A Pessoa e Obra do Espírito Santo (498)

2) Vida de arrependimento

O arrependimento envolve a nossa mente, sentimento e vontade.[1] Ele consiste numa mudança de mente, ocasionando um sentimento de tristeza pelos nossos pecados, que se caracteriza de forma concreta no seu abandono,[2] refletindo isso na adoção de novos valores, ideias, objetivos e práticas. Como resume Packer:  “A mudança é radical, tanto interior como exteriormente: ânimo e opinião, vontade e afetos, conduta e estilo de vida, motivos e propósitos são todos envolvidos. Arrependimento significa começo de uma nova vida”.[3]

            O arrependimento distingue-se, assim, do remorso, que é apenas uma tristeza por um ato pecaminoso, em geral, percebido por causa das consequências, ainda que parciais, do seu pecado. (Jr 3.7). Esta tristeza (remorso) pelo pecado faz parte do arrependimento, contudo, ela sozinha é insuficiente.

            O arrependimento sincero é uma “concessão” de Deus:“…. Porque a tristeza segundo Deus produz arrependimento (meta/noia) para a salvação….” (2Co 7.10/2Tm 2.25). “….a bondade de Deus é que te conduz ao arrependimento (meta/noia) (Rm 2.4/Hb 12.17). “A fé e o arrependimento não devem ser reputados coisas meritórias mediante as quais merecemos o perdão. Pelo contrário, são os meios pelos quais nos apropriamos da graça de Deus”.[4] Em síntese: “O arrependimento não está no poder do homem”.[5] Por isso, ele é próprio do novo homem.[6]

A longanimidade de Deus é exercitada a fim de que todos aqueles que constituem o Seu povo escolhido, se arrependam de seus pecados (2Pe 3.9,15). O nosso desejo ardente pelo regresso de Cristo deve se concretizar em uma atitude de arrependimento pelos nossos pecados.

            O conceito de arrependimento, envolvendo uma mudança radical na vida do homem é um conceito cristão, sem paralelo na literatura grega.[7] O arrependimento bíblico consiste em voltar-se total e integralmente para Deus. O arrependimento, portanto, envolve uma atitude de abandono do pecado e uma prática da Palavra de Deus. Esta prática consiste nos “frutos do arrependimento”. Paulo, testemunhando diante do rei Agripa a respeito do seu ministério, diz: “Pelo que ó rei Agripa, não fui desobediente à visão celestial, mas anunciei primeiramente aos de Damasco e em Jerusalém, por toda a região da Judeia, e aos gentios, que se arrependessem e se convertessem a Deus praticando obras dignas de arrependimento (meta/noia) (At 26.19,20. Vejam-se também: At 20.21/Lc 3.8).

            O arrependimento e a fé são passos iniciais, inseparáveis e complementares[8] da vida cristã como resposta ao chamado divino; no entanto, ambos devem acompanhar a nossa vida; devemos continuar crendo em Deus em todas as circunstâncias e cultivar, pelo Espírito, uma atitude de arrependimento pelas nossas falhas. Deus deseja que procuremos agradá-Lo em todas as coisas; no entanto, sabemos que pecamos, que falhamos, que não atingimos o alvo proposto por Deus; por isso, conscientes de nossos pecados, devemos nos arrepender, buscando o perdão de Deus e o reparo para o nosso erro. 

A Confissão de Westminster (1647) resume: “… O pecador pelo arrependimento, de tal maneira sente e aborrece os seus pecados, que, deixando-os, se volta para Deus, tencionando e procurando andar com Ele em todos os caminhos dos seus mandamentos” (XV.2).

Positivamente considerando, Pedro exorta: “Visto que todas essas coisas hão de ser assim desfeitas, deveis ser tais como os que vivem em santo procedimento e piedade” (2Pe 3.11).

 a) “Santo Procedimento”

Tanto o substantivo “procedimento” (a)nastrofh/) como o verbo (a)nastre/fw) [9] têm o sentido literal de: “volta para trás”, “entornar”, “derrubar”. O sentido figurado, conforme emprega Pedro, é de “comportamento”, “condução”, “modo de vida”, “estilo de vida”, “conversação”, “conduta”, etc. Como o verbo e o substantivo são neutros, o adjetivo é que vai qualificar o procedimento.

Paulo, por exemplo, fala da sua vida pregressa, como sendo um modo de vida errado: “Porque ouvistes qual foi o meu proceder (a)nastrofh/) outrora no judaísmo, como sobremaneira perseguia eu a igreja de Deus e a devastava” (Gl 1.13). “…. todos nós andamos (a)nastre/fw) outrora, segundo as inclinações da nossa carne, fazendo a vontade da carne e dos pensamentos; e éramos por natureza filhos da ira….” (Ef 2.3).

    Por isso é que Pedro fala de um “santo procedimento”. A Igreja se prepara para se encontrar com Cristo, vivendo santamente, demonstrando em sua vida, os valores próprios daquele que crê que se encontrará com o Senhor vitorioso.

   Devemos, portanto, abandonar o modo de viver antigo, contrário à Palavra de Deus: “No sentido de que, quanto ao trato (a)nastrofh/) passado, vos despojeis do velho homem, que se corrompe segundo as concupiscências do engano, e vos renoveis no espírito do vosso entendimento, e vos revistais do novo homem, criado segundo Deus, em justiça e retidão procedentes da verdade” (Ef 4.22-24).

       O motivo é simples: Deus nos resgatou em Cristo desses procedimentos pecaminosos: “Sabendo que não foi mediante coisas corruptíveis, como prata ou ouro, que fostes resgatados do vosso fútil procedimento (Matai/aj [10] u(mw=n a)nastrofh=j ) que vossos pais vos legaram, mas pelo precioso sangue, como de cordeiro sem defeito e sem mácula, o sangue de Cristo” (1Pe 1.18-19).  Sobre esse último texto, duas observações devem ser feitas:

            1) Pedro diz que aqueles irmãos herdaram de seus pais um comportamento tolo e vão. É interessante que, quando Paulo e Barnabé pregaram em Listra (At 14.8ss.) e aquele povo pensou que eram deuses – devido a cura de um paralítico que efetuaram –, eles, argumentando contra essa idolatria, dizem: “Senhores, por que fazeis isto? Nós também somos homens como vós, sujeitos aos mesmos sentimentos, e vos anunciamos o evangelho para que destas cousas vãs (Ma/taioj) vos convertais ao Deus vivo….” (At 14.15). Portanto, o Evangelho com o seu poder transformador (Rm 1.17) visa fazer com que o homem abandone as cousas vãs, como, por exemplo a idolatria e as crendices pagãs, colocando toda a sua confiança em Deus e em Suas promessas.

            2) Vimos também no texto de Pedro, o alto preço pago por Deus para que fôssemos libertados do poder do pecado e, vivêssemos, agora, para Ele. O preço de nossa justificação, para nós gratuita, foi o sangue de Cristo Jesus.[11]

            Deus nos resgatou e, se nos apresenta como modelo a ser imitado e seguido: “….segundo é santo aquele que vos chamou, tornai-vos santos também vós mesmos em todo o vosso procedimento (a)nastrofh/), porque escrito está: Sede santos, porque eu sou santo. Ora, se invocais como Pai aquele que, sem acepção de pessoas, julga segundo as obras de cada um, portai-vos (a)nastre/fw) com temor durante o tempo da vossa peregrinação” (1Pe 1.15-17).

            Somos desafiados em Cristo a sermos o padrão dos fiéis: “….torna-te padrão dos fiéis, na palavra, no procedimento (a)nastrofh/), no amor, na fé, na pureza” (1Tm 4.12).

            Pedro, diz que a forma como vivemos a fé cristã, é o modo mais eficaz de calar aqueles que injustamente caluniavam a Igreja:

Mantendo exemplar o vosso procedimento (a)nastrofh/) no meio dos gentios, para que, naquilo que falam contra vós outros como de malfeitores, observando-vos em vossas boas obras, glorifiquem a Deus no dia da visitação. (…) Porque assim é a vontade de Deus, que, pela prática do bem, façais emudecer a ignorância dos insensatos. (1Pe 2.12,15).

Santificai a Cristo, como Senhor, em vosso coração, estando sempre preparados para responder a todo aquele que vos pedir razão da esperança que há em vós, fazendo-o, todavia, com mansidão e temor, com boa consciência, de modo que, naquilo em que falam contra vós outros, fiquem envergonhados os que difamam o vosso bom procedimento em Cristo (th\n a)gaqh\n e)n xrist+%= a)nastrofh/n). (1Pe 3.15-16).

            Pedro, particularizando a questão, orienta às mulheres crentes a como conquistarem para Cristo seus maridos incrédulos:

Mulheres, sede vós, igualmente, submissas a vossos próprios maridos, para que, se alguns deles ainda não obedecem à palavra, sejam ganhos, sem palavra alguma, por meio do procedimento (a)nastrofh/) de suas esposas, ao observarem o vosso honesto comportamento (a(gnh\n [12] a)nastrofh\n u(mw=+n) cheio de temor” (1Pe 3.1-2).

A palavra “honesto”, pode ser também traduzida por puro e santo comportamento. Para poderem viver assim, as esposas precisam pedir sabedoria a Deus, visto que a sabedoria de Deus apresenta esta qualidade: “A sabedoria, porém, lá do alto, é primeiramente pura (a(gno/j)….” (1Pe 3.17).

São Paulo, 08 de junho de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]Hoekema assim define: “o retorno consciente da pessoa regenerada, para longe do pecado e para perto de Deus, numa completa mudança de vida, manifestando-se numa nova maneira de pensamento, sentimento e vontade” (Anthony A. Hoekema. Salvos Pela Graça, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1997, p. 133). Especialmente, p. 133-135.

[2]Ver: Herman Bavinck, Teologia Sistemática,Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 479-480.

[3]J.I. Packer, Teologia Concisa,São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 152.

[4] Leon Morris, Perdão: In: J.D. Douglas, ed. org.O Novo Dicionário da Bíblia,v. 3, p. 1268a.

[5]João Calvino, Exposição de Hebreus,(Hb 6.6), p. 155.

[6] Cf. Herman Bavinck, Teologia Sistemática,p. 479.

[7] Cf. J. Goetzmann, Conversão: In: Colin Brown, ed. ger.O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 1, p. 499.

[8] “O arrependimento é fruto da fé, que é, ela própria, fruto da regeneração. Contudo, na vida real, o arrependimento é inseparável da fé, sendo o aspecto negativo (a fé é o aspecto positivo) de voltar-se para Cristo como Senhor e Salvador. A ideia de que pode haver fé salvadora sem arrependimento, e que uma pessoa pode ser justificada por aceitar Jesus como Salvador, e ao mesmo rejeitá-lo como Senhor, é uma ilusão destrutiva” (J.I. Packer, Teologia Concisa, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 152-153).

[9] Ver: G. Ebel, Andar: In: Colin Brown, ed. ger.Teologia do Novo Testamento, O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento,São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 1, p. 205-207.

[10] Ma/taioj = Vão, fútil, tolo, sem valor. (*At 14.15; 1Co 3.20; 15.17; Tt 3.9; Tg 1.26; 1Pe 1.18). Mataio/thj = Vaidade, futilidade, vacuidade (*Rm 8.20; Ef 4.17; 2Pe 2.18). “Na literatura grega, mataios e seus cognatos têm como pano de fundo certos valores estabelecidos, padrões morais, realidades religiosas, verdades e fatos reconhecidos. A conduta de qualquer pessoa que os deixa passar despercebidos, deliberadamente ou sem ser consciente disso, cai sob o julgamento de ser mataios” (E. Tiedtke, Vazio: In: Colin Brown, ed. ger. Teologia do Novo Testamento, O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento,v. 4, p, 692).

[11]Ver: J.I. Packer, O Conhecimento de Deus,p. 121. “Ainda que este perdão seja gratuito para os pecadores, nunca devemos esquecer-nos de que Cristo pagou um alto preço por ele. Perdão para a menor das nossas ofensas só se tornou possível porque Cristo cumpriu as mais aflitivas condições – Sua encarnação, Sua perfeita obediência à lei divina e Sua morte na cruz. O perdão que é absolutamente gratuito ao pecador teve um alto custo para o Salvador” (A. Booth, Somente pela Graça,p. 31).

[12] a(gno/j = Santo, puro, casto, inocente (*2Co 7.11; 11.2; Fp 4.8; 1Tm 5.22; Tt 2.5; Tg 3.17; 1Pe 3.2; 1Jo 3.3). A palavra que era empregada para a pureza ritual e cerimonial, passou a ser utilizada dentro da esfera ética, indicando a pureza e honestidade moral.

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