Uma oração intercessória pela Igreja (107)

               B) “Até Aos Confins da Terra” (Continuação)

                        3) Por intermédio do zelo cego de Saulo em perseguir os cristãos, Deus o chamou eficazmente (At 9.1-5), regenerando-o, porque, para Deus, Saulo era “um instrumento escolhido para levar o meu nome perante os gentios e reis, bem como perante os filhos de Israel” (At 9.15). Mais tarde, Paulo, o antigo Saulo, escreveu aos gálatas: “Quando, porém ao que me separou antes de eu nascer e me chamou pela sua graça, aprouve revelar seu Filho em mim, para que eu pregasse entre os gentios” (Gl 1.14,15). Saulo, o grande perseguidor, agora era Paulo, o apóstolo de Cristo levando a mensagem salvadora do Evangelho a todos os povos, chegando à capital gentílica (Roma) e, desejando prosseguir em sua missão, se possível, atingir a Espanha (At 28.16ss; Rm 15.22-29).

            Por meio do trabalho de Filipe, Pedro, Paulo, Barnabé, Silas, Timóteo, Tito e de milhares de irmãos anônimos, o evangelho proliferou em todos os continentes. Nós hoje somos herdeiros dessa proclamação. O crescimento da Igreja impulsionado pelo Espírito era operado por intermédio de todos os irmãos. Todos estavam comprometidos com a obra missionária quer em suas cidades quer em outras regiões.[1]

            A Igreja no Novo Testamento logo enfrentou uma série de perseguições, geradas num primeiro momento, pelos judeus que incitavam as autoridades romanas. Para citar apenas algumas, temos a perpetrada contra Estevão, que morreu apedrejado (At 7.1-60); a de Herodes Agripa I, que prendeu a Pedro e decapitou Tiago (At 12.1-3); Paulo, o antigo perseguidor do Evangelho, foi aquele que mais sofreu perseguições (At 9.23-25,29; 14.2-7,19; 16.19-24; 17.4-9, 13-15; 21.30-32).

            Escrevendo aos coríntios, Paulo faz um resumo do que havia sofrido pelo evangelho de Cristo (2Co 11.23-33). Contudo, havia nele, uma visão constante que transpunha o sentimento de dor e angústia. Na prisão, escreveu aos filipenses: “Quero ainda, irmãos, cientificar-vos de que as cousas que me aconteceram têm antes contribuído para o progresso do evangelho” (Fp 1.12) e, diz mais: “Alegrai-vos sempre no Senhor, outra vez digo, alegrai-vos” (Fp 4.4). O Evangelho prosseguia em sua caminhada vitoriosa a despeito dos obstáculos erguidos contra ele.

            Paulo estava convencido, e demonstrava isto na prática, que Deus nos faz vencer os obstáculos que estão à nossa frente.

            A perseguição não se encerrou no primeiro século; a Igreja ao longo de toda a história tem sido alvo de ataques físicos, morais, intelectuais e espirituais; todavia, ao lado dessas afrontas, ela tem podido desfrutar da presença confortadora do Espírito Santo. O Espírito que habita em nós, nos conforta em todos os momentos, nos amparando quando parece que não temos onde ou em quem nos apoiar.

            “Assim, o Espírito Santo é o autor imediato de toda a verdade, de toda a santidade, de toda a consolação, de toda a autoridade e de toda a eficiência nos filhos de Deus, individualmente, e na Igreja, coletivamente”, aplica Hodge.[2] De fato, o Senhor Jesus não nos deixou órfãos. Ele, ele mesmo, está conosco aqui e agora e para sempre (Jo 14.16-18/At 9.31).

            Conforme já mencionamos, os registros históricos de que dispomos a partir do segundo século, relatam que apesar de perseguidos, os cristãos continuaram corajosamente dando o seu testemunho, sabendo que o martírio era com frequência, o caminho a ser involuntariamente seguido.

            Aqui se torna oportuno transcrever parte de um documento anônimo, escrito ao que parece no final do 2° século, intitulado Carta a Diogneto,que consistia numa explicação do pensamento, conduta e fé cristã, dirigida a um pagão que, impressionado com o testemunho cristão, queria saber mais a respeito dessa religião.[3]

Os cristãos, de fato, não se distinguem dos outros homens, nem por sua terra, nem por língua ou costumes. Com efeito, não moram em cidades próprias, nem falam língua estranha, nem têm algum modo especial de viver. Sua doutrina não foi inventada por eles, graças ao talento e especulação de homens curiosos, nem professam, como outros, algum ensinamento humano. Pelo contrário, vivendo em cidades gregas e bárbaras, conforme a sorte de cada um, e adaptando-se aos costumes do lugar quanto à roupa, ao alimento e ao resto, testemunham um modo de vida social admirável e, sem dúvida, paradoxal. Vivem na sua pátria, mas como forasteiros; participam de tudo como cristãos e suportam tudo como estrangeiros. Toda pátria estrangeira é pátria deles, e cada pátria é estrangeira. Casam-se como todos e geram filhos, mas não abandonam os recém-nascidos. Põem a mesa em comum, mas não o leito; estão na carne, mas não vivem segundo a carne; moram na terra, mas têm sua cidadania no céu; obedecem às leis; amam a todos e são perseguidos por todos (…). Pelos judeus são combatidos como estrangeiros, pelos gregos são perseguidos, e aqueles que os odeiam não saberiam dizer o motivo do ódio.[4]

            O crescimento dos cristianismo pode ser explicado humanamente pelo fato de que eles criam no que pregavam; acreditavam na veracidade histórica de sua mensagem; criam no poder de Deus que os transformou.

            Por volta do ano 197 AD., Tertuliano (145-220) escrevendo aos romanos  defendendo os cristãos e mostrando a sua integridade, revela a expansão do cristianismo:

Nós somos de ontem, e já enchemos a terra de tudo o que lhes pertence – as cidades, as ilhas, as fortificações, os municípios, as povoações, os próprios acampamentos, as tribos, as empresas, o palácio, o senado, o fórum–. Deixamos para vocês apenas os templos e seus deuses.[5]

            Isso tudo em meio à forte perseguição, como escreveria à frente:  “Mas não servem para nada vossas crueldades mais refinadas. Elas são, antes, um atrativo para nossa seita. Nós nos tornamos mais numerosos, cada vez que vós nos ceifais: O sangue dos cristãos é semente”.[6]

            Antes de 313, quando o Imperador Constantino (c. 274-337) promulgou a liberdade de culto pelo Édito de Milão (313), no qual declarava o fim das perseguições aos cristãos e a restituição de suas propriedades,[7] o Cristianismo como religião “subversiva”, realizava as suas reuniões secretamente; agora, os cristãos dispõem de templos[8] e podem adorar publicamente.

            Eusébio de Cesaréia, no início do quarto século, descreve o trabalho dos Evangelistas:

Efetivamente, muitos dos discípulos de então, feridos em suas almas pela palavra divina (…) logo empreendiam viagem e realizavam obra de evangelistas, empenhados em pregar a todos os que não haviam ouvido a palavra da fé e em transmitir por escrito os evangelhos divinos.[9]

            Os crentes comuns tornaram-se grandes missionários por meio de seu testemunho.

            Harnack (1851-1930) escreve:

Os missionários mais numerosos e bem-sucedidos da religião cristã não foram os mestres, mas os cristãos comuns, por causa de sua lealdade e coragem (…). Era característica dessa religião que todos que confessassem a fé se dedicassem ao serviço de sua propagação (…). Não podemos hesitar em crer que a grande missão do cristianismo foi, na realidade, realizada por meio dos missionários informais.[10]

            Mesmo com uma história de discriminação, perseguição e martírio, o Cristianismo cresceu. Em 330, Constantino (c. 280-337 AD) inaugurou a cidade de Constantinopla transferindo a capital de Roma para a nova cidade. Numa carta a Eusébio, bispo de Cesaréia, Constantino pedindo com urgência a preparação de 50 Bíblias para a nova capital, revela algo a respeito do crescimento do número de cristãos e de igrejas:

Com a ajuda da providência de Deus, nosso Salvador, são muitíssimos os que se hão incorporado à santíssima Igreja na cidade que leva o meu nome. Parece, pois, mui conveniente que, respondendo ao rápido progresso da cidade sob todos os aspectos, se aumente também o número de Igrejas.[11]

Maringá, 17 de julho de 2023.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] Veja-se: Iain Murray, A Igreja: Crescimento e Sucesso: In: Fé para Hoje,São José dos Campos, SP.: Fiel, nº 6, 2000, p. 19ss.

[2]Charles Hodge, Teologia Sistemática,São Paulo: Editora Hagnos, 2001, p. 396.

[3] Veja-se: Carta a Diogneto, I: In: Padres Apologistas,São Paulo: Paulus, 1995, p. 19.

[4] Carta a Diogneto, V.1-11,17: In: Padres Apologistas, p. 22-23.

[5]Tertulian, Apology, 37:In: Alexander Roberts; James Donaldson, eds. Ante-Nicene Fathers, 2. ed.Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1995, v. 3, p. 45.

[6]Tertulian, Apology, 50:In: Alexander Roberts; James Donaldson, eds. Ante-Nicene Fathers, 2. ed.Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1995, v. 3, p. 55.

[7]Veja-se:Eusebio de Cesarea, Historia Eclesiástica,Madrid: La Editorial Catolica, S.A. (Biblioteca de Autores Cristianos, v. 349 e 350), X.5.2-14. Sobre outras disposições de Constantino em favor dos cristãos, Vd.Eusebio de Cesarea, Historia Eclesiástica, X.5.15-17.

[8] É digno de nota que, o imperador Alexandre Severo (reinou durante o período de 222-235), foi o primeiro a construir um “templo cristão” (Cf. H.H. Halley, Manual Bíblico,2. ed. São Paulo: Vida Nova, 1971, p. 672). Todavia, ele “tinha em sua capela estátuas de Orfeu, Alexandre o Grande, de vários imperadores romanos e de Jesus. (sic!)” (K.S. Latourette, Historia del Cristianismo,4. ed. Buenos Aires: Casa Bautista de Publicaciones, 1978, v. 1, p. 126).

[9]Eusebio de Cesarea, Historia Eclesiástica, Madrid: La Editorial Catolica, S.A. (Biblioteca de Autores Cristianos, v. 349 e 350), III.37.2.

[10]Adolf von Harnack, The Mission and Expansion of Christianity in the First Three Centuries, New York: Harper & Brothers, 1962, p. 366-368.

[11]Eusebio, The Life of Constantine,IV.36: In: Philip Schaff; Henry Wace, eds. Nicene and Post-Nicene Fathers of Christian Church, (Second Series), Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, (reprinted), 1978, v. 1, p. 549.

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