Teologia da Evangelização (136)

4.3.3.2. A Mente Cativa: A Palavra de outro “senhor” (Continuação)

A hermenêutica secular é terrível porque, entre outras coisas, nos mantêm cativos em seus pressupostos dogmáticos, onde não há Deus ou, pelo menos, o Deus majestoso das Escrituras. Desse modo este mundo anormal após a queda, passa a ser o normal e desejável.[1]

O pecado afeta a totalidade do homem, inclusive o seu intelecto.[2] Assim, criamos um universo de valor privado onde a verdade é de cada um dentro dos significados subjetivos circunstanciais.

Veith diz que, “normalmente, não são os argumentos específicos contra o Cristianismo que perturbam a fé de uma pessoa, mas toda a atmosfera do pensamento contemporâneo”.[3] O clima intelectual de uma época é sempre fortemente influenciador de nossa estrutura de pensamento e, portanto, de nossas prioridades e valores. A força deste “clima” talvez repouse sobre a sua configuração óbvia e normativa com que ele se apresenta à nossa mente.

 É quase impossível ter a percepção de algo que nos conduz – como também a nossos parceiros de entendimento – de forma tão suave. Por isso, o simples – ainda que não seja tão simples assim – fato de podermos pensar com clareza, sem estes condicionantes, é uma bênção inestimável de Deus.[4] “O pecado é anti-intelectual”.[5]

          O ateísmo do iníquo não é apenas teórico, antes, é eminentemente prático, [6] se manifestando em seu comportamento.

          Escrevendo o Salmo 14, Davi, que em última instância descreve a realidade potencial de todo o homem sem Deus, fala de modo mais específico daquele que nega o transcendente, cometendo o grande ato de insensatez: “Diz o insensato (lb’n”) (nabal) no seu coração (ble) (leb): Não há Deus (~yhil{a/) (elohim). Corrompem-se (tx;v’) ((shahat) e praticam abominação (b(;T) (ta’ab)” (Sl 14.1).

O insensato nega a realidade transcendente, não existe Deus nem seres angelicais,[7] o seu mundo é puramente material. Ele solidifica isso em seu coração, não simplesmente, da boca para fora, daí dizer “no seu coração”, a sede de sua emoção, razão e vontade. Ele se alimenta em seu “eu essencial” da negação de Deus, ainda que cultive seus deuses dentro de uma falsidade ideológica adotada.[8]

          A língua expressa o que o seu coração sente e, o coração é retroalimentado pelas palavras que dele procede.

          Ainda que ele possa não ter a ousadia de negar verbalmente a existência de Deus, vive conforme as suas inclinações pecaminosas e interesses circunstanciais, sem nenhum temor de Deus. Ele expressa de forma prática o que crê e labora em seu coração.

A ideia do texto é que o ateísmo como não permanece apenas no campo teórico, faz com que nos desviemos totalmente dos preceitos de Deus. Há um extravio, daí a corrupção intelectual[9] e moral. Limito-me à questão intelectual. O salmista diz que ele se corrompe (tx;v’) ((shahat).[10] A palavra tem também a ideia de ruína (2Cr 34.11; Pv 6.32); destruição (Sl 78.38,45; Is 37.12); danificar (Jr 49.9); poço (Sl 7.16); cova (Sl 9.16), lodo (Jó 9.31).

O insensato na afirmação de que não há Deus, perdendo a dimensão metafísica da existência, se arruína, se destrói intimamente, tem desestruturada toda a sua forma de pensar, perceber a realidade (epistemologia) e, consequentemente, de organizar o seu pensamento (lógica) a partir de fundamentos equivocados. Isto se manifesta inclusive em sua conduta religiosa e ética.

Ele escorregou e caiu na cova de seu próprio pensamento. Por isso a prática de abominações que consistem em atos totalmente contrários à Palavra de Deus, tais como a idolatria e o sacrifício humano (1Rs 21.26; Sl 106.40), atos sanguinários e fraudulentos. Deus abomina quem tais coisas praticam: “Os arrogantes não permanecerão à tua vista; aborreces a todos os que praticam (b(;T) (ta’ab) a iniquidade (!w<a’) (‘aven) (Sl 5.6).

    Retornando à questão tratada por Paulo, perguntamos: as armas que temos são poderosas em Deus para quê? Analisemos a progressão do seu pensamento:

a) “Para destruir[11] fortalezas” (* o)xu/rwma)[12] (2Co 10.4). A palavra “fortaleza”, só ocorre aqui no NT, e tem um emprego secular de fortaleza de palavras, de argumentos presumivelmente considerados fortes e indestrutíveis. Metaforicamente, a expressão indica conceitos especulativos que se erguem contra a cruz de Cristo. O Espírito, por meio da Palavra, destrói a nossa forma viciada de pensar que obstaculizava a compreensão do Evangelho.

b) “Anulando sofismas” (logismo/j):[13] Toda a sabedoria carnal em oposição ao saber espiritual.

c) “E toda altivez que se levante contra o conhecimento de Deus” (2Co 10.5). As fortalezas geralmente eram construídas em lugares altos, sendo, portanto, mais difícil combatê-las. Normalmente as coisas que exaltamos como sendo fundamentais e essenciais para a sua existência podem se constituir em fortalezas contra o conhecimento de Deus. As pessoas tendem a se julgar seguras dentro das “fortalezas” de seus argumentos contra o Evangelho, no entanto, os limites de pedra da razão e do coração humano não servem de empecilho absoluto contra o Evangelho.

d) “Levando cativo todo pensamento (no/hma) à obediência de Cristo” (2Co 10.5):

      Kruse interpreta:

Esta imagem é a de uma fortaleza rompida; os que ali dentro se abrigavam, por detrás de muralhas, estão sendo levados em cativeiro. Assim é que o propósito do apóstolo não é apenas demolir os falsos argumentos, como também conduzir os pensamentos das pessoas sob o senhorio de Cristo. Seu apelo como apóstolo era implantar ‘a obediência por fé, entre todos os gentios’(Rm 1.5).[14]

          Somente desse modo − por intermédio do crescimento espiritual que consiste na obediência a Deus − é possível, como diz Paulo aos efésios, “que não mais andeis como também andam os gentios na vaidade (mataio/thj)[15] dos seus próprios pensamentos (nou=j),[16] obscurecidos de entendimento (dia/noia),[17] alheios à vida de Deus por causa da ignorância (a)/gnoia) em que vivem, pela dureza dos seus corações…” (Ef 4.17-18).

          Se Deus desconsiderou a nossa antiga ignorância (At 17.30); agora que Ele nos deu a conhecer a sua Palavra, tornando-nos “filhos da obediência”, não deseja que tornemos às nossas práticas antigas, dominadas pelas paixões. É isso que escreve Pedro às igrejas: “Como filhos da obediência, não vos amoldeis às paixões que tínheis anteriormente na vossa ignorância (a)/gnoia) (1Pe 1.14).

          Portanto, podemos inferir que não há o que temer diante da oposição erguida contra o ensino da fé cristã. A sabedoria carnal é oposta à sabedoria espiritual e esta a sobrepuja.

          Na Palavra, temos todos os recursos necessários para combater o erro e apresentar a mensagem cristã de forma clara e objetiva. A verdade bíblica é capaz de apresentar de forma coerente a fé cristã e sobrepujar toda forma de raciocínio que lhe é hostil. Deste modo, a Igreja se alimenta da Palavra e nela encontra o discernimento de Deus para entender e avaliar todas as coisas.

Maringá, 06 de janeiro de 2023.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]Veja-se: P. Andrew Sandlin, Deus decide o que é normal, Brasília, DF.: Monergismo, 2021, p. 4.

[2] “O diabo de tal maneira enfeitiça as mentes dos homens que eles se apegam obstinadamente aos erros que em tempos passados assimilaram” (João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6,São Paulo: Parakletos, 2000, v. 1, (Dn 3.2-7), p. 193). Calvino também observa que os “incrédulos se encontram tão intoxicados por Satanás, que, em seu estupor, não têm consciência de sua miséria” (J. Calvino, As Pastorais,São Paulo: Paracletos, 1998, (2Tm 2.26), p. 247).

[3]Gene Edward Veith, Jr., De Todo o Teu Entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 49.

[4]Ver: John MacArthur Jr., Abaixo a Ansiedade,São Paulo: Cultura Cristã, 2001, p. 32.

[5]Gene Edward Veith, Jr., De Todo o Teu Entendimento, p. 72.

[6]“O ateísmo pode ser prático ou teórico, ou ambos. O ateu teórico nega a Deus; o ateu prático simplesmente vive como se Deus não existisse” (John Frame, Apologética para a Glória de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 149).

[7]Keil e Delitzsch vão além, entendendo que a negação é da existência de um Deus pessoal (C.F. Keil; F. Delitzsch, Commentary on the Old Testament, Grand Rapids, MI: Eerdmans, (1871), v. 5, (I/III), (Sl 14.1), p. 203-204).

[8] “Qualquer que seja esse nosso objeto de preocupação fundamental, isso será o nosso deus. Por esta razão, não existem ateus genuínos. Encontramos, em vez disso, pessoas que veneram ou adoram coisas ou ideias em lugar do único Deus verdadeiro” (Ronald H.  Nash, Cosmovisões em Conflito: escolhendo o Cristianismo em um mundo de ideias,  Brasília, DF.: Monergismo, 2012, p. 39). Do mesmo modo, Frame: “O argumento bíblico a ser mencionado aqui é que ninguém é realmente ateu, no sentido mais sério desse termo. Quando as pessoas se afastam da adoração ao Deus verdadeiro, elas não rejeitam o absoluto em geral. Antes, em vez do verdadeiro Deus, eles adoram ídolos, como Paulo ensina em Romanos 1:18–32. A grande divisão na humanidade não é que alguns adorem um deus e outros não. Pelo contrário, é entre aqueles que adoram o Deus verdadeiro e aqueles que adoram falsos deuses, ídolos. A adoração falsa pode não envolver ritos ou cerimônias, mas sempre envolve o reconhecimento da asseidade, honrando alguns que não dependem de mais nada” (John M. Frame, A History of Western Philosophy and Theology, Phillipsburg, New Jersey: P&R Publishing, 2015, p. 7).  

[9] “A insensibilidade para com Deus bem como a insensibilidade moral fecham a mente para a razão” (Louis Goldberg, Nabal: In: R. Laird Harris, et. al., eds., Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 910). Do mesmo modo, Derek Kidner, Provérbios: introdução e comentário, São Paulo: Vida Nova; Mundo Cristão, 1980, p. 40.

[10]Sl 9.16; 35.7; 78.45; 106.23; Sf 3.7.

[11] kaqai/resij = destruição (*2Co 10.4,8; 13.10). O verbo, kaqaire/w tem o sentido de fazer descer, vencer, derrubar, destruir (Mc 15.36, 46; Lc 1.52; 12.18; 23.53; At 13.19, 29; 2Co 10.4).

[12] Nos papiros significa também prisão.

[13]Logismo/j significa “computar”, “refletir”, “cogitar”, “conceber”, “raciocinar”. A palavra é proveniente de lo/goj. O termo pode ter também o sentido de argumento falso e sofisma (*Rm 2.15 (“pensamentos”); 2Co 10.4). (Sentido negativo é usado também em Pv 6.18) (logismo/j kakoi/).

[14] Colin Kruse, 2 Coríntios: Introdução e Comentário,São Paulo: Vida Nova; Mundo Cristão, 1994, (2Co 10.5), p. 186.

[15]mataio/thj (= Vaidade, futilidade, vacuidade) apresenta a ideia de ausência de objetivos (*Rm 8.20; Ef 4.17; 2Pe 2.18). Ma/taioj = Vão, fútil, tolo, sem valor. (*At 14.15; 1Co 3.20; 15.17; Tt 3.9; Tg 1.26; 1Pe 1.18).

[16]nou=j, da mesma raiz de no/hma, indica a mente, pensamento, modo de pensar, atitude e a faculdade de raciocinar.

[17] dia/noia, pensamento, disposição, entendimento, inteligência, a mente como o órgão do pensamento, de interpretação. No texto de Efésios, Calvino interpreta a palavra como sendo a própria capacidade de pensar (João Calvino, Efésios,(Ef 4.17), p. 134). (Deus deseja que O amemos com toda a nossa dia/noia (Mt 22.37; Mc 12.30; Lc 10.27); é Deus quem ilumina os olhos de nosso coração para que possamos ter a dia/noia (compreensão) espiritual (Ef 1.18/1Jo 5.20); antes disso éramos inimigos de Deus em nossa dia/noia (Cl 1.21); no entanto, Deus imprimiu, conforme a profecia cumprida em Cristo, a sua lei em nossa dia/noia (Hb 8.10; 10.16). A nossa dia/noia, portanto, deve ser revestida com a Palavra a fim de permanecer esclarecida (2Pe 3.1/1Pe 1.13).

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