Teologia da Evangelização (61)

2.4.3.2.2.9.2. Selados em santidade

A perseverança não é uma atividade humana, mas um dom de Deus – H. Bavinck.[1]

 “E não entristeçais o Espírito de Deus, no qual fostes selados (sfragi/zw) para o dia da redenção” (Ef 4.30).

          A eleição eterna é a garantia de nossa salvação. Aqueles a quem Deus chama ele glorifica (Rm 8.30). Esta é nossa certeza e consolo.

          No entanto, durante a nossa trajetória espiritual, o Espírito se entristece com os nossos pecados, manifestando o seu desagrado, de modo externo: por intermédio da Palavra de Deus. Interno: por meio de nossa consciência.

          Na Carta aos filipenses, vemos o próprio Paulo se preocupando em orar pela igreja, estimulá-la e exortá-la por meio da Epístola a que frutificasse em sua fé:

E também faço esta oração: que o vosso amor aumente mais e mais em pleno conhecimento e toda a percepção, 10 para aprovardes as coisas excelentes e serdes sinceros e inculpáveis para o Dia de Cristo, 11 cheios do fruto de justiça, o qual é mediante Jesus Cristo, para a glória e louvor de Deus. (Fp 1.9-11).

          Esse fruto (Fp 1.11) se revela no desenvolvimento de nossa salvação, conforme ele exorta a igreja:

Assim, pois, amados meus, como sempre obedecestes, não só na minha presença, porém, muito mais agora, na minha ausência, desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor; 13 porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade. (Fp 2.12-13).

          Os Cânones de Dort (1619) pontuam bem esta questão:

Essa certeza de perseverança não produz de modo algum nos crentes um espírito de orgulho ou os torna carnalmente seguros; ao contrário, ela é a verdadeira fonte da humildade, reverência filial, verdadeira piedade, paciência em toda tribulação, orações fervorosas, constância nos sofrimentos e em confessar a verdade e alegria sólida em Deus, de modo que a consideração desse benefício serve como um incentivo para a séria e constante prática de gratidão e boas obras, como é evidente nos testemunhos das Escrituras e nos exemplos dos santos.

A renovada confiança de perseverar não produz licenciosidade ou negligência na piedade naqueles que estão se recuperando de uma apostasia, mas isso os torna mais cuidadosos e diligentes quanto a se manterem nos caminhos do Senhor, que ele preparou, para que, ao andarem neles, eles possam preservar a certeza da perseverança, para que não abusem de sua gentileza paternal e Deus tire delas sua graciosa face, a contemplação da qual é para o piedoso mais preciosa do que a vida, e a retirada dela é mais amarga do que a morte, e eles, em consequência disso, caiam em maiores tormentos da consciência.[2]

A eleição de Deus e o seu consequente chamado se revelam em uma boa obra em nós de transformação e crescimento espiritual.[3] É deste modo que Paulo escreve aos Efésios:

8 Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus; 9 não de obras, para que ninguém se glorie. 10 Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas. (Ef 2.8-10).

          A doutrina da perseverança é bem chamada de perseverança dos santos.[4]E isto, em graça. Dito de outro modo, a nossa perseverança deve ser em santidade. Logo, neste processo de aperfeiçoamento há, fundamentalmente, a necessidade de nosso crescimento e amadurecimento. Deus não somente nos salva, mas, também, nos faz crescer em nossa caminhada. A perseverança é envolvida pela preservação da graça pedagógica de Deus que, além de nos preservar,[5] nos instrui e educa para que sejamos de forma progressiva conduzidos à semelhança de Cristo.

          A piedade, como evidência de nosso perseverar em santidade, é desenvolvida por meio de nosso crescimento na graça. A graça não é um ato condescendente de Deus para com os nossos pecados, ou um simples “alvará de soltura sobrenatural”[6]que nos autoriza, ou, pelo menos, negligencia nossa volta ao pecado anteriormente perdoado. Não.

          A graça de Deus, além de salvadora, é extremamente pedagógica, nos educando, instruindo e corrigindo: “Porquanto a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens, educando-nos (paideu/w) para que, renegadas a impiedade e as paixões mundanas, vivamos no presente século, sensata, justa e piedosamente (eu)sebw=j)” (Tt 2.11-12).

A piedade autêntica, por ser moldada pela Palavra, traz consigo os perigos próprios resultantes de uma ética contrastante com os valores deste século: “Ora, todos quantos querem viver piedosamente (eu)sebw=j)[7] em Cristo Jesus serão perseguidos” (2Tm 3.12). No entanto, há o conforto expresso por Pedro às igrejas perseguidas: “….o Senhor sabe livrar da provação (peirasmo/j = “tentação”) os piedosos (eu)sebh/j)….” (2Pe 2.9).

          A piedade deve estar associada a diversas outras virtudes cristãs a fim de que seja frutuosa no pleno conhecimento de Cristo (2Pe 1.6-8).[8] A nossa certeza é que Deus nos concedeu todas as coisas que nos conduzem à piedade. Maiores detalhes sobre este ponto foram tratados no tópico sobre o Espírito como Mestre da Oração e a Palavra como meio de santificação.

          A piedade como resultado de nosso relacionamento com Deus deve ter o seu reflexo concreto dentro de casa, sendo revelada por meio do tratamento que concedemos aos nossos pais e irmãos: “….se alguma viúva tem filhos ou netos, que estes aprendam primeiro a exercer piedade (eu)sebe/w)para com a própria casa e a recompensar a seus progenitores; pois isto é aceitável diante de Deus” (1Tm 5.4).[9] Se até mesmo os próprios descrentes assim procedem, como um cristão poderia ter um padrão menor? (1Tm 5.4,8,16)

          Nunca o nosso trabalho, por mais relevante que seja, poderá se tornar em um empecilho para a ajuda aos nossos familiares. A genuína piedade é caracterizada por atitudes condizentes para com Deus (reverência) e para com o nosso próximo (fraternidade).

          Curiosamente, quando o Novo Testamento descreve Cornélio, diz que ele era um homem piedoso (Eu)sebh/j) e temente a Deus (…) e que fazia muitas esmolas ao povo e de contínuo orava a Deus” (At 10.2).

          A piedade é uma relação teologicamente orientada do homem para com Deus em sua devoção e reverência e, a sua conduta biblicamente ajustada e coerente com o seu próximo. A piedade envolve comunhão com Deus e o cultivo de relações justas com os nossos irmãos. “A obediência é a mãe da piedade”, resume Calvino.[10]

          Ao mesmo tempo, o Senhor Jesus Cristo é poderoso para nos socorrer em nossas tentações (1Co 10.13):[11] “Pois, naquilo que ele mesmo sofreu, tendo sido tentado, é poderoso (du/namai) para socorrer os que são tentados” (Hb 2.18). (Ver também: Hb 4.15; Jd 24; 1Pe 1.5).[12]

     O Espírito aplicou os méritos salvadores de Cristo em nosso coração, e nos preserva íntegros até o fim. Nele fomos “selados para o dia da redenção” (Ef 4.30). Pelo fato do Espírito ser Santo, Ele nos quer preservar em santidade até o dia da redenção (Ef 1.13-14). Deus quer nos guardar tal qual Ele é, em santidade. Foi com este propósito que o Filho morreu por nós e, por meio de seu Espírito, nos preserva (Ef 5.25-27).[13]

          Beeke e Jones, escrevem:

O cultivo da piedade está preeminentemente ligado aos meios de graça. Em suma, piedade significa ter a experiência da santificação como uma obra divina e graciosa de renovação, expressada em arrependimento e justiça que progride por meio de conflitos e adversidades, seguindo o modelo de Cristo durante toda a vida do crente, na expectativa do dia quando a piedade se tornará perfeita na santificação eterna no céu.[14]

          Pedro encerra a sua carta dizendo: “Antes, crescei na graça e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. A ele seja a glória, tanto agora como no dia eterno” (2Pe 3.18).

          Portanto, temos nesta doutrina um motivo de conforto e desafio. O desafio é vivermos a intensidade da vida cristã em obediência, no conforto de que é Deus mesmo quem nos preservará até o fim.[15] 

  Maringá, 09 de setembro de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 4, p. 270.

[2] Os Cânones de Dort. In: Sinclair B. Ferguson; Joel R. Beeke, orgs. Harmonia das Confissões Reformadas, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, V.12-13. Vejam-se também: Catecismo de Heidelberg, Perguntas: 1,53,54,127.

[3]“O que acontece com o cristão não é mera reforma ou melhoramento da superfície. O Evangelho não é algo que muda o homem no sentido de torná-lo um pouco melhor, no sentido cultural. Não, é uma obra vital realizada por Deus na alma e sobre a alma, no centro mesmo e nos órgãos vitais da vida e da existência do homem” (D. Martyn Lloyd-Jones, A Vida de Alegria, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2008, p. 42).

[4] Hoekema prefere chamá-la de “perseverança do verdadeiro crente” (Anthony Hoekema, Salvos pela Graça, São Paulo: Cultura Cristã, 1997, p. 243). Murray argumenta em prol do nome clássico, “perseverança dos santos” (Veja-se: John Murray, Redenção: Consumada e Aplicada,São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1993, p. 170-171). Sproul, considerando o termo “perseverança” como “um tanto enganoso”, opta por “preservação”, justificando: “Nós perseveramos porque somos preservados por Deus. Se deixados por conta de nossa própria força, nenhum de nós perseveraria. Só porque somos preservados por graça é que somos capazes de perseverar de alguma maneira” (R.C. Sproul, O que é teologia reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 168). À frente: “A graça preservadora de Deus torna a nossa perseverança tanto possível como real” (p. 179).

[5] “Por mais que o evangelho tenha sido fielmente proclamado entre nós, necessitamos que Deus eficazmente opere em nós dia após dia. Do contrário, seremos tão inconstantes que a menor coisa nos fará desviar” (João Calvino, Sermões sobre Gálatas, Brasília, DF.: Monergismo, 2022, v. 1, p. 18 (Edição do Kindle).

[6]Devo esta expressão a MacArthur (John MacArthur, O Evangelho Segundo os Apóstolos, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2011, p. 70).

[7] Este advérbio só ocorre em dois textos do Novo Testamento: 2Tm 3.12; Tt 2.12.

[8]“Por isso mesmo, vós, reunindo toda a vossa diligência, associai com a vossa fé a virtude; com a virtude, o conhecimento; com o conhecimento, o domínio próprio; com o domínio próprio, a perseverança; com a perseverança, a piedade (e)use/beia); com a piedade (e)use/beia), a fraternidade; com a fraternidade, o amor. Porque estas coisas, existindo em vós e em vós aumentando, fazem com que não sejais nem inativos, nem infrutuosos no pleno conhecimento de nosso Senhor Jesus Cristo” (2Pe 1.5-8).

[9]“Seria uma boa preparação treinar-se para o culto divino, pondo em prática deveres domésticos piedosos em relação a seus próprios familiares” (João Calvino, As Pastorais, (1Tm 5.4), p. 131).

[10] John Calvin, Commentaries of the Four Last Books of Moses, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (Calvin’s Commentaries, v. 2), 1996 (Reprinted), v. 1, (Dt 12.32), p. 453.

[11]“Não vos sobreveio tentação que não fosse humana; mas Deus é fiel e não permitirá que sejais tentados além das vossas forças (du/namai); pelo contrário, juntamente com a tentação, vos proverá livramento, de sorte que a possais (du/namai) suportar” (1Co 10.13).

[12] “Porque não temos sumo sacerdote que não possa (du/namai) compadecer-se das nossas fraquezas; antes, foi ele tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado” (Hb 4.15). “Ora, àquele que é poderoso (du/namai) para vos guardar de tropeços e para vos apresentar com exultação, imaculados diante da sua glória, ao único Deus, nosso Salvador, mediante Jesus Cristo, Senhor nosso, glória, majestade, império e soberania, antes de todas as eras, e agora, e por todos os séculos. Amém!” (Jd 24-25). “Que sois guardados pelo poder (du/namij) de Deus, mediante a fé, para a salvação preparada para revelar-se no último tempo” (1Pe 1.5).

[13]“Maridos, amai vossa mulher, como também Cristo amou a igreja e a si mesmo se entregou por ela, 26 para que a santificasse, tendo-a purificado por meio da lavagem de água pela palavra, 27 para a apresentar a si mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, porém santa e sem defeito” (Ef 5.25-27).

[14]Joel R. Beeke; Mark Jones, orgs. Teologia Puritana: Doutrina para a vida,  São Paulo: Vida Nova, 2016, p. 1201.

[15] Anthony Hoekema, Salvos pela Graça, São Paulo: Cultura Cristã, 1997, p. 262-263.

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