Uma fé que investiga e uma ciência que crê (32)

4.2. O conhecimento científico: compromisso e limites (Continuação)

A ciência está comprometida com a compreensão do real, mesmo que este não lhe pareça algo agradável ou digno. Não cabe a ela escolher um “real ideal”, mas trabalhar com o que existe. Creio que Bacon (1561-1626) captou bem este sentido, ao afirmar que: “Tudo o que é digno de existir é digno de ciência, que é a imagem da realidade. As coisas vis existem tanto quanto as admiráveis”.[1] Dentro desta perspectiva, a definição de Popper (1902-1994) a respeito do objetivo da ciência, parece-nos correta: “O objetivo da ciência é encontrar explicações satisfatórias do que quer que nos apresente e nos impressione como estando a precisar de explicação”.[2]

O cientista caracteriza-se pela posse do espírito semelhante ao do filósofo, que está sempre a caminho, procurando respostas para problemas pretéritos e presentes e, concomitantemente, busca novos problemas, que amiúde estão abrigados nas soluções encontradas. Gadamer (1900-2002), por exemplo, analisando a hermenêutica filosófica, observa que:

Uma interpretação definitiva parece ser uma contradição em si mesma. A interpretação é algo que está sempre a caminho, que nunca conclui. A palavra interpretação faz referência à finitude do ser humano e à finitude do conhecimento humano (…). Pois então, mais importante que o interpretar o claro conteúdo de um enunciado é inquirir os interesses que nos guiam (…). A hermenêutica filosófica está mais interessada nas perguntas que nas respostas.[3]

A ciência, portanto, como a filosofia, caminha dentro da dialética do saber-ignorância-saber, mantendo este “equilíbrio dinâmico”. Por isso, a ciência que para ser genuinamente ciência tem que ser necessariamente verdadeira –, sofre, devido a nossa limitação, de uma “desconfiança necessária e proveitosa”… Como não posso ter certeza, de que aquilo que penso saber, é de fato “ciência”, estou sempre duvidando do que sei, a fim de que, caso o que eu saiba seja realmente “ciência”, não tenho o que temer, caso contrário, não me acomodei com a miragem do saber… Nesta hipótese, o novo “edifício do saber”, passará pelo crivo da mesma “desconfiança”…

Neste particular, concordo com as observações de Karl Popper (1902-1994):

O velho ideal científico da epistéme do conhecimento absolutamente certo, demonstrável – provou ser um ídolo. A exigência da objetividade científica torna inevitável que todo enunciado científico permaneça provisório para sempre. Pode-se de fato corroborá-lo, mas toda corroboração é relativa aos outros enunciados que, novamente, são provisórios. Somente podemos estar “absolutamente certos” de nossas experiências subjetivas de convicção, de nossa fé subjetiva.

Com o ídolo da certeza (incluindo-se os graus de certeza imperfeita ou probabilidade) cai um dos baluartes do obscurantismo que barra o caminho do avanço científico, reprimindo a audácia de nossas questões e pondo em perigo o rigor e a integridade de nossos testes. A concepção errada da ciência trai-se em sua pretensão de ser correta; pois, o que faz o homem de ciência não é sua posse do conhecimento, da verdade irrefutável, mas sua indagação persistente e temerariamente crítica da verdade.

(…) A ciência nunca persegue o fim ilusório de que suas respostas sejam definitivas ou mesmo prováveis. Seu avanço dirige-se, ao contrário, para o fim infinito e ainda assim atingível de sempre descobrir problemas novos, mais profundos e mais gerais, e de sujeitar suas respostas sempre provisórias a testes sempre renovados e cada vez mais rigorosos.[4]

Hoje em dia toda a gente reconhece que a plena certeza é algo de inatingível nas ciências a que se chama “indutivas”.[5]

São pertinentes e embaraçosas as observações de Veith, Jr.:

Aqueles que veem a ciência como algo que produz a verdade imutável deveriam estudar a história da ciência e fazer a si mesmos[W71]  outras perguntas: Se a ciência tem nos dado uma série de modelos para explicar dados sempre crescentes, podemos esperar que seja absoluto o que a ciência nos diz agora? Daqui a cem anos, a ciência estará nos dizendo o mesmo que nos diz hoje?  (…) Se a ciência de 1500 parece bastante primitiva e ingênua, será que a nossa ciência também não parecerá primitiva e ingênua daqui a quinhentos anos? O que a ciência proclama como fato nem sempre é tão certo para a geração seguinte de cientistas.[6]

Numa entrevista concedida (fins de 1984?), Popper (1902-1994), criticando os intelectuais da linha hegeliana, disse que, “o primeiro valor (do intelectual) deve ser a busca da verdade”.[7] Do mesmo modo, Einstein (1879-1975) escrevera em 07/12/1944 ao físico Robert A. Thornton  (1897-1982), que um cientista é “um verdadeiro buscador da verdade”.[8]

Portanto, o que caracteriza o vigor de uma ciência, não é a sua rigidez, antes, é o grau de desconfiança a que ela nos permite submeter os seus enunciados a fim de aperfeiçoá-los.[9]

Kuyper interpreta: “Só é realmente livre a ciência que, enquanto está estritamente limitada a seu próprio princípio, tem o poder de livrar-se de todos os laços artificiais”.[10] De fato, caso contrário, ela negaria sua própria essência.[11]

A ciência não tem pátria nem idade. Ela não é privilégio de um povo, menos ainda de um indivíduo.[12] Todo cientista – usando a figura em forma de epigrama atribuída por João de Salisbury (c. 1110-1180)[13] a Bernardo de Chartres (1070-1130)[14]  – equivale a um anão sobre os ombros de gigantes, se valendo das contribuições de seus predecessores, a fim de poder enxergar um pouco além deles.

A ciência que envelhece, assina o seu obituário, confessando o ocaso de seu saber. A ciência como verdade é sempre vigorosa, mesmo que os homens tentem negá-la ou ridicularizá-la, o tempo a solidifica e a rejuvenesce. A “ciência” que foi negada, evidenciou por isso mesmo, que não era ciência, contudo se ela de fato for, renascerá do seu ocaso, atestando a sua perenidade.[15]

Parece-me fundamental para o cientista o reexame constante da “ciência”, contudo tendo como referencial paradigmático, a convicção de que existem conhecimentos absolutos, mas, que nem por isso devem estar acima de nosso exame.

Maringá, 20 de abril de 2020.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] Francis Bacon, Novum Organum,São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 13), 1973, I.120. p. 85.

[2] Karl R. Popper, O Realismo e o Objectivo da Ciência, (Pós-Escrito à Lógica da Descoberta Científica, v. 1), Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1987, * 15, p. 152. Ver também, * 15, p. 164-165.

[3] Hans-Georg Gadamer, A razão na Época da Ciência,Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983, p. 71 e 72. Este comentário de Gadamer, contudo deve ser tomado com certa cautela, a fim de não cairmos no perigoso labirinto do subjetivismo, eliminando a diferença fundamental entre “sentido” e “significado” na interpretação de um texto.

[4]K. R. Popper, A Lógica da Investigação Científica, São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, v. 44), 1975, § 85. p. 383, 384. (Veja-se também, Jean Piaget, A Epistemologia Genética, São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, v. 51), 1975, p. 129-130).

[5] Karl R. Popper,O Realismo e o Objectivo da Ciência,(Pós-Escrito à Lógica da Descoberta Científica, v. 1), Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1987, * 27, p. 234-235.

[6]Gene Edward Veith, Jr., De todo o teu entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 57. Vejam-se também: K. R. Popper, A Lógica da Investigação Científica, São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, v. 44), 1975, § 85. p. 383, 384; Karl R. Popper,O realismo e o objectivo da ciência,(Pós-Escrito à Lógica da Descoberta Científica, v. 1), Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1987, * 27, p. 234-235; Jean Piaget, A Epistemologia Genética, São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, v. 51), 1975, p. 129-130).

[7] Karl R. Popper, Entrevista publicada no jornal, Estado de São Paulo,20/01/85, “Cultura”, p. 12.

[8] Cf. Alvin Plantinga, Ciência, Religião e Naturalismo: onde está o conflito?  São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 237. (Ver: http://alberteinstein.info/vufind1/Record/EAR000025246).

[9]Veja-se: J. Ortega Y Gasset, Que é Filosofia?, Rio de Janeiro: Livro Ibero-Americano, 1961, p. 40.

[10] Abraham Kuyper, Calvinismo, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002,p. 147.

[11] “A ciência negligenciaria sua vocação divina caso permitisse novamente tornar-se serva do Estado ou da Igreja” (Abraham Kuyper,  Sabedoria & Prodígios: Graça comum na ciência e na arte,  Brasília, DF.: Monergismo, 2018, p. 33).

[12] Durkheim disse com acerto, que “a ciência é obra coletiva, porquanto supõe vasta cooperação de todos os sábios, não somente de dada época, mas de todas as épocas que se sucedem na história” (Émile Durkheim, Educação e Sociologia,5. ed. São Paulo: Melhoramentos, (s.d.) p. 35). ***Do mesmo modo escreveu Kuyper e mais recentemente Ziman. Vejam-se: A. Kuyper, Sabedoria e prodígios: graça comum na ciência e na arte, Brasília, DF.: Monergismo, 2018, p. 42-45; John Ziman, O Conhecimento Confiável: uma exploração dos fundamentos para a crença na ciência, Campinas, SP.: Papirus, 1996, p. 13.

[13] Cf. N. Abbagnano; A. Visalberghi, Historia de la Pedagogía,p. 203. Parece que esta figura também foi empregada por outro teólogo medieval, “que morreu quase 300 anos antes de Lutero nascer….”, Pedro de Blois. (Cf. Timothy George,Teologia dos reformadores, São Paulo: Vida Nova, 1994, p. 23). Newton mais tarde (05/02/1676)(ou 1675?) em carta a Robert Hooke (1635-1703 – seu ferrenho adversário (Cf. Paolo Casini, Newton e a Consciência Européia, São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1995, p. 26ss. Comparar com: Umberto Eco, Nos ombros dos gigantes: escritos para La Milanesiana, 2001-2015, Rio de Janeiro: Record, 2018, p. 22-23) -, supostamente referindo-se a Kepler (1571-1630), Galileu (1564-1643) e Descartes (1596-1650), entre outros, também faria uso desta analogia. (Vejam-se: N. Abbagnano; A. Visalberghi, Historia de la Pedagogía,p. 280; Stephen Hawking, Os Gênios da Ciência: Sobre os ombros do Gigante: as mais importantes idéias e descobertas da física e da astronomia, Rio de Janeiro, Elsevier Editora, 2005, p. XI, 441. Quanto à tentativa de estabelecer uma genealogia da figura, valendo-se dos trabalhos de Édouard Jeauneau, e Robert Merton veja-se: Umberto Eco, Nos ombros dos gigantes: escritos para La Milanesiana, 2001-2015, Rio de Janeiro: Record, 2018, p. 11ss. Especialmente, p. 22ss.). Para um estudo mais detalhado, veja-se: Robert K. Merton, A hombros de gigantes: postdata Shandiana, Barcelona: Edicions 62, 1990). Essa edição espanhola, rara e caríssima, está disponível em: https://pdfslide.net/documents/merton-robert-k-a-hombros-de-gigantes.html?h=myslide.es   (Consulta feita em 22.12.2019).

[14]“Bernardo de Chartres dizia que somos como anões sobre os ombros de gigantes, de modo que podemos ver mais longe que eles, não em virtude de nossa estatura ou da acuidade de nossa visão, mas porque, estando sobre seus ombros, estamos acima deles” (Apud  Umberto Eco, Nos ombros dos gigantes: escritos para La Milanesiana, 2001-2015, Rio de Janeiro: Record, 2018, p. 22).

[15]Discordo neste particular de Jean Piaget (1896-1980), que compreende que “não existem conhecimentos absolutos” e que “toda ciência está em permanente transformação e não considera jamais seu estado como definitivo” (Jean Piaget, A Epistemologia Genética, p. 130). Creio que esta postura é saudável apenas metodologicamente, mas não absolutamente.


 [W71]O “s” está no original.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *