Teologia da Evangelização (93)

2.4.9.5. Deus chama os seus (Continuação)

Mártires franceses no Brasil

          Do mesmo modo, no Brasil, quando os calvinistas franceses Jean du Bourdel, Matthieu Verneuil, Pierre Bourdon, André Lafon não negaram à sua fé diante de Nicolas Durand de Villegaignon (1510-1571), foram presos.[1]

          Crespin (c. 1520-1572) registra: “Entretanto, os condenados consolavam-se e regozijavam-se em suas cadeias, orando e cantando, com extraordinário fervor, salmos e louvores a Deus”.[2]

          Na manhã de sexta-feira, 9 de fevereiro de 1558, quando Jean du-Bourdel, o autor da Confissão de Fé,[3] ia sendo conduzido ao rochedo para ser executado, acompanhado por Villegaignon e seu pajem, narra Crespin:

Ao passar junto da prisão em que estavam os seus companheiros, gritou-lhes em alta voz que tivessem coragem, pois iam ser logo libertados desta vida miserável. E, caminhando para a morte, entoava salmos e louvores a Deus, o que causava grande espanto a Villegaignon e ao carrasco.[4]

          Godfrey parece captar bem o espírito desses calvinistas franceses:

Os Salmos eram (…) mais do que inspiração e conforto para os cristãos reformados. Os Salmos eram mais do que uma forma de expressarem suas alegrais e pesares a Deus nas próprias palavras de Deus. O Saltério explicava a vida que eles viviam tanto em relação aos iníquos que se lhes opunham quanto a Deus que os sustentava. Como povo de Deus, eles viviam nos Salmos.[5]

          Retornando ao ponto central desse capítulo, enfatizamos que o princípio que regia a Calvino e aos inúmeros missionários, concernia à responsabilidade evangélica: “…. é nosso dever proclamar a bondade de Deus a toda nação”.[6]

          A Academia tornou-se grandemente respeitada em toda a Europa.[7] O grau concedido aos seus alunos era amplamente aceito e considerado em universidades de países protestantes como, por exemplo, na Holanda.

Vemos aqui tipificado de forma eloquente que a missão não era o refúgio dos incompetentes nem a academia o abrigo dos indolentes ministeriais. Não havia, como de fato não há, essa dissociação em essência: missão e erudição, já que “não existe piedade sem devida instrução”.[8] Consequentemente, não há também a dicotomia ontológica entre piedade e ciência, considerando que a “piedade deve ser unida à ciência”.[9]  

O chamado de Deus não é por eliminação, antes, é soberana graça capacitante[10] que não nos torna perfeitos, sacralizando o nosso pensar e agir, mas, conferindo-nos o senso de privilégio e responsabilidade, faz-nos  buscar cumprir com santo temor o nosso chamado com total integridade e dependência do Senhor.

          O historiador católico Venard (1929-2014), comenta que a Academia “será daí em diante um viveiro de pastores para toda a Europa reformada”.[11]

          De fato, ela contribuiu em grandes proporções para fazer de Genebra “um dos faróis do Ocidente” admite o católico Daniel-Rops (1901-1965).[12] 

          A formação dada em Genebra era intelectual e espiritual. Os alunos participavam dos cultos das quartas-feiras bem como em todos os três cultos prestados a Deus no domingo.[13] Um escritor referiu-se a Genebra deste modo: “Deus fez de Genebra sua Belém, isto é, sua casa do pão”.[14]

          Gaffarel em notícia bibliográfica à edição francesa da obra do missionário Jean de Léry (1534-1611), escreveu com clareza:

Da França, da Itália, da Inglaterra, da Espanha e até da Polônia acorreram inúmeros prosélitos. Genebra tornou-se a cidadela do protestantismo e foi nessa fonte ardente, de fé e eloquência que ardorosos missionários vieram buscar sua inspiração, a fim de espalhar em seguida, mundo afora, a doutrina e as ideias do mestre.[15]

          Sem dúvida, entre os Reformadores, Calvino foi  quem  mais amplamente compreendeu a abrangência das implicações do Evangelho nas diversas facetas da vida humana,[16] entendendo que “o Evangelho não é uma doutrina de língua, senão de vida. Não pode assimilar-se somente por meio da razão e da memória, senão que chega a compreender-se de forma total quando ele possui toda a alma, e penetra no mais íntimo recesso do coração”.[17]

          Por isso, ele exerceu poderosa influência sobre a Europa e Estados Unidos. Schaff (1819-1893) chega dizer, sendo seguido por outros, que Calvino “de certo modo, pode ser considerado o pai da Nova Inglaterra e da república Americana”.[18]

          Aplicando esse princípio à doutrina da eleição, podemos dizer como Calvino: “Quando Deus seleciona dentre toda a raça humana um pequeno número ao qual abraça com seu paternal amor, esta é uma inestimável bênção que Ele derrama sobre eles”.[19]

Portanto, a doutrina da eleição quando estudada dentro de uma perspectiva bíblica,  com o coração desejoso de ouvir a voz de Deus, configura-se como um meio eficaz para o nosso fortalecimento na fé,[20] na certeza de que, apesar de nossas fraquezas e deficiências, Deus conforme sua sábia e misericórdia vontade nos elegeu antes dos tempos eternos e nos confirmará até o fim em santidade.

          A nossa eleição repousa na promessa de Deus; e isto nos basta. Por isso, encontramos nesta doutrina “excelente fruto de consolação”.[21]

          Quero concluir este capítulo com as estimulantes e confortadoras palavras de algumas Confissões sobre esta doutrina:

A todos os que sinceramente obedecem ao Evangelho, esta doutrina fornece motivo de louvor, reverência e admiração para com Deus, bem como de humildade, diligência e abundante consolação.[22]

Do sentimento interno e da certeza desta eleição tem os filhos de       Deus maior motivo para humilhar-se diante dele, adorar a profundidade da Sua misericórdia, purificar-se a si mesmos, e por sua parte amar-lhe ardentemente, que de modo tão eminente lhes amou primeiro.[23]

A piedosa meditação da Predestinação e da nossa eleição em Cristo, está cheia de um suavíssimo, doce e inexplicável conforto para os piedosos, e aos que sentem em si mesmos a operação do Espírito de Cristo.[24]

          Já ia me esquecendo. Depois de tudo o que vimos,  por que será que Calvino foi e é tão acusado de não dar ênfase à missão e, quem o acusa, não é estranho associar esta “omissão” à sua compreensão da doutrina da predestinação?

          É bastante razoável a explicação de Beeke a respeito da “concepção negativa do evangelismo de Calvino é consequência de”:  

Estudo deficiente dos escritos de Calvino antes de chegarem às suas conclusões,
Falha na compreensão da visão de Calvino do evangelismo no seu próprio contexto histórico,
Incorporação de noções doutrinárias preconcebidas em seus estudos a respeito de Calvino e da sua teologia.[25]  

          Quanto a nós, exercitemos e colhamos, pois, os doces e suaves frutos deste ensino bíblico tão caro a nós Reformados. Que Deus nos ajude. Amém.

Maringá, 07 de outubro de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] O alfaiate André Lafon terminou por ser persuadido a retratar-se. Foi poupado. Permaneceu então preso na fortaleza “como alfaiate do almirante e de toda sua gente” (Jean Crespin, A Tragédia da Guanabara ou Historia dos Protomartyres do Christianismo no Brasil,Rio de Janeiro: Typo-Lith, Pimenta de Mello & C., 1917, p. 81).

[2]Jean Crespin, A Tragédia da Guanabara ou Historia dos Protomartyres do Christianismo no Brasil,p. 74. Ver também: Jean de Léry, Viagem à Terra do Brasil,3. ed., São Paulo: Livraria Martins Fontes, (1960), p. 245.

[3] Elaborada entre 04/01/1558 e 09/02/1558. Ver: Jean Crespin, A Tragédia da Guanabara ou Historia dos Protomartyres do Christianismo no Brasil, p. 63-64.

[4]Jean Crespin, A Tragédia da Guanabara ou Historia dos Protomartyres do Christianismo no Brasil, p. 77.

[5]W. Robert Godfrey, Aprendendo a amar os Salmos, Rio de Janeiro: Pro Nobis, 2021, p. 19.

[6]John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), v. 7/1, (Is 12.5), p. 403.

[7]“Foi dessa escola que saiu toda uma elite culta que difundiu a Reforma na Europa inteira”  (Eric Fuchs, Calvino: In: Monique Canto-Sperber, org. Dicionário de Ética e Filosofia Moral, São Leopoldo, RS.: Editora Unisinos, 2003, v. 1, p. 184b).

[8]John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), v. 19/1, (At 18.22), p. 198.

[9] Apud  Willemien Otten, Religion as exercitatio mentis: A case for theology as a Humanism discipline: In: Alasdair A. MacDonald, et. al. eds. Christian Humanism: Essays in Honour of Arjo Vanderjagt, Leiden: Brill Academic Pub., 2009, p. 60. Como curiosidade, cito que Voetius, como testemunho de sua erudição e piedade, foi o delegado mais jovem a participar do Sínodo de Dort. (Cf. Willem J. van Asselt, Scholasticism in the Time of High Orthodoxy (ca. 1620–1700). In: Willem J. van Asselt, ed., Introduction to Reformed Scholasticism, Grand Rapids, MI.: Reformation Heritage Books, 2001,  (Edição do Kindle). Posição  2867 de 5503.

[10] “Ora, Deus geralmente supre aqueles a quem imputa a dignidade de possuir esta honra a eles conferida com os dons indispensáveis para o exercício de seu ofício, a fim de que não sejam como ídolos sem vida”  (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 4.3), p, 96). “Sempre que os homens são chamados por Deus, os dons são necessariamente conectados com os ofícios. Pois Deus não veste homens com máscara ao designá-los apóstolos ou pastores, e, sim, os supre com dons, sem os quais não têm eles como desincumbir-se adequadamente de seu ofício” (João Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 4.11), p. 119). Vejam-se também: João Calvino, As Pastorais,São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 6.12), p. 173; João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 4, (IV.17). p. 225; João Calvino,  A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, Novo Século, 2000,  p. 77; J. Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996,  (1Co 9.16), p. 276-277.

[11] Marc Venard, O Concílio Lateranense V e o Tridentino. In: Giuseppe Alberigo org.  História dos Concílios Ecumênicos, São Paulo: Paulus, 1995, p. 339.Do mesmo modo escreve Willemart: “Genebra torna-se o centro de formação dos pastores que serão enviados para todas as comunidades francesas e que permitirão a unidade da Igreja Evangélica Reformada”  (Philippe Willemart, A Idade Média e a Renascença na literatura francesa, São Paulo: Annablume, 2000, p. 42).

[12]Daniel-Rops,  A Igreja da Renascença e da Reforma: I. A Reforma protestante, São Paulo: Quadrante, 1996, p. 414.

[13]Cf. Charles W. Baird, A Liturgia Reformada: Ensaio histórico, Santa Bárbara D’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 29.

[14] Apud  Charles W. Baird,  A Liturgia Reformada: Ensaio histórico, p. 30.

[15] Paul Gaffarel, Notícias Biográficas. In: Jean de Léry,  Viagem à terra do Brasil,  2. ed. São Paulo: Livraria Martins Fontes, (1951), p. 11.

[16] Vejam-se: André Biéler, O Pensamento Econômico e Social de Calvino, p. 28; Wilson C. Ferreira, Calvino: Vida, Influência e Teologia, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1985, p. 188-189.

[17]John Calvin, Golden Booklet of the True Christian Life, 6. ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1977, p. 17. Do mesmo modo, ver: João Calvino, As Pastorais, (Fm 6), p. 368.

[18] P. Schaff, The Creeds of Christendom, v.  1, p. 445.

[19] João Calvino, O Livro dos Salmos,v. 2, (Sl 48.1), p. 352.

[20] Vd. J. Calvino, As Institutas,III.24.9.

[21] J. Calvino, As Institutas,III.24.4.

[22]Confissão de Westminster, III.6.

[23]Cânones de Dort, I.13.

[24]Trinta e Nove Artigos da Igreja da Inglaterra, Capítulo XVII.

[25]Joel R. Beeke, Calvin’s Evangelism, MJT 15 (2004) 67-86, p. 68.  (https://www.midamerica.edu/uploads/files/pdf/journal/15-beekeevangelism.pdf). (Consultado em 16.10.2021).

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