Uma fé que investiga e uma ciência que crê (40)


4.6. O Iluminismo e a moderna ciência moderna (Continuação)

Kant (1724-1804), um dos maiores expoentes desse movimento, ilustrou bem o espírito da sua época, na sua famosa definição de Iluminismo. Em 1784, em um artigo para uma revista, Kant se perguntou: “O Que é o Iluminismo?”. Ele respondeu:

O Iluminismo é a emancipação de uma menoridade que só aos homens se devia. Menoridade é a incapacidade de se servir do seu próprio intelecto sem a orientação de um outro. Só a eles próprios se deve tal menoridade se a causa dela não for um defeito do intelecto mas a falta de decisão e de coragem de se servir dele sem guia. “Sapere aude! Tem a coragem de te servires do teu próprio intelecto!’ é o lema do Iluminismo”.[1]

            Considerando que se durante séculos a simbiose entre Cristianismo e paganismo com suas várias vertentes foram importantes para se autossustentarem, agora, com a autonomia da razão, a ciência não precisa mais de Deus, de fé e da religião. Estas muletas indesejadas podem ser jogadas fora.

Por isso, Nietzsche (1844-1900), quase 100 anos depois, saúda essa “maioridade”, jubilosamente, quando escreve em 1882:

O maior dos acontecimentos recentes – que “Deus está morto”, que a crença no Deus cristão caiu em descrédito – já começa a lançar suas primeiras sombras sobre a Europa. Para os poucos, pelo menos, cujos olhos, cuja suspeita nos olhos é forte e refinada o bastante para esse espetáculo, parece justamente que algum sol se pôs, que alguma velha, profunda confiança virou dúvida: para eles, nosso velho mundo há de aparecer certo dia a dia mais poente, mais desconfiado, mais alheio, mais “velho”. (…) De fato, nós filósofos e “espíritos livres” sentimo-nos, à notícia de que “o velho Deus está morto”, como que iluminados pelos raios de uma nova aurora; nosso coração transborda de gratidão, assombro, pressentimento, expectativa – eis que enfim o horizonte nos aparece livre outra vez, posto mesmo que não esteja claro, enfim podemos lançar outra vez ao largo nossos navios, navegar a todo perigo, toda ousadia do conhecer é outra vez permitida. O mar, nosso mar, está outra vez aberto, talvez nunca dantes houve tanto “mar aberto”.[2]

            Zilles comenta:

A partir da morte de Deus tudo é reavaliado. A terra ocupa lugar de deus. Convencendo-se de que Deus morreu, o homem se abre livremente para suas possibilidades. No lugar do Deus cristão e do reino das ideias platônicas põe a terra. Após a morte de Deus, o homem fala para o homem, invocando sua possibilidade suprema: o super-homem.[3]

            Prevalece a compreensão de que o homem, por meio de sua razão, é a lei para si mesmo. É ele quem se governa, não um outro (heteronomia).[4] Kant (1724-1804), assim escreveu: “Autonomia da vontade é aquela sua propriedade graças a qual ela é para si mesma a sua lei… Pela simples análise dos conceitos da moralidade pode-se, porém, mostrar muito bem que o citado princípio da autonomia é o único princípio da moral”.[5]

Tillich (1886-1965), assim define esse conceito: “Representa a vida humana vivida segundo a lei da razão em todos os aspectos da atividade espiritual (…). Para os indivíduos, autonomia é a coragem de pensar; coragem de se valer dos próprios poderes racionais”.[6]

            Conforme mencionamos, dentro desse espírito, a tradição é rejeitada. “Na tradição, o Iluminismo vê uma força hostil que mantém vivas crenças e preconceitos que é sua obrigação destruir”, resume Abbagnano Abbagnano (1901-1990).[7] Na realidade, prevalece a compreensão de que tradição e erro coincidem.

            O título de uma obra de Kant, escrita em 1793 – ainda que seja simples abstração[8] – retrata bem esse período: A Religião Dentro dos Limites da Simples razão.[9] Ela se tornou, conforme expressão de Braaten, o manifesto religioso para o Iluminismo.[10]

            No entanto, deve ser dito que o Iluminismo carrega em seu bojo o germe de sua própria destruição. O escocês David Hume (1711-1776), embalado nesses conceitos, aplicou o ceticismo à religião e à capacidade da mente humana de conhecer o mundo externo. Ele “empregava a razão até aos limites para mostrar as limitações da razão”, interpreta Brown (1932-2019).[11] Lembremo-nos de que foi, justamente, Hume quem despertou Kant do sono dogmático. E Kant, por sua vez, mesmo fazendo da razão o único guia seguro para se chegar à verdade, impunha à ela limites rigorosos a fim de não cair no precipício do Naturalismo que exclui a ideia do absoluto: a razão é finita. Ela não pode conceber sozinha o infinito.[12]

Maringá, 7 de maio de 2020.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] E. Kant, Que es la Ilustración? In: E. Kant, Filosofía de la Historia, 3. reimpresión, México: Fondo de Cultura Económica, 1987, p. 25. O mesmo texto encontra-se também: In: I. Kant, A paz perfeita e outros opúsculos, Lisboa: Edições 70, (1988), p. 11-19. Tillich interpretando esta concepção de Kant, diz: “Kant achava que as pessoas vivem mais despreocupadas quando se deixam guiar por líderes religiosos, chefes políticos ou orientadores educacionais. Queria, porém, acabar com essa segurança. Achava que essa dependência contradizia a verdadeira natureza humana” (Paul Tillich, Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX, p. 47).

[2]F. Nietzsche, Gaia Ciência, São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, v. 32), 1974, § 343, p. 219-220. Vejam-se: F. Nietzsche, O Anticristo: Ensaio de uma Crítica do Cristianismo, São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, v. 32), 1974, § 16, p. 357-358; F. Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, São Paulo: Hemus, 1977, p. 238-239, 264-265.

[3]Urbano Zilles, Filosofia da Religião, São Paulo: Paulinas, 1981, p. 171.

[4] Vejam-se: Paul Tillich, Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX,p. 47ss.; Idem.,História do Pensamento Cristão,p. 262-263.

[5] I. Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes,São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, v. 25), 1974, p. 238.

[6] Paul Tillich, Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX,p. 48.

[7] Iluminismo: In: Nicola Abbagnano, Dicionário de Filosofia,2. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982, p. 510b. Tillich observa: “Para o iluminismo o passado se mantinha, até certo ponto, submerso em superstição” (Paul Tillich, Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX,p. 95).

[8] Ernst Cassirer observa que esta obra “transmite apenas a configuração ideal, a sombra de uma genuína e concreta vida religiosa” (Ernst Cassirer, Antropologia Filosófica, 2. ed. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1977, p. 51).

[9]Edição brasileira. I. Kant, A Religião Dentro dos Limites da Simples razão, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 25), 1974, p. 367-389.

[10] Carl E. Braaten, Prolegômenos à Dogmática Cristã: In: Carl E. Braaten; Robert W. Jenson, eds., Dogmática Cristã, São Leopoldo, RS.: Sinodal, v. 1, 1990, p. 59. Tillich, com uma dose enorme de exagero, diz que a obra de Kant poderia ser também chamada de “pequena teologia sistemática” (Paul Tillich, Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX, p. 81).

[11]Colin Brown, Filosofia e Fé Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1983, p. 48. Veja-se também: C. Brown, Iluminismo: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1988-1990, v. 2, p. 308; Paul Tillich, Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX, p. 78,83.

[12] Cf. Nicola Abbagnano, História da Filosofia, 3. ed. Lisboa: Presença, (1982), v. 8, §§ 531, 534, p. 129-131,144; P. Tillich, Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX, p. 78-79.

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