A “fé explícita” e a necessidade de uma fé consistente

A Reforma Protestante no seu período de consolidação teológica, se deparou com a necessidade de sistematizar a sua fé distinguindo-se não simplesmente do grande outro que seria a igreja católica romana, mas, também, aprofundar e pontuar aquilo que a diferenciava de outros grupos protestantes. Considerando a autonomia individual proclamada pela Reforma, estes ensinamentos deveriam ser inteligíveis ao cristão mais simples, para que ele pudesse filiar-se à igreja, conhecendo o que ela cria e ensinava.

Calvino (1509-1564) já combatera a “fé implícita” (fides implicita) – que era patente na teologia católica –, declarando que a nossa fé deve ser “explícita” (fides explicita). Ou seja: o fiel deve conhecer aquilo que crer. No entanto, ressalta que devido ao fato de que nem tudo foi revelado por Deus, bem como à nossa ignorância e pequenez espiritual, muito do que cremos permanecerá nesta vida de forma implícita.

Calvino depois de um extenso comentário, nos diz: “Certamente que não nego (de que ignorância somos cercados!) que muitas cousas nos sejam agora implícitas, e ainda o hajam de ser, até que, deposta a massa da carne, nos hajamos achegado mais perto à presença de Deus, cousas essas em que nada pareça mais conveniente que suspender julgamento, mas firmar o ânimo a manter a unidade com a Igreja. Com este pretexto, porém, adornar com o nome de fé à ignorância temperada com humildade, é o cúmulo do absurdo. Ora, a fé jaz no conhecimento de Deus e de Cristo (Jo 17.3), não na reverência à Igreja” (J. Calvino, As Institutas, III.2.3).

Em outro lugar: “Que costume é esse de professar o evangelho sem saber o que ele significa? Para os papistas, que se deixam dominar pela fé implícita, tal coisa pode ser suficiente. Mas para os cristãos não existe fé onde não haja conhecimento” (João Calvino, Gálatas, São Paulo: Paracletos, 1998, (Gl 1.2), p. 25).

Pelas palavras de Calvino, podemos observar a necessidade latente do ensino e estudo constante da Palavra de Deus, a fim de que cada homem, sendo como é, um ser responsável, tenha condições de se posicionar diante de Deus de forma consciente. A fé explícita é patenteada pela igreja por intermédio do ensino da Palavra.

Entende que a prática de afastar o povo da Palavra, mantendo-o na ignorância, é uma atitude anticristã e altamente prejudicial: “Daqui se faz evidente que espécie de cristianismo existe dentro do papado, onde não só é a crassa ignorância exaltada em nome da simplicidade, mas também o povo é rigidamente proibido de buscar o real discernimento” (João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 5.14), p. 143). Ao mesmo tempo lamenta que nem todos, mesmo tendo oportunidade, têm usado deste privilégio: o estudo das Escrituras: “A Palavra de Deus, a única norma do genuíno discernimento, a qual é aqui declarada como indispensável a todos os cristãos. Mesmo entre os que já foram libertados de tão diabólica proibição e que já desfrutam da liberdade de aprender, há, não obstante, indiferença tanto em ouvir quanto em ler. Quando negligenciamos tal disciplina, nos tornamos insensíveis e destituídos de todo e qualquer discernimento” (João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 5.14), p. 143).

Tillich (1886-1965), a despeito de muitos desvios teológicos, interpreta corretamente essa compreensão: “Cada indivíduo deve ser capaz de confessar os próprios pecados, experimentar o significado do arrependimento, e se tornar certo de sua salvação em Cristo. Essa exigência gerava um problema no protestantismo. Significava que todas as pessoas precisavam ter o mesmo conhecimento básico das doutrinas fundamentais da fé cristã. No ensino dessas doutrinas não se emprega o mesmo método para o povo comum e para os candidatos às ordens, ou para os futuros professores de teologia, com a prática do latim e grego, da história da exegese e do pensamento cristão. Como se pode ensinar a todos? Naturalmente, apenas se tornarmos o ensino extremamente simples” (Paul Tillich, Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX, São Paulo: ASTE., 1986, p. 41).

Essa necessidade, determina o uso cada vez mais evidente da razão a fim de apresentar de forma mais razoável possível a doutrina, e ao mesmo tempo, de forma simples. Eis dois marcos do ensino ortodoxo: amplitude e simplicidade. O ser humano é responsável diante de Deus; ele dará contas de si mesmo ao seu Criador. Portanto, tendo oportunidade, ele precisa conhecer devidamente a Palavra de Deus em toda a sua plenitude revelada.

Nesse período (séculos XVI e XVII) são compostas diversas Confissões e Catecismos, que além de visar preservar a sã doutrina, objetivavam tornar clara e objetiva a fé dos crentes. Essas declarações de fé precisavam ser, até certo ponto, completas. Entretanto, precisavam ao mesmo tempo ser simples, para que o crente comum (não iniciado nas questões teológicas) pudesse entender o que estava sendo dito. Avaliando esse com a Palavra de Deus, o crente teria, assim, uma compreensão mais amplamente bíblica da sua fé.

Lutero (1483-1546) exerceu poderosa influência por meio de seus Catecismos: O Catecismo Maior (abril de 1529) e principalmente, O Catecismo Menor (maio de 1529), ambos escritos em alemão. No prefácio do Catecismo Menor, Lutero declara os motivos que o levaram a redigir este Catecismo e, apresenta também sugestões de como ensiná-lo à Congregação. No decorrer dos sete capítulos, ele quase sempre inicia dizendo: “Como o chefe de família deve ensiná-lo à sua casa” ou: “Como o chefe de família deve ensiná-lo com toda a simplicidade à sua casa” e expressões similares.

Transcreverei apenas o que Lutero disse a respeito das suas motivações: “A lamentável e mísera necessidade experimentada recentemente, quando também eu fui visitador, é que me obrigou e impulsionou a preparar este catecismo ou doutrina cristã nesta forma breve, simples e singela. Meu Deus, quanta miséria não vi! O homem comum simplesmente não sabe nada da doutrina cristã, especialmente nas aldeias. E, infelizmente, muitos pastores são de todo incompetentes e incapazes para a obra do ensino (…). Não sabem nem o Pai-Nosso, nem o Credo, nem os Dez Mandamentos”. (Martinho Lutero, Catecismo Menor: In: Os Catecismos, São Leopoldo, RS.; Porto Alegre, RS.: Concórdia; Sinodal, 1983, p. 363)

Em síntese, podemos dizer que o princípio da fé explícita foi um dos fermentos poderosos na promoção da tradução das Escrituras para diversos idiomas, a elaboração de Confissões, a criação de escolas, o progresso nas ciências e, a sistematicidade do ensino cristão em nossas igrejas. Hoje, dia 31 de outubro, quando comemoramos o aniversário da Reforma Protestante (1517), devemos ser gratos a Deus por esse movimento teológico-espiritual que trouxe grandes contribuições para a sociedade em diversos níveis, a começar pelo aspecto teológico, que se irradia na vivência consciente e comprometida de nossa fé em todas as esferas de nossa existência.

São Paulo, 30 de outubro de 2018.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

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