Uma fé que investiga e uma ciência que crê (27)

3.2. Os princípios nas ciências não teológicas[1]

3.2.1. Deus é o Princípio Essendi

 Enquanto o conhecimento humano é limitado, só alcançando um conhecimento científico das coisas e suas relações por meio de um processo laborioso de pensamento dialético, o conhecimento que Deus tem, é imediato e completo.  

Deus tem um conhecimento claro e distinto de toda a realidade porque, toda a realidade, em última instância, existe sob o seu poder:

4O SENHOR está no seu santo templo; nos céus tem o SENHOR seu trono; os seus olhos estão atentos, as suas pálpebras sondam (!x;B’)(bahan) (= examinar, testar provar) os filhos dos homens. 5O SENHOR põe à prova (!x;B’)(bahan) ao justo e ao ímpio; mas, ao que ama a violência, a sua alma o abomina. (Sl 11.4-5/Sl 7.10; 17.3; 66.10; 139.23; Pv 17.3).

Deus conhece as coisas como elas de fato são, porque é ele quem as preserva. O seu critério de “avaliação” é minucioso, completo e verdadeiro.[2]

Nessa certeza, ora o salmista:

8O SENHOR julga os povos; julga-me, SENHOR, segundo a minha retidão e segundo a integridade que há em mim. 9 Cesse a malícia dos ímpios, mas estabelece tu o justo; pois sondas (!x;B’) (bahan) (examinar, testar provar) a mente e o coração, ó justo Deus. (Sl 7.8-9).

O Senhor conhece todas as coisas em suas relações e na sua essência: “Deus é a origem e a fonte de todo nosso conhecimento. Possui um conhecimento arquetípico de todas as coisas criadas, abarcando todas as ideias que estão expressas nas obras de sua criação”, sumaria Berkhof (1873-1957).[3]

Deus como fonte de todo conhecimento tem, naturalmente, a consciência total da perfeição e amplitude do seu conhecimento. Ele se conhece perfeitamente, tendo ciência de toda a sua perfeição: “Em si mesmo ele é sujeito e objeto de todo conhecimento”, interpreta Hoeksema (1886-1965).[4]

Somente Deus possui um conhecimento perfeito, arquétipo de si mesmo. Qualquer tipo de conhecimento parte de Deus, que é a sua fonte inesgotável. Portanto, podemos concluir daí algumas coisas: 1) Deus é o principium essendi de todo conhecimento, inclusive o científico; logo, 2) toda verdade é proveniente de Deus,[5] porque “todas as coisas procedem de Deus”;[6] portanto, não pode haver contradição entre os diversos ramos do conhecimento legítimo, pois não há contradição em Deus;[7] 3) A ciência e a fé não se contradizem;[8] o mesmo doador da fé (Ef 2.8) é o criador das verdades científicas; logo, quando ambas parecem contraditórias, é porque, ou há uma compreensão errada da fé, ou a ciência não é ciência, está laborando em erro. Por isso, é preciso que haja humildade de ambas as partes: do teólogo na interpretação da Palavra de Deus, sempre em submissão ao Espírito de Deus,[9] sem cair num dogmatismo ingênuo nem num relativismo dogmático que corre sempre atrás dos modismos científicos e filosóficos para adaptar a Teologia.[10]

Aliás. as interpretações bíblicas feitas a partir de concepções científicas em voga, se mostrarão vulneráveis conforme tais compreensões ditas científicas se revelarem equivocadas

É preciso que nós teólogos entendamos que trabalhar com a teologia não significa dizer sempre coisas novas;[11] embora reconheçamos “as situações novas que ameaçam a salvação dos homens”, como pontua Berkouwer (1903-1996), [12] para as quais devemos buscar na Palavra a resposta.

Por outro lado, precisamos entender, que a Palavra de Deus é mais rica do que qualquer dogma, portanto, o nosso sistema doutrinário, por melhor que seja – e eu estou convencido de que é –, não pode ser mais rico do que a Palavra de Deus, como bem observou Berkouwer:”Porventura a Escritura não é mais rica do que qualquer pronunciamento eclesiástico, por mais excelente e atento ao Verbo divino que este possa ser?”.[13] Por isso, o critério último de análise, será sempre “O Espírito Santo falando na Escritura”.[14]

Todo conhecimento pertence a Deus. Ele é o seu autor e revelador. Logo, todo e qualquer conhecimento quer empírico, quer filosófico, quer científico, quer teológico[15] que o homem tenha ou possa ter, é parte do conhecimento de Deus expresso na sua Criação. Desta forma, podemos dizer que não existe conhecimento fora de Deus. A realidade pertence a Deus quem a criou, e, portanto, lhe confere sentido.

Quando, então nos referimos ao conhecimento que podemos ter do próprio Deus, do seu caráter e majestade, temos de reafirmar a verdade bíblica de que este conhecimento provém do próprio Deus.

Bavinck interpreta:

Somente quando há fé na conexão orgânica do Universo, haverá também a possibilidade para a ciência subir da investigação empírica dos fenômenos especiais para o geral, e do geral para a lei que governa acima dele, e desta lei para o princípio que domina sobre tudo.[16]

O teólogo sabe que a Teologia é uma busca humana por compreender e sistematizar a revelação. E por sermos humanos, podemos nos enganar… A Teologia, portanto, está, de certa forma, sempre a caminho, em busca de uma compreensão mais exaustiva das Escrituras. Entretanto, como em todas as demais ciências, nós Reformados, temos nossos pressupostos: o nosso é que a Bíblia é o registro inspirado e inerrante da Palavra de Deus.[17] Disto não abrimos mão.

Estamos convencidos de que uma visão relapsa da Palavra determina o fracasso teológico e espiritual da Igreja.[18] Concordamos inteiramente com MacArthur, ao dizer:

Uma verdadeira visão cristã de mundo começa com a convicção de que o próprio Deus falou nas Escrituras. […] As Escrituras, portanto, são o modelo no qual devemos testar todas as outras declarações da verdade. A menos que esse conceito básico domine nossa perspectiva em toda a vida, não podemos legitimamente declarar termos adotado a visão cristã do mundo.[19]

O cientista por sua vez, precisa controlar as suas paixões para que não se precipite em suas conclusões, sabendo que na ciência quase nada é definitivo, exceto, talvez, a sua transitoriedade. O vislumbre do horizonte científico pode ser percebido, mas nunca será alcançado. Como bem disse Graça Aranha (1868-1931): “A marcha da ciência é como a nossa na planície do deserto: o horizonte foge sempre”.[20]

Deste modo, parece-me fundamental para o cientista o reexame constante da “ciência”, contudo, tendo como referencial paradigmático, a convicção de que existem conhecimentos absolutos, mas, que nem por isso devem estar acima de nosso exame.

Resumindo, podemos dizer que todas as vezes que houver aparente contradição entre a Ciência e a Teologia, há, na realidade, uma falta de compreensão de uma, ou de ambas as partes. Enquanto o que é perfeito não se concretizar (1Co 13.10), essa tensão sempre existirá em nossas mentes finitas.

Dentro da perspectiva de Calvino, por exemplo, a ciência dirigida pela fé, nos aproximaria de Deus, concedendo-nos uma compreensão mais adequada dele.[21]

Maringá, 20 de abril de 2020. Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]Sigo aqui em grande parte o esquema de L. Berkhof, Introduccion a la Teologia Sistematica, p. 95ss.

[2] Do mesmo modo: Jr 11.20; 12.3; 20.12.

[3] L. Berkhof, Introduccion a la Teologia Sistematica, p. 96. Conforme já vimos, “Somente o autoconhecimento de Deus é adequado, não-derivado ou arquetípico. Apesar disso, nosso conhecimento finito, inadequado, ainda é verdadeiro, puro e suficiente” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a criação,  São Paulo, Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 97).

[4]H. Hoeksema, Reformed Dogmatics,3. ed. Grand Rapids, Michigan: Reformed Free Publishing Association, 1976, p. 15. Barth acentua: “A revelação é um círculo fechado onde Deus é o sujeito, o objeto e o termo médio” (Karl Barth, La Proclamacion del Evangelio,Salamanca: Ediciones Sigueme, 1969, p. 19). Ver também: Emil Brunner, Dogmática, São Paulo: Novo Século, 2004, v. 1, p. 155, 185s.

[5] Esta compreensão esteve sempre presente no pensamento teológico da Igreja; cito alguns exemplos: Justino Mártir (c. 100-165): “…. Tudo o que de bom foi dito por eles (filósofos), pertence a nós, cristãos, porque nós adoramos e amamos, depois de Deus, o Verbo, que procede do mesmo Deus ingênito e inefável” (Justino, Segunda Apologia, São Paulo: Paulus, 1995, XIII.4. p. 104); Agostinho (354-430): “Todo bom e verdadeiro cristão há de saber que a Verdade, em qualquer parte onde se encontre, é propriedade do Senhor. Essa verdade, uma vez reconhecida e professada, o fará rejeitar as ficções supersticiosas que se encontram até nos Livros sagrados” (Santo Agostinho, A Doutrina Cristã, São Paulo: Paulinas, 1991, II.19. p. 122). “A verdade fundamenta-se de modo permanente na razão das coisas e foi estabelecida por Deus” (Santo Agostinho, A Doutrina Cristã, II.33. p. 140-141). “Todo bem procede de Deus. Não há, de fato, realidade alguma que não proceda de Deus” (Santo Agostinho, O Livre-Arbítrio, São Paulo: Paulus, 1995, II.3.20.54. p. 143) (Ver também: Santo Agostinho, A Doutrina Cristã, São Paulo: Paulinas, 1991, II.41. p. 149-151 e II.43. p. 153-154); Calvino (1509-1564): “Se reputamos ser o Espírito de Deus a fonte única da verdade mesma, onde quer que ela haja de aparecer, nem a rejeitaremos, nem a desprezaremos, a menos que queiramos ser insultuosos para com o Espírito de Deus” (Calvino, As Institutas, II.2.15); “… visto que toda verdade procede de Deus, se algum ímpio disser algo verdadeiro, não devemos rejeitá-lo, porquanto o mesmo procede de Deus. Além disso, visto que todas as coisas procedem de Deus, que mal haveria em empregar, para sua glória, tudo quanto pode ser corretamente usada dessa forma?” (Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (Tt 1.12), p. 318); Strong (1835-1921): “A Ciência e a Escritura lançam luz uma sobre a outra. O mesmo Espírito divino que deu revelação a ambas está ainda presente, capacitando o crente a interpretar uma pela outra e então progressivamente chegar ao conhecimento da verdade” (A.H. Strong, Systematic Theology, 35. ed. Valley Forge, PA.: The Judson Press, 1993, p. 27); A.A. Hodge (1823-1886): “Toda verdade é um só todo” (A.A. Hodge, Esboços de Theologia, Lisboa: Barata & Sanches, 1895, p. 7). Ver também a citação nesta mesma direção de alguns puritanos em Leland Ryken, Santos no Mundo, São José dos Campos, SP.: FIEL, 1992, p. 177-179.

[6]João Calvino, As Pastorais,(Tt 1.12), p. 318.“…. Se o Senhor nos quis deste modo ajudados pela obra e ministério dos ímpios na física, na dialética, na matemática e nas demais áreas do saber, façamos uso destas, para que não soframos o justo castigo de nossa displicência, se negligenciarmos as dádivas de Deus nelas graciosamente oferecidas” (J. Calvino, As Institutas,II.2.16).

[7] “Se o conhecimento de Deus foi revelado por ele mesmo em sua palavra, ele não pode conter elementos contraditórios ou estar em conflito com aquilo que se sabe de Deus a partir da natureza e da história. Os pensamentos de Deus não podem se opor uns aos outros e, assim, necessariamente formam uma unidade orgânica” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 1, p. 44).

[8] Tomás de Aquino, com acuidade, comentou: “Já que a palavra de Deus ultrapassa o entendimento, alguns acreditam que ela esteja em contradição com ele. Isto não pode ocorrer” (Tomás de Aquino, Súmula Contra os Gentios,São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 8), 1973, VII, p. 70). Veja-se: A.A. Hodge, Esboços de Theologia,p. 7; Abraham Kuyper, Calvinismo, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002, p. 137-138.

[9] “Não devemos supor que temos toda a verdade e que não estamos enganados em nada” (A.W. Tozer, O Poder de Deus, 2. ed. São Paulo: Mundo Cristão, 1986, p. 71). “Insistir que a Palavra de Deus é absoluta não é insistir que todo o conhecimento seja absoluto” (Gene Edward Veith, Jr, De Todo o Teu Entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 65). “A teologia é uma tentativa humana de tirar conclusões da revelação especial de Deus. As regras que controlam esse questionamento são as regras da hermenêutica e da lógica. Para fazer uma boa Teologia deve-se buscar uma objetividade rigorosa quando se procura determinar a verdade, mais sempre com um grau de humildade que reconhece que somente a Escritura é a verdade absoluta. A Teologia pode ser corrompida pelo pecado humano e feita obscura por falta de visão espiritual” (Perry G. Downs, Introdução à Educação Cristã: Ensino e Crescimento, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2001, p. 15).

[10]Em 1921 Machen (1881-1937) propunha-se a mostrar “que a tentativa liberal de reconciliar o cristianismo com a ciência moderna tem realmente abdicado de tudo o que é peculiar ao cristianismo e, assim, o que permanece é, em essência, apenas aquele mesmo tipo indefinido de aspiração religiosa que havia no mundo antes do cristianismo entrar em cena”. Acrescenta de forma gravemente contundente: “Ao tentar remover do cristianismo tudo o que possivelmente poderia ser objetado em nome da ciência, ao tentar subornar o inimigo através das concessões que este mais deseja, o apologista realmente abandona o que começou a defender” (J.G. Machen, Cristianismo e Liberalismo, São Paulo: Editora os Puritanos, 2001, p. 18-19). “A teologia tem a tendência de ajustar-se a modas, como a filosofia” (A.W. Tozer, O Poder de Deus, p. 70).

[11]Cf. G. C. Berkouwer, A Pessoa de Cristo,São Paulo: ASTE., 1964, p. 71. “O Espírito sempre diz a mesma coisa a todo aquele a quem Ele fala, e absolutamente sem atentar para as ênfases doutrinárias ou as modas teológicas que passam. Ele faz cintilar a beleza de Cristo no coração surpreso, e o reverente espírito a recebe com um mínimo de interferência” (A.W. Tozer, O Poder de Deus, p. 70).

[12]G. C. Berkouwer, A Pessoa de Cristo,p. 72.

[13] G.C. Berkouwer, A Pessoa de Cristo,p. 72. Dentro desta mesma linha de pensamento, escreveu Kuiper: “…. Todos juntos, os credos do cristianismo, de nenhuma maneira se aproximam de esgotar a verdade da Sagrada Escritura”(R.B. Kuiper, El Cuerpo Glorioso de Cristo,Grand Rapids, Michigan: SLC., 1985, p. 99). Com grande satisfação li a declaração de Packer: “A tradição nos permite ficar sobre os ombros de muitos gigantes que pensaram sobre a Bíblia antes de nós. Podemos concluir pelo consenso do maior e mais amplo corpo de pensadores cristãos, desde os primeiros Pais até o presente, como recurso valioso para compreender a Bíblia com responsabilidade. Contudo, tais interpretações (tradições) jamais serão finais; precisam sempre ser submetidas às Escrituras para mais revisão” (J.I. Packer, O Conforto do Conservadorismo: In: Michael Horton, ed. Religião de Poder,São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1998, p. 235).

[14]Confissão de Westminster, I.10. Timothy George observa que, “Os reformadores eram grandes exegetas das Escrituras Sagradas. Suas obras teológicas mais incisivas encontram-se em seus sermões e comentários bíblicos. Eles estavam convencidos de que a proclamação da igreja cristã não poderia originar-se da filosofia ou de qualquer cosmovisão auto-elaborada. Não poderia ser nada menos que uma interpretação das Escrituras. Nenhuma outra proclamação possui direito ou esperança na igreja. Uma teologia que se baseia na doutrina reformada das Escrituras Sagradas não tem nada a temer com as descobertas precisas dos estudos bíblicos modernos”(Timothy George, Teologia dos Reformadores, São Paulo: Vida Nova, 1994, p. 313).

[15] Quanto aos tipos de conhecimento, veja um resumo em: Hermisten M. P. Costa, Introdução à metodologia das ciências teológicas, Goiânia, GO.: Cruz, 2015.

[16]Abraham Kuyper, Calvinismo, p. 123. Vejam-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 623ss.; Alister E. MacGrath, A revolução Protestante, Brasília, DF.: Editora Palavra, 2012, p. 368-369.

[17] Veja-se: H.H. Meeter, La Iglesia y El Estado,3. ed. Grand Rapids, Michigan: TELL., (s.d), p. 38-39; Leon Morris, Creo en la Revelacion,Florida: Editorial Caribe, 1979, p. 20-21.

[18] Veja-se: Hermisten M. P. Costa, A Inspiração e Inerrância das Escrituras: Uma Perspectiva Reformada,São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1998,passim.

[19]John MacArthur Jr., Adotando a Autoridade e a Suficiência das Escrituras: In: John MacArthur Jr., et. al. eds. Pense Biblicamente!: recuperando a visão cristã de mundo, São Paulo: Hagnos, 2005, p. 25.

[20]Apud G.V. do Monte Pereira, redator, Biblioteca Internacional de Obras Célebres,Lisboa: (s.d), v. 7, p. 3539.

[21]Ver: João Calvino, As Institutas,I.5.2. Ver também: André Biéler,O Pensamento Econômico e Social de Calvino,São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1990, p. 571-573.

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