Teologia da Evangelização (9)

2. A Evangelização

2.1. Fundamentação histórica e teológica

O Cristianismo é uma religião de história.[1] Elimine, por exemplo, a historicidade dos 11 primeiros capítulos de Gênesis, e mutilaremos o sentido das Escrituras e, por isso mesmo, os fundamentos da fé cristã. Pelo fato da Criação ter ocorrido na história, bem como a Queda, a promessa (Gn 3.15) e o Dilúvio, é que tudo o mais faz sentido. Se a Queda é apenas uma lenda, porque precisaríamos crer na encarnação, morte e ressurreição de Cristo como fato histórico? Bastaria a criação de outra lenda para, quem sabe, remediar o que fora inventado anteriormente.

            A revelação dá-se na história. Qual o sentido de Deus falar e agir na história e, ao mesmo tempo, fornecer por meio de sua Palavra uma história mentirosa, cheia de equívocos e erros? Grande parte dos ensinamentos doutrinários das Escrituras provém de fatos históricos não apenas de proposições doutrinárias.[2]

            Na história vemos a demonstração prática dos ensinamentos de Deus, revelando os acertos e fracassos de suas criaturas em serem fiéis ao seu Senhor, e, ao mesmo tempo, a demonstração de sua misericórdia incompreensível que atinge o seu ápice na encarnação do Verbo.

            O Cristianismo não se ampara em lendas, antes, em fatos os quais devem ser testemunhados, visto que têm uma relação direta com a vida dos que creem.[3] O Cristianismo é uma religião de fatos, palavra e vida. Os fatos, corretamente compreendidos, têm uma relação direta com a nossa vida. A fé cristã fundamenta-se no próprio Cristo: O Deus-Homem. Sem o Cristo Histórico não haveria Cristianismo.[4] A sua força e singularidade estão neste fato, melhor dizendo: na pessoa de Cristo, não simplesmente nos seus ensinamentos.[5] O Cristianismo é o próprio Cristo.

            A encarnação é toda e inclusivamente missionária: o Verbo fez-se carne e habitou entre nós (Jo 1.14). É por isso também, que o Cristianismo é uma religião de memória, relatando os feitos de Deus e desafiando o povo a reafirmar a sua fé a partir do rememorar dos atos de Deus na história.[6]

            Bavinck (1854-1921), corretamente destaca a singularidade de Cristo para o Cristianismo:

Ele ocupa um lugar completamente único no Cristianismo. Ele não foi o fundador do Cristianismo em um sentido usual, ele é o Cristo, o que foi enviado pelo Pai e que fundou Seu reino sobre a terra e agora expande-o até o fim dos tempos. Cristo é o próprio Cristianismo. Ele não está fora, Ele está dentro do Cristianismo. Sem Seu nome, pessoa e obra, não há Cristianismo. Em outras palavras, Cristo não é aquele que aponta o caminho para o Cristianismo, Ele mesmo é o caminho.[7]

            Se as reivindicações divinas e redentivas do Jesus Cristo histórico são verdadeiras como de fato são, a mensagem do Evangelho deve ser anunciada ao mundo para que aqueles que crerem sejam salvos.

            Noll resume bem ao dizer que: “Estudar a história do cristianismo é lembrar continuamente o caráter histórico da fé cristã”.[8]

            Sem o fato histórico da encarnação, morte e ressurreição de Cristo, podemos falar até de experiência religiosa, mas não de experiência cristã. A experiência cristã depende fundamentalmente destes eventos.[9] É por isso que a pregação da Igreja primitiva, conforme nos mostram as Escrituras, estava fundamentalmente amparada na certeza da ressurreição do Senhor.[10]

Portanto, quando focamos o nosso olhar na experiência, corremos o risco de perdermos a dimensão da essência, do referente, que é Deus. Neste processo, como escreveu Barth (1886-1968), “a passagem da experiência do Senhor à experiência de Baal é curta. O religioso e o sexual são extremamente semelhantes”.[11]

Jesus Cristo é o clímax da Revelação; é a Palavra final de Deus; é o próprio Deus que se fez carne. Nele temos não uma metáfora ou um sinal, antes, temos o próprio Deus que se fez homem na história.

Escreve Sire (1933-2018):

Jesus Cristo é a revelação final e especial de Deus. Porque Jesus Cristo era verdadeiramente Deus Ele nos mostrou mais plenamente com quem Deus era semelhante do que qualquer outra forma de revelação. Porque Jesus foi também completamente homem, Ele falou mais claramente a nós do que pode fazê-lo qualquer outra forma de revelação.[12]

            A fé cristã é para ser vivida e proclamada. A pregação caracteriza essencialmente a fé cristã e a sua proclamação. Paulo, então indaga:

Como, porém, invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem nada ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue? E como pregarão, se não forem enviados? Como está escrito: Quão formosos são os pés dos que anunciam coisas boas! (Rm 10.14-15).

            No final de sua vida, Paulo, com a consciência certa de ter concluído fielmente o seu ministério, exorta ao jovem Timóteo:

Prega a palavra, insta, quer seja oportuno, quer não, corrige, repreende, exorta com toda a longanimidade e doutrina. Pois haverá tempo em que não suportarão a sã doutrina; pelo contrário, cercar-se-ão de mestres segundo as suas próprias cobiças, como que sentindo coceira nos ouvidos; e se recusarão a dar ouvidos à verdade, entregando-se às fábulas (mu=qoj = lenda, mito). Tu, porém, sê sóbrio em todas as coisas, suporta as aflições, faze o trabalho de um evangelista, cumpre cabalmente o teu ministério. (2Tm 4.2-5).

Maringá, 10 de julho de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]Veja-se a exposição de Alan Richardson, Así se hicieron los Credos: Una breve introducción a la historia de la Doctrina Cristiana, Barcelona: Editorial CLIE, 1999, p. 15ss.

[2] Veja-se, por exemplo: Francis A. Schaeffer, Nenhum conflito final: a Bíblia sem erro em tudo o que ela afirma, Brasília, DF.: Monergismo, 2017, p. 13-33.

[3] Veja-se: F.A. Schaeffer, O Deus que intervém, São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 250-251.

[4] Georges Duby (1919-1996), dentro de uma perspectiva puramente histórica, admite: “O Cristianismo, que impregnou fundamentalmente a sociedade medieval, é uma religião da história. Proclama que o mundo foi criado num dado momento e que, num outro, Deus fez-se homem para salvar a humanidade. A partir disso, a história continua e é Deus quem a dirige” (Georges Duby, Ano 1000, ano 2000, na pista de nossos medos, São Paulo: Editora UNESP.;  Imprensa Oficial do Estado, 1999, p. 16). “Os historiadores insistiram com justeza sobre o fato de que o cristianismo é uma religião histórica, ancorada na história e se afirmando como tal” (Jacques Le Goff, Tempo: In: Jacques Le Goff; Jean-Claude Schmitt, coords. Dicionário Temático do Ocidente Medieval, Bauru,SP.; São Paulo, SP.: Editora da Universidade Sagrado Coração; Imprensa Oficial do Estado, 2002, v. 2, p. 534). “O cristianismo, como também a religião de Israel, da qual ele nasceu, se apresenta como uma religião histórica de forma absolutamente concreta, em comparação à qual nenhuma das outras religiões do mundo pode se equiparar – nem mesmo o Islã, apesar de este se aproximar mais do cristianismo e do judaísmo, nesse sentido, que qualquer outra religião” (Christopher Dawson, Dinâmicas da História no Mundo, São Paulo: É Realizações Editora, 2010, p. 343). Do mesmo modo: Marc Bloch, Apologia da história, ou, O ofício do historiador, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 58. Veja-se também: Gordon H. Clark, Uma visão cristã dos homens e do mundo, Brasília, DF.: Monergismo, 2013, p. 85, 92.

[5]Veja-se: Alister E. McGrath, Paixão pela Verdade: a coerência intelectual do Evangelicalismo, São Paulo: Shedd Publicações, 2007, p. 23ss. “Qualquer coisa que se apresente como cristianismo, mas que não insista na absoluta e essencial necessidade de Cristo, não é cristianismo. Se Ele não for o coração, a alma e o centro, o princípio e o fim do que é oferecido como salvação, não é a salvação cristã, seja lá o que for” (D. M. Lloyd-Jones, O supremo propósito de Deus: Exposição sobre Efésios 1.1-23, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1996, p. 143). “O evangelho nos confronta com fatos. Ele se baseia completamente numa pessoa; está fundamentado em fatos definidos que ocorreram ao longo da história. (…) Ele me conduziu por entre os fatos, ao longo do túnel das trevas em direção à aurora que ilumina a outra extremidade” (D.M. Lloyd-Jones, Não se perturbe o coração de vocês, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2016, p. 29). Veja-se Alister E. McGrath, A gênese da doutrina: fundamentos da crítica doutrinária, São Paulo: Vida Nova, 2015, p. 195ss.

[6] Veja-se: Michael S. Horton, Os Sola’s de Reforma: In: J.M. Boice;  B. Sasse, Reforma Hoje,  São Paulo: Cultura Cristã, 1999, p. 97.

[7]Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 311. Quanto ao esvaziamento nos púlpitos modernos da pessoa de Cristo e de sua glória, veja-se o desafiante livro de Lawson (Steven J.  Lawson, O tipo de pregação que Deus abençoa,  São José dos Campos, SP.: Fiel, 2013).

[8]Mark A. Noll, Momentos Decisivos na História do Cristianismo, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2000,p. 16. Vejam-se também: Clyde P. Greer, Jr., Refletindo Honestamente sobre a História: In: John F. MacArthur Jr. ed. ger. Pense Biblicamente!: recuperando a visão cristã do mundo, São Paulo: Hagnos, 2005, p. 400-401.

[9]Cf. J. Gresham Machen, Cristianismo e Liberalismo, São Paulo: Os Puritanos, 2001, p. 77.

[10] “Gostemos ou não, não podemos escapar ao fato de que historicamente o Cristianismo foi fundado sobre a crença na ressurreição” (Alan Richardson, Así se hicieron los Credos: Una breve introducción a la historia de la Doctrina Cristiana, Barcelona: Editorial CLIE, 1999, p. 24).

[11] Karl Barth, A Palavra de Deus e a palavra do homem, São Paulo: Novo Século, 2004, p. 217.

[12]James W. Sire, O universo ao lado, São Paulo: Hagnos, 2004, p. 40.

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