino,O Livro dos Salmos, v. 1, p. 31).

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