A forma de orar e o perigo do formalismo

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A Palavra de Deus insiste conosco quanto à necessidade que temos de orar, já que a oração foi instituída e é ensinada por Deus por nossa causa, para o nosso bem, não por alguma carência no ser de Deus. Aliás, os preceitos de Deus não visam simplesmente satisfazê-lo, mas, sim, propor caminhos para o homem, os quais, seguindo, será feliz e Deus será glorificado. Deus é glorificado por meio da obediência do Seu povo e somente assim o homem pode encontrar o sentido da vida e da eternidade.

 

Aliás, qual cristão não teria algo a dizer a respeito da graça da oração? Do seu significado para a sua vida cotidiana? Do conforto que pôde usufruir em momentos de angústia e tensão?  A oração é um dos maiores privilégios que Deus nos concedeu visando a nossa edificação, conforto, alívio e, principalmente, como veículo de expressão de nossa adoração e gratidão ao nosso Pai Celestial.

 

O povo judeu era caracterizado por uma correta ênfase dada à oração. No Antigo Testamento, encontramos uma riqueza de referências à oração bem como uma demonstração vívida desta prática por parte do povo de Deus. Os ensinamentos rabínicos também traziam orientações diversas sobre a relevância e a necessidade dos homens manterem-se em comunhão com Deus por intermédio da oração.

 

Porém, com o passar do tempo – apesar de não haver nenhum ensinamento    contrário –, penetraram alguns vícios na prática da oração.

 

Barclay (1907-1978) comenta:

 

O problema com qualquer sistema não está no sistema em si, senão nos homens que o usam. Qualquer sistema de oração pode converter-se em um instrumento devocional autêntico ou em uma formalidade que deve despachar-se o mais rápido possível, sem pensar em demasia em seu conteúdo.[1]

 

A corrupção de uma prática geralmente está associada à matéria ou à forma; ou seja, em nome de uma suposta liberdade espiritual, podemos destruir toda a forma ensinada, considerando-a irrelevante; o que de fato pode acontecer. Outro modo de corrupção consiste em manter-se a forma estabelecida, tornando-se extremamente detalhista no aspecto visual, no seu aparato mas sem o espírito correto: destrói-se, assim, a essência do preceito. Parece-nos que este equívoco era o mais comum em Israel (1 Sm 15.22; Is 1.10-17; Os 6.6; Am 5.21-22; Mq 6.6-8), ainda que não o único (2 Cr 26.16-20; Ml 1.6-14).

 

Seguindo Barclay, podemos dizer que a palavra chave para estes vícios era o formalismo.[2]

 

Na prática da oração dos judeus, observamos quatro características principais que não eram necessariamente erradas, mas que tendiam a fortalecer um costume apenas formal, destituído do genuíno espírito que deve caracterizar todo o nosso procedimento religioso. Ei-las:

1. Formalismo quanto ao tempo

Os judeus devotos oravam, ainda que não exclusivamente, três vezes ao dia: às três, às seis e às nove horas. Estas horas equivalem às nossas nove, doze e quinze horas. (Veja-se: Dn 6.10; At 3.1).

 

2. Formalismo quanto ao lugar

O lugar principal de oração era o Templo ou a Sinagoga.

 

3. Formalismo quanto à forma da oração

Os judeus tinham duas orações principais:

a) Shemá:[3] (“ouve”), o “credo judeu”,[4] que consistia na leitura de Dt 6.4-9; 11.13-21 e Nm 15.37-41 e, possivelmente, Dt 26.5-9.[5] O “Shemá” era repetido três vezes ao dia.[6]

 

b) Shemone Esreh: (“Dezoito Bênçãos”). Estas bênçãos consistiam em uma série de louvores a Deus.[7] Também deveriam ser recitadas três vezes durante o dia. Posteriormente, já no período neotestamentário, o número de bênçãos teve o acréscimo de uma oração contra os hereges (Bênção nº 11); todavia para que o número 18 não fosse alterado, a bênção de nº 14 foi unida com a de nº 15.

 

Ambas as orações eram usadas liturgicamente.[8] Mesmo havendo alguns rabinos que se insurgissem contra a prática de se fixar as palavras desta oração, havia uma tendência de estabelecê-la de forma definida.[9]

4) Formalismo quanto à extensividade da oração

Muitos judeus entendiam que a oração para ser ouvida deveria ser longa e repetitiva.

Devemos observar que muitos judeus praticavam estes princípios com sinceridade; outros, entretanto, oravam de forma mecânica, como se estivessem repetindo uma série de sons sem sentido. Os rabinos, por sua vez, procuravam, em seus escritos, corrigir alguns destes desvios, mostrando o espírito correto que deve nortear a oração, contudo, os seus esforços, se não foram em vão, não eliminaram tal prática.[10]

 

No Novo Testamento, Jesus Cristo enfatizou a necessidade de os seus discípulos orarem, sendo Ele mesmo um modelo de oração para todos nós. Todavia, deve ser ressaltado que Jesus não exercitava a oração apenas para ser um exemplo para nós, antes “a oração foi, em algum sentido misterioso, uma parte necessária de Sua vida ministerial” (James Hastings, La Doctrina Cristiana de la Oración, Buenos Aires, Reproduzida de “La Reforma”, Revista 1920, p. 91).

 

No Texto de Mateus 6.5-15, Jesus combate algumas práticas erradas de oração e apresenta princípios que devem nortear a oração cristã. Como a Bíblia – a Palavra de Deus – é o nosso manual de oração, precisamos aprender com ela como devemos orar, por meio dos ensinamentos de Cristo.

 

João Calvino comenta:

 

A oração está propriamente fundamentada na Palavra de Deus. Não temos a liberdade, nesta matéria, de seguir as sugestões de nossa própria mente e arbítrio, mas devemos buscar a Deus somente até onde Ele nos convidou a aproximar-nos dele.[11]

 

A Oração do Senhor se constitui num modelo de oração para toda a Igreja em todos os tempos; por meio de seu estudo, podemos, mediante a iluminação do Espírito Santo, aprender uma série de princípios e orientações que devem nos guiar na escola da oração.

 

Continua Calvino em lugares diferentes:

 

Esta oração é tão perfeita que qualquer outra coisa que lhe seja acrescentada não a melhorará em nada, é contra Deus, e disso nenhum benefício nos será concedido por Ele. Porque na oração do Senhor nos é declarado tudo o que Lhe é agradável, tudo o que nos é necessário e tudo o que Ele nos quer dar.[12]

Em toda a divina Escritura nos é dada grande e copiosa doutrina disto; mas para melhor encaminhar-nos a um determinado fim o Senhor nos deu uma forma conveniente de orar, na qual compreendeu brevemente tudo o que convém pedir a Deus, e o dispôs em poucas petições.[13]

 

Na Oração do Senhor – “que é a oração representativa de todas”[14] –, encontramos uma “fórmula”, um “roteiro”, no qual o Senhor Jesus “nos propôs tudo quanto dele é lícito buscar, tudo quanto conduz ao nosso benefício, tudo quanto é necessário suplicar”, resume Calvino (1509-1564).[15] Acontece que, na prática, este privilégio só pode ser exercitado após termos aprendido, de forma vivencial, que tudo que é-nos necessário está em Deus. Portanto, ultrapassar esses princípios é, segundo Calvino, pecar contra Deus:

 

Todos os que queiram ir além dos termos da oração do Senhor e pretendam pedir a Deus algo que não esteja incluído e subentendido nela, cometem tríplice erro: Primeiro, querem acrescentar algo da sua sabedoria à de Deus (o que é uma grande blasfêmia); segundo, não se contentam com a vontade de Deus e não se mantêm subordinados a ela; terceiro, não serão ouvidos, porque não oram com fé. Pois é absolutamente certo que eles não podem orar com fé. Porque eles não têm nenhuma palavra de Deus a seu favor, e, se a fé não se apoiar no que Deus diz, não é fé. E não somente eles não têm coisa alguma da Palavra de Deus, mas também sempre e tanto quanto podem a transgridem.[16]

 

A Oração do Senhor sempre foi apreciada pela igreja.[17] Quanto ao seu uso litúrgico, não sabemos a partir de quando ela passou a ser empregada. Todavia, esta prática pode ser atestada como algo corrente em meados do 4º século, conforme evidencia Cirilo de Jerusalém (c. 315-386) na sua 23ª “Catequese Mistagógica” (c. 350).[18]

 

A Igreja, portanto, sempre teve um grande apreço por essa oração. Não sem razão. Nela temos o ensino do Senhor de como devemos nos aproximar do Pai, com reverência e sinceridade. Retornaremos a esse assunto. Que Deus mesmo nos conceda o espírito de oração!

 

 

Maringá, 16 de novembro de 2018.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 


 

[1]William Barclay, El Nuevo Testamento Comentado, Buenos Aires, La Aurora, 1973, (Mateo I), v. 1, p. 208.

[2] Cf. W. Barclay, El Padrenuestro, Buenos Aires: La Aurora; ABAP, 1985, p. 22-32.

[3] É a primeira palavra que aparece em Dt 6.4, derivada do verbo (((amf$) (Shãma’), “ouvir”, envolvendo normalmente a ideia de ouvir com afeição. (Veja-se: Hermann J. Austel, Shãma’: In: R.L. Harris, et. al. eds. Theological Wordbook of the Old Testament, 2. ed. Chicago, Moody Press, 1981, v. 2, p. 938-939).

[4] Conforme expressão de Edersheim (1825-1889). Veja-se: A. Edersheim, La Vida y los Tiempos de Jesus el Mesias, Barcelona: CLIE, 1988, v. 1, p. 491.

[5] Cf. G.W. Bromiley, Credo, Credos: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1988-1990, v. 1, p. 365.

[6] Quanto ao emprego desta oração feita pelos judeus individualmente, Veja-se: Shemá: In: Alan Unterman, Dicionário Judaico de Lendas e Tradições, Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed. 1992, p. 242.

[7] A. Edersheim transcreve seis destas bênçãos; Veja-se: La Vida y los Tiempos de Jesus el Mesias, v. 1, p. 492-494.

[8] Veja-se: Hermisten M. P. Costa, Teologia do Culto, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1987,  p. 19.

[9] Compare as informações de A. Edersheim, La Vida y los Tiempos de Jesus el Mesias, v. 1, p. 492 com as de William D. Maxwell,  El Culto Cristiano: sua evolución e sus formas, Buenos Aires: Methopress Editorial y Grafica, 1963, p. 17.

[10] A.W. Pink acredita que devido à nossa presunção, hipocrisia, insensibilidade, frieza e falta de fé, “o povo do Senhor, com toda probabilidade, peca mais em seus esforços para orar do que em conexão com qualquer outra coisa que costuma fazer” (A.W. Pink, Enriquecendo-se com a Bíblia, São Paulo: FIEL. 1979, p. 39-40).

[11] João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 2002, v. 3, (Sl 91.15), p. 457.

[12]João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 3, (III.9), p. 134.

[13]J. Calvino, Catecismo de Genebra, Perguntas 255 e 256. In: Catecismos de la Iglesia Reformada, Buenos Aires: La Aurora, 1962; Ver também: Catecismo Menor de Westminster, Pergunta 99.

[14]James Hastings, La Doctrina Cristiana de la Oración, p. 92.

[15] J. Calvino, As Institutas, III.20.34. Do mesmo modo Lutero diz (1483-1546), que nesta oração “estão compreendidas (…) todas as necessidades que incessantemente nos atingem, e cada qual é tão grande que deverá impelir-nos a rogar por causa dela ao longo de toda a nossa vida” (Catecismo Maior, III.34). Veja-se também, Catecismo de Genebra, Perg. 255; Catecismo Maior de Westminster, Perg. 186.

[16] João Calvino, As Institutas, (1541), III.9. Na sequência, explica: “Só o que desejamos ensinar é que de maneira nenhuma ninguém busque, nem espere nem peça outra coisa senão o que sumariamente esta oração contém. E que, embora se faça pedido bem diferente nos termos empregados, que o sentido não varie nem um pouco. Como é certo que todas as outras orações da Escritura [1539] e aquelas das quais os crentes fazem uso [1536] reportam-se a esta. A verdade é que não se pode encontrar nenhuma outra que, não somente se deva preferir, mas também que se possa equiparar à perfeição desta. Porque de tudo o que se possa pensar dos louvores que devemos elevar a Deus, nada é deixado fora, como também nada se omite de tudo o que o homem deve desejar para seu proveito e para a sua comodidade. E ela abrange tudo com tal perfeição que frustra completamente toda a esperança de que se possa inventar outra fórmula de oração melhor. Em suma, lembremo-nos de que esta oração é doutrina da sabedoria de Deus, que ensinou o que quis, e que quis o que é necessário” (João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 3, (III.9), p. 135)

[17] No Didaquê (c. 150), encontramos a recomendação de que esta oração fosse feita três vezes ao dia (Didaquê, capítulo 8).

[18] Cirilo de Jerusalém, Catechetical Lectures, XXIII, In: P. Schaff; H. Wace, eds. Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church, (Second Series), Grand Rapids, Michigan:  Eerdmans, 1978, Vol. VII, p. 155-157.. Veja-se: comentário a respeito em J. Jeremias, O Pai-Nosso: A Oração do Senhor, São Paulo: Paulinas, 1976, p. 5-6.

 

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