Teologia da Evangelização (92)

2.4.9.5. Deus chama os seus (Continuação)

Missão, louvor e martírio

          Em 15 de maio de 1553, Calvino, depois de várias tentativas diplomáticas para libertá-los, escreve uma carta de consolo a cinco jovens missionários que, conforme as evidências pareciam apontar, estavam para serem martirizados em Lyon:

Para onde quer que olhemos daqui debaixo, Deus tem interrompido o caminho. Não obstante, nossa esperança nele, ou nas suas santas promessas não  pode ser frustrada. (…) Agora, no presente momento, a própria necessidade os exorta a elevarem a mente totalmente ao céu. Até agora, não sabemos como será o evento, mas, porquanto parece que Deus utilizará o sangue de vocês para subscrever sua verdade, o melhor é prepararem-se para esse objetivo, suplicando-lhe para submetê-los à sua boa vontade, de modo que nada os impeça de seguirem para onde quer que Ele lhes chame. (…) Uma vez que lhe  [Deus] aprouve consagrar vocês à morte na manutenção  da sua contenda, Ele lhes fortalecerá as mãos no combate e não deixará que nenhuma gota do sangue de vocês seja gasta em vão. E embora o fruto não apareça de imediato, no tempo apropriado produzirá com mais abundância do que podemos expressar. Mas assim como Ele lhes concedeu esse privilégio, para que os laços de vocês sejam renovados e o seu clamor se propague amplamente por toda a parte, é indispensável, a despeito de Satanás, que a morte de vocês ressoe muito mais poderosamente, para que o nome do nosso Senhor seja engrandecido por meio disso. Da minha parte, se foi grato a esse bondoso Pai tomá-los [para] si mesmo, não duvido que Ele lhes preservou até aqui para que o seu prolongado  e contínuo encarceramento  sirva de preparação para despertar melhor a quem Ele determinou edificar com o fim de vocês. Assim, por mais que os inimigos  se esforcem, jamais conseguirá esconder essa luz que Deus fez brilhar em vocês, para que fosse contemplada desde muito longe. (…) O fato de Deus lhes designar como mártires do seu Filho lhes serve de sinal de graça superabundante. (…) Enquanto aprouver a Deus dar o reino aos seus inimigos, nosso dever é ficarmos quietos, embora tarde o tempo da nossa redenção. (…) Há de vir o tempo em que a terra revelará o sangue que tem estado escondido, e nós, depois de nos desembaraçarmos desse corpo corruptível, seremos completamente restaurados. De qualquer modo, que o Filho de Deus seja glorificado na nossa vergonha e que nos contentemos com este fiel testemunho: que, embora sejamos perseguidos e condenados, confiamos no Deus vivo. Assim, temos com o que desprezar o mundo inteiro com a sua soberba, até que sejamos reunidos naquele reino eternal, onde gozaremos plenamente aquelas bênçãos de que agora só temos em esperança.[1]                                                                                    

          Certamente esses missionários não receberam a carta de Calvino. No dia seguinte, 16 de maio de 1563, foram martirizados na fogueira. Seguiram tranquilamente para o lugar (Place Terreaux)[2] cantando salmos  e recitando passagens bíblicas. O mais velho, Marcial Alba, com permissão do comandante (tenente), beijou os outros quatro condenados que já estavam amarrados. Sendo também preso, o fogo foi aceso. Assim foram martirizados.

          Uma observação muito estimulante. O cantar salmos se constituiu em um ponto fundamental de identidade entre os Calvinistas na Europa e, posteriormente nos Estados Unidos.[3]  Os Salmos se tornaram em “verdadeiros hinos de batalha”;[4] um cântico de combate, mas, também de consolo diante das perseguições e iminente morte.[5] Cottret (1951-2020) resume: “O saltério foi a Reforma francesa”.[6]

          Em 1545, com a determinação, devido à falsas informações, ou à revelia[7] de Francisco I (1494-1547), os Valdenses foram massacrados em suas aldeias. Esta perseguição ficou conhecida com o nome de Massacre de  Mérindol quando foram mortocentenas ou milhares de homens, mulheres: velhos, jovens, crianças e mulheres grávidas.[8] Os sobreviventes foram usados em trabalhos forçados.[9]  

               “Em  1546, a Igreja reformada de Meaux foi dizimada pela perseguição”.[10] Aqui, 14 mártires morreram cantando o Salmo 79.[11] John Owen (1616-1683), no leito de morte, teve como últimas palavras, o Salmo 79.8.[12]

          Place Maubert nas proximidades da Sorbone em Paris, traz em suas silentes memórias os cânticos de muitos huguenotes ali torturados e martirizados.[13]

          Leith (1919-2002) comenta que,

O cântico dos salmos contribuiu para moldar o caráter e a piedade reformada e sua influência dificilmente poderia ser superestimada. Os salmos eram as orações do povo na liturgia de Calvino. Por meio deles, os adoradores respondiam à Palavra de Deus e afirmavam sua confiança, gratidão e lealdade a Deus.[14] 

O cântico de salmos tornou-se essencial para a piedade calvinista. Os protestantes franceses, ao serem levados para a prisão ou para a fogueira, cantavam salmos com tanta veemência que foi proibido por lei cantar salmos e aqueles que persistiam tinham sua língua cortada. O salmo 68 era a Marselhesa huguenote.[15]

          De fato, na França, em diversas ocasiões os protestantes foram atacados enquanto prestavam culto a Deus, orando, lendo a Palavra e cantando salmos. Depois de narrar algumas dessas perseguições, Baird (1828-1887) constata: “A Liturgia do protestantismo francês foi banhada com o sangue de seus mártires”.[16]

Maringá, 07 de outubro de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] In: João Calvino, Cartas de João Calvino, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 107-109.

[2] Modernamente constitui-se em ponto turístico concorridíssimo em Lyon.

[3] Cf. Charles Garside, Jr., The Origins of Calvin’s Theology of Music: 1536-1543, Philadelphia: The American Philosophical Society, 1979, p. 5.

[4] W. Stanford Reid, The Battle Hymns of the Lord: Calvinist Psalmody of the Sixteenth Century. In: C.S. Meyer, ed. Sixteenth Century Essays and Studies, St. Louis: Foundation for Reformation Research, 1971, v. 2, [p. 36-54], p. 46.  (Disponível: https://www.jstor.org/stable/3003691?seq=10#metadata_info_tab_contents). (Consulta feita em 31.03.21). Ver: John Ker, Psalms in History and Biography, Edinburgh: Andrew Elliot, 1886, p. 95.121, 184, 188.  https://archive.org/details/psalmsinhistoryb00kerj/).(Consulta feita em 01.04.2021).

[5]Veja-se: John Ker, Psalms in History and Biography, Edinburgh: Andrew Elliot, 1886, p. 121, 184, 188.  https://archive.org/details/psalmsinhistoryb00kerj/).(Consulta feita em 31.03.2021). Daniel-Rops (1901-1965), historiador católico, cujo belo estilo, por vezes, tenta compensar as suas inclinações e o uso das fontes, ironiza o fato de os huguenotes cantarem salmos enquanto se preparavam para as batalhas e, do mesmo modo, as longas rezas. (Veja-se: Daniel-Rops, Igreja da Renascença e da Reforma – V. 2,  São Paulo: Quadrante, 1999, p. 178-179).

[6]Bernard Cottret, Calvin: a Biography,Grand Rapids, Mi.: Eerdmans and Edinburgh: T & T Clark, 2000, p. 172.

[7] “Sem que sua responsabilidade direta estivesse contudo envolvida” (Jean Delumeau, Nascimento e Afirmação da Reforma, São Paulo: Pioneira, 1989, p. 176).

[8] O jesuíta, Maimbourg (1610-1686) – que acabara de ser expulso de sua ordem pelo papa [Inocêncio XI -1611-1689] (1681) quando escreveu sua obra – retratando por meio de crônicas, o calvinismo como uma grande heresia,  fala de 3600 mortos e 900 casas destruídas (Louis Maimbourg, Historie du Calvinisme,  3. ed. Paris: Chez Sebastien Mabre-Cramoist, 1682, v. 2.  As estatísticas do número de mortos é bastante variada. Veja-se: R.J. Knecht, Francis I,  Cambridge: Cambridge University Press, 1984, p. 405-406.

[9]Quando Calvino recebeu a informação por parte de um irmão de confiança que, ao que deduzo, foi testemunha ocular deste massacre ou de seus efeitos, Calvino partiu com urgência de Genebra para Berna, solicitando com empenho a Berna e a Zurique a interferência em favor daqueles irmãos que estavam sendo massacrados por intolerância e fanatismo.

Antes, porém, escreveu a Farel (04/05/1545), em meio a lágrimas, a respeito das notícias que recebera e da viagem que pretendia fazer:

            “Várias aldeias foram consumidas pelo fogo, que a maioria dos velhos foi queimada até a morte, que alguns foram mortos à espada, outros foram carregados para cumprir sua condenação; e que tal era a crueldade selvagem desses perseguidores, que nem moças, nem mulheres grávidas, nem crianças foram poupadas. Tão grande é a atroz crueldade desse procedimento, que fico perplexo quando reflito sobre isso. Como, então, devo expressá-lo em palavras? (…) Escrevo, esgotado pela tristeza, e não sem lágrimas, que tanto irrompem, que de vez em quando interrompem minhas palavras” (To Farel (04.05.1545): In: Selected Works of John Calvin: Tracts and Letters, eds. Henry Beveridge and Jules Bonnet, Grand Rapids, Mi: Baker Book House, v. 4 (Letters, Part 1), 1983,  p. 458-459).

[10]Jean Delumeau, Nascimento e Afirmação da Reforma, São Paulo: Pioneira, 1989, p. 177.

[11]John Ker, Psalms in History and Biography, Edinburgh: Andrew Elliot, 1886, p. 106. https://archive.org/details/psalmsinhistoryb00kerj/page/106); W. Stanford Reid, The Battle Hymns of the Lord: Calvinist Psalmody of the Sixteenth Century. In: C.S. Meyer, ed. Sixteenth Century Essays and Studies, St. Louis: Foundation for Reformation Research, 1971, v. 2, [p. 36-54], p. 46.  (Disponível: https://www.jstor.org/stable/3003691?seq=10#metadata_info_tab_contents); Carl Lindberg, As Reformas na Europa, São Leopoldo, RS.: Sinodal, 2001, p. 339. O pré-reformador João Huss (c. 1369-1415), pregador da Capela de Belém e professor e Reitor da Universidade de Praga,  foi queimado vivo.  Antes de morrer, recitou diversos salmos, principalmente o 51 e 53 (Cf. John Ker, Psalms in History and Biography, Edinburgh: Andrew Elliot, 1886, p. 54-55.  https://archive.org/details/psalmsinhistoryb00kerj/).(Consulta feita em 01.04.2021).

[12] John Ker, Psalms in History and Biography, Edinburgh: Andrew Elliot, 1886, p. 107-108.  Apresentando uma relação mais ampla, Ker  (1819–1886), como escocês, escreve: “Há uma semelhança notável na maneira de morrer dos mártires franceses e escoceses, decorrente das relações frequentes entre as Igrejas nos primeiros dias da Reforma e de sua devoção comum ao livro dos Salmos” (John Ker, Psalms in History and Biography, Edinburgh: Andrew Elliot, 1886, p. 85).  

[13] Vejam-se: John Ker, Psalms in History and Biography, Edinburgh: Andrew Elliot, 1886, p. https://fr.wikipedia.org/wiki/Place_Maubert#cite_note-9

[14]John H. Leith, A Tradição Reformada: Uma maneira de ser a comunidade cristã,  São Paulo: Pendão Real, 1997, p. 301. Ver alguns exemplos significativos em: Charles W. Baird, A Liturgia Reformada: Ensaio histórico, Santa Bárbara D’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 67ss.

[15]John H. Leith, A Tradição Reformada: Uma maneira de ser a comunidade cristã,p. 299. Do mesmo modo: Carl Lindberg, As Reformas na Europa,  São Leopoldo, RS.: Sinodal, 2001, p. 339. Ver: Emily R. Brink, The Genevan Psalter: In: Emily B. Brink; Bert Polman, eds. Psalter Hymnal Handbook, Grand Rapids, Michigan: CRC Publications, 1998, p. 34. Foi o próprio Calvino quem adaptou a melodia de um dos corais de Greiter ao Salmo 68. (Cf. Henriqueta R.F. Braga, Contribuição da Reforma ao Desenvolvimento Musical: In: Bill H. Ichter, org. A Música Sacra e Sua História,Rio de Janeiro: JUERP., 1976, p. 77). Matthäus Greiter (c.1495-1550), de grande talento mas, de ética ambígua, foi quem compôs a música, sendo publicado pela primeira vez no Saltério de Estrasburgo em 1539 e foi então incluido na primeira edição do Saltério de Genebra (1542). O Salmo 68 também tornou-se conhecido entre os huguenotes como “Cântico das batalhas”, sendo cantado por eles em muitos de seus conflitos “sangrentos e desesperados”. (Cf. John Ker, Psalms in History and Biography, Edinburgh: Andrew Elliot, 1886, p. 95). O hino de Lutero baseado no Salmo 46 foi chamado por H. Heine (1797-1856) de “Marselhesa da Reforma” (Cf. W.J.R.T., Hymnology: In: Rev. John McClintock; James Strong, eds. Cyclopedia of Biblical, Theological and Ecclesiastical Literature, [CD-ROM], (Rio, WI., Ages Software, 2000), v. 4, p. 130).

[16]Charles W. Baird, A Liturgia Reformada: Ensaio histórico, p. 65.

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