Uma fé que investiga e uma ciência que crê (33)

4.3.  A Ciência: sonho & trabalho

A ciência é em grande parte filha da necessidade e do trabalho. Aristóteles (384-322 a.C.), diz que “o objeto da ciência (e)pisth/mh) é de necessidade. E, destarte, eterno: porque tudo quanto é de absoluta necessidade, é eterno. O que é eterno, tem que ser ingênito e incorruptível”.[1]

É a necessidade que se revela no trabalho, na pesquisa, na procura do saber. E esta necessidade está ligada a um determinado contexto histórico e social com os seus valores próprios.

Espinosa (1632-1677) disse que: “o desejo é a própria essência do homem”.[2] Parece-me ser fato que o desejo é fruto da carência ou da consciência da carência de totalidade, da falta de onisciência, sendo, portanto, um atributo dos mortais. Todavia, este desejo precisa ser conscientizado: a ignorância do desejo é a acomodação na ausência. O desejo é a consciência da limitação. O desejo produz esperança[3] e desespero. “Aquilo de que não temos desejo não pode ser objeto de nossa esperança, nem de nosso desespero”, observou Agostinho (354-430).[4] Todavia, o cientista deve ter a disposição de aceitar as evidências mesmo quando elas colidem com os nossos desejos.[5]

            Sócrates (469-399 a.C.), estava correto ao declarar: “Quem não se considera incompleto e insuficiente, não deseja aquilo cuja falta não pode notar”.[6] Assim sendo, a ciência é produto do homem consciente da sua necessidade e ao mesmo tempo, disposto a suprimi-la. A ciência como fruto do labor humano, começa pelo sonho dos inconformados que não se contentam com os atuais limites da sua ignorância. “O sonho é uma fresta do espírito”[7] e a fé que permeia a ciência, por ser “racional”, deve ser essencialmente ativa.[8] É muito difícil construir sem sonhos.  Sem sonho não há possibilidade de ciência e, sem trabalho, os sonhos não se constroem, permanecem escondidos, só vindo à luz durante as “trevas” do sono onde não há perigo de serem concretamente confrontados. “Aqueles de nós que não estão dispostos a expor suas ideias ao risco da refutação não tomam parte no jogo da ciência”, especula Popper (1902-1994).”[9]

            Por outro lado, a ciência, juntamente com o sonho, traz consigo uma saudade. A ciência tende amiúde a construir um universo diferente do que estávamos acostumados e, nesta construção, novos valores obviamente surgem e, do mesmo modo, outros se perdem. E de quando em quando nos lembramos de forma nostálgica “daqueles tempos”, repletos de significado, os quais são normalmente prioritariamente positivos nas injustiças cometidas impunemente por nossa memória. E nisto, há uma valorização exagerada do que foi, num esquecimento, ainda que momentâneo do que é, de seus benefícios.

A amnésia é uma “estratégia compensadora”, que apaga o que muitas vezes nos convém.[10] Todavia, se faz parte do homem o sonho, do mesmo modo, a saudade constitui o seu ser. Assim todos trazemos dentro de nós uma “máquina do tempo” que nos faz ir e vir sem impedimentos, exercitando os nossos sonhos e a nossas lembranças. A ciência excita o nosso sonho, mas também, ainda que por um breve momento, resgata do exílio mental a lembrança saudosa “daqueles tempos”.

Maringá, 27 de abril de 2020.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]Aristóteles, A Ética, (Ética a Nicômaco), Rio de Janeiro: Edições de Ouro, (s.d.), VI.3.2. p. 110.

[2]B. Espinosa, Ética, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 17), 1973, IV.18. p. 244.

[3] “A esperança não é mais do que o alimento e a força da fé” (J. Calvino, As Institutas, III.2.43).

[4]Apud J. Moltmann, Teologia da Esperança, São Paulo: Herder, 1981, p. 11.

[5] Veja-se: B.F. Skinner, A Possibilidade de uma Ciência do Comportamento.In: Ciência e Comportamento Humano, São Paulo: Cultrix, 1966, p. 16

[6] Platão, Banquete, Rio de Janeiro, Editora Tecnoprint, (s.d.), 204, p. 165.

[7]Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas, São Paulo: Abril Cultural, (Obras Primas), 1978, p. 65.

[8] Vejam-se: Erich Fromm,A Revolução da Esperança, São Paulo: Círculo do Livro, (s.d.),p. 27-28; Idem., A Arte de Amar, Belo Horizonte: Itatiaia, 1960, p. 157ss.

[9]Karl R. Popper, A Lógica da Investigação Científica, São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, v. 44), 1975, § 85. p. 383.

[10] Veja-se: Lucette Valensi, Fábulas de Memória: A Batalha de Alcácer Quibir e o mito do sebastianismo, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994, p. 6ss.

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