Teologia da Evangelização (137)

4.3.3.2. A Mente Cativa: A Palavra de outro “senhor” (Continuação)

Assim sendo, devemos ressaltar que o Evangelho não é irracional nem obscurantista, no sentido de que nega o saber, antes aponta na direção de uma mente submissa a Cristo, que procura interpretar a realidade a partir da mente de Cristo, não da “mente” de Satanás. Por isso, a pregação do evangelho envolve raciocínios e argumentos: Lucas registra que em Corinto: “Todos os sábados (Paulo) discorria (diale/gomai) na sinagoga, persuadindo tanto judeus como gregos” (At 18.4). Este era o método habitual de Paulo.[1]

          Ele usou do mesmo recurso na sinagoga de Tessalônica (At 17.2); na sinagoga e na praça de Atenas (At 17.17); na sinagoga de Éfeso e na escola de Tirano durante dois anos (At 18.19; 19.8-10), na igreja em Trôade (At 20.7,9) e diante de violento Procurador Félix (At 24.25).

Após a ressurreição de Cristo os discípulos ainda não entendiam adequadamente as Escrituras em relação ao Messias, Jesus Cristo. Com dois deles, no caminho de Emaús, o Senhor abriu-lhes os olhos para que a compreendessem e cressem por meio da exposição das Escrituras. Foi esta a percepção deles.

Narra Lucas:

E aconteceu que, quando estavam à mesa, tomando ele o pão, abençoou-o e, tendo-o partido, lhes deu; então, se lhes abriram (dianoi/gw) os olhos, e o reconheceram; mas ele desapareceu da presença deles. E disseram um ao outro: Porventura, não nos ardia o coração, quando ele, pelo caminho, nos falava, quando nos expunha (dianoi/gw) as Escrituras? (Lc 24.30-32).

 Agora, com os demais discípulos, Jesus mostra como as Escrituras se cumpriram em seu ministério, vida, morte e ressurreição. Lucas resume: “Então, lhes abriu (dianoi/gw) o entendimento (nou=j) para compreenderem (suni/hmi) as Escrituras” (Lc 24.45).

De passagem, podemos observar que o caminho para atingir a mente e o coração das pessoas é a exposição da Palavra. O Espírito que opera por meio dela não força as evidências, nem nos obriga a diminuir a nossa capacidade de pensar, antes, nos faz enxergar e crer nas evidências (At 3.16; 16.14; 18.27; Rm 4.16; 1Co 3.5; Fp 1.29).[2]

Lucas relata:

Paulo, segundo o seu costume, foi procurá-los e, por três sábados, arrazoou (diale/gomai) com eles acerca das Escrituras, expondo (dianoi/gw = “explicando”, “interpretando”) e demonstrando ter sido necessário que o Cristo padecesse e ressurgisse dentre os mortos, e este, dizia ele, é o Cristo, Jesus, que eu vos anuncio” (At 17.3). 

          Devemos entender que Deus age ordinariamente por meio da Palavra. Pela Palavra ouvimos, cremos, recebemos e acolhemos a mensagem de Deus (Jo 17.6-8). Não há experiência mais significativa do que esta.

          LLoyd-Jones  (1899-1981) é bastante enfático neste ponto:

O Espírito Santo não produz mera experiência, o Espírito Santo usa a Palavra. Ele é o Espírito da verdade, o Espírito que ilumina, Ele é o Espírito que leva-nos ao entendimento. Jamais devemos lançar fora o intelecto que Deus nos deu. Não é preciso fazer isso. O Espírito Santo pode operar no nosso cérebro como em qualquer outra parte de nós. É falso o ensino que concita as pessoas a se soltarem. Se você fizer isso, irá cair numa libertinagem da imaginação e dos sentimentos, estará indo aos maus espíritos e maus poderes que estão ao seu redor e que estão sempre prontos para tomar posse de você e para fazer você de bobo.[3]

          Paulo sabia, nós sabemos, que as armas devem ser usadas de acordo com o inimigo e o tipo de guerra. A ignorância a respeito de nossos verdadeiros alvos pode nos conduzir a uma exaustão frustrante.

          Temos de aprender a identificar, por exemplo, como o pensamento secular assume características próprias em nossa geração a fim de podê-lo combater de forma eficiente.[4]

          Davi, por exemplo, quando foi lutar contra o gigante Golias escolheu, criteriosamente, as pedras para usar em sua funda: “Tomou o seu cajado na mão, e escolheu (rAhfB [Bãhar])[5] para si cinco pedras lisas do ribeiro…” (1Sm 17.40). Davi confiava em Deus e usou dos recursos de que dispunha e, neste caso, com os quais estava bem familiarizado.

          Tornando a Paulo, notemos que, uma vez que a sua luta era espiritual, as suas armas deveriam ser também espirituais (2Co 10.4-5). Paulo apresenta neste texto o caminho que seguiu e que caracterizava o seu Ministério: colocar todo o seu saber, todo o seu pensar, todo o seu sentir sob o domínio de Cristo, mantendo assim a sua mente aprisionada ao saber, conhecer e sentir de Cristo.[6] Paulo demonstra como fez isso. Destaco apenas a aplicação desse princípio na pregação da Palavra.

          Como vimos, Paulo admite que anda na carne, ou seja, participa de todas as limitações humanas, contudo o seu ministério não é caracterizado por ausência de recursos espirituais, antes todo ele é realizado no poder de Deus (2Co 10.4). Ele não andava com astúcia, nem adulterando a Palavra de Deus (2Co 4.2).[7] As suas armas consistiam no anúncio fiel das Escrituras, por meio delas Deus opera (Rm 1.16).[8]

          Todo pensamento deve ser levado cativo a Cristo, contrastando com a situação antiga de domínio do pecado sobre nós: “… Vejo nos meus membros outra lei que, guerreando contra a lei da minha mente, me faz prisioneiro (ai)xmalwti/zw)[9] da lei do pecado que está nos meus membros” (Rm 7.23).

          Não é estranho se ouvir com certa ênfase a respeito de “métodos” evangelísticos, “estratégias” de plantação de igreja, etc. Notemos que estas questões não são irrelevantes, contudo, é necessário que não transfiramos a fonte do poder do Evangelho para o nosso método ou estratégia.

          Tornemos ao Novo Testamento: Anos mais tarde, Paulo relataria como foi que chegou a Corinto e começou a pregar o Evangelho:

Eu, irmãos, quando fui ter convosco, anunciando-vos o testemunho de Deus, não o fiz com ostentação de linguagem ou de sabedoria. (…) A minha palavra e a minha pregação não consistiram em linguagem persuasiva de sabedoria, mas em demonstração do Espírito e de poder, para que a vossa fé não se apoiasse em sabedoria humana, e sim no poder de Deus (1Co 2.1,4-5).

          A mente cativa se revela na pregação do Evangelho de modo simples e fiel aos ensinamentos bíblicos, não em demonstração de erudição, mas em fidelidade à Palavra, sob o poder do Espírito. Paulo sabia que a transformação do Evangelho em mera sabedoria de palavras esvaziaria o significado da mensagem da cruz.[10]

          Além disso, não é a nossa suposta erudição que vai converter alguém: as nossas palavras não têm poder de conceder vida; só a Palavra de Deus. As nossas palavras podem entreter e agradar corações satisfeitos com os seus pecados, mas, não podem transformar vidas.[11]

          Muitas vezes podemos ser levados a pensar que o incrédulo será levado a Cristo se falarmos de forma erudita ou, quem sabe, oferecendo-lhe algo semelhante ao que está acostumado no mundo; assim tentamos fazer da igreja um clube social, ou um programa de auditório, ou uma academia de intelectuais, nos esquecendo que a sabedoria do Evangelho atua em outro nível, e é operada pelo Espírito.

Maringá, 06 de janeiro de 2023.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] Ratzinger (1927-2022), está correto, quando em debate com um ateu, disse:  “Na realidade, tenho certeza de que as primeiras gerações do cristianismo não pensavam na fé como um absurdo” (Joseph Ratzinger: Paolo Flores D’arcais, Deus existe? 2. ed. São Paulo: Planeta, 2016, p. 28).

[2] “Na verdade, o mundo está tão ricamente sinalizado com indícios  e sons do divino que os ateus simplesmente têm de diminuir a intensidade das luzes para dar à sua descrença uma oportunidade”  (Alister McGrath,  A fé e os credos, São Paulo: Cultura Cristã, 2017, p. 13).

[3]David Martyn Lloyd-Jones, Cristianismo Autêntico: Sermões nos Atos dos apóstolos, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2006, v. 2, p. 260.

[4]Veja-se: Francis A. Schaeffer, O Deus que Intervém, 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 29-31.

[5]rAhfB (“Bãhar”) significa “escolher”, “eleger”, “decidir por”, etc. O verbo e os seus derivados ocorrem 198 vezes no Antigo Testamento, havendo o predomínio do seu emprego na modalidade “qal”, (146 vezes) que indica uma ação completa. O verbo é usado cerca de 100 vezes referindo-se a Deus como sujeito da ação.

            “Bãhar”, apesar de não ser necessariamente teológico, apresenta sempre a ideia de uma escolha criteriosa, bem pensada –– daí, também o seu sentido de “testar”, “examinar” (Is 48.10; Pv 10.20) −, levando em consideração as opções (1Sm 17.40; 1Rs 18.25; Is 1.29; 40.20). (Para um estudo mais detalhado do uso da palavra no Antigo Testamento, veja-se: Hermisten M.P. Costa, João Calvino 500 anos, São Paulo: Cultura Cristã, 2009).

[6]Aqui temos um princípio: não descansar simplesmente em nossas experiências. “…. sempre que descansamos contentes com as nossas próprias experiências e somos sábios aos nossos próprios olhos, nos mantemos distanciados de toda e qualquer aproximação da doutrina de Cristo” (João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, São Paulo: Edições Paracletos, 1995, (2Co 10.5), p. 203). Veja-se: Abraham Kuyper,  A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 44.

[7] “…. rejeitamos as coisas que, por vergonhosas, se ocultam, não andando com astúcia, nem adulterando a palavra de Deus; antes, nos recomendamos à consciência de todo homem, na presença de Deus, pela manifestação da verdade” (2Co 4.2).

[8] “Pois não me envergonho do evangelho, porque é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê, primeiro do judeu e também do grego” (Rm 1.16).

[9] ai)xmalwti/zw (*Lc 21.24; Rm 7.23; 2Co 10.5).

[10] “Se Paulo tivesse usado a acuidade de um filósofo e a linguagem pomposa em seu trato com os coríntios, o poder da Cruz de Cristo, no qual a salvação dos homens consiste, teria sido sepultada, porque ele não poderia nos alcançar desta maneira” (João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 1.17), p. 53).

[11] Li posteriormente: “A pregação que não contém a grandeza de Deus pode entreter por algum tempo, mas não tocará o clamor secreto da alma: ‘Mostra-me a sua glória!’.” (John Piper, A Supremacia de Deus na Pregação, São Paulo: Shedd Publicações, 2003, p. 31).

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