Rei e Pastor: O Senhor na visão e vivência dos salmistas (19)

Poder absoluto e poder ordenado

A soberania de Deus se manifesta no fato de sua operância em fazer tudo o que faz (poder ordenado) e mesmo aquilo que não realiza visto que não determinou fazê-lo (poder absoluto). O poder absoluto de Deus envolve o seu poder ordenado.[1] E o poder ordenado delimita o poder absoluto pela própria decisão restritiva de Deus: quando Deus decide fazer o que faz, delimitou a sua ação de forma que não mais pode fazer o que não determinou fazer. O poder de Deus é sempre condizente com a totalidade de seus atributos.

            Deus exerce o seu poder no cumprimento do que decretou e nas obras da providência. Aliás, as obras da providência consistem na execução temporal dos decretos eternos de Deus.[2]

O poder realizado não serve de limites

Contudo, o que Deus realiza não serve de limites para o seu poder: “Destas pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão”, adverteJoão Batista aos arrogantes descendentes da carne, mas, não da fé de Abraão (Mt 3.9).

Na Criação e preservação temos uma magnífica amostragem da majestade de Deus e de seu poder, não, contudo, a totalidade. O poder absoluto de Deus transcende infinitamente o seu poder revelado. O seu poder é maior do que tudo o que criou. Todavia, o seu poder sempre será, em ato e potência, consoante com as suas eternas perfeições.[3]

Portanto, quando oramos a Deus, não temos dúvida quanto ao seu poder para nos atender em nossas súplicas. Ele pode. Não sabemos apenas se isso faz parte do seu propósito santo, sábio e eterno. Por isso, o que fazemos é suplicar a Deus que confirme com poder e graça o seu propósito, e nos dê fé para aceitar a sua direção ainda que não entendamos adequadamente a sua vontade.

            Deus é o Senhor Todo-Poderoso. O seu poder não é derivado, antes autoexistente e autopreservado. O salmista nos diz: “Nos céus, estabeleceu o SENHOR o seu trono, e o seu reino domina sobre tudo” (Sl 103.19).

Deixar Deus ser Deus

            Uma das grandes dificuldades dos homens em todos os tempos é deixar Deus ser Deus;[4] recebê-lo tal qual Ele se revela, não cedendo à tentação de construí-lo dentro de nossos pressupostos culturais ou mesmo do nosso gosto pessoal.[5] Estamos dispostos a fabricar nossos deuses para que eles possam cobrir e preencher as brechas de nossa pretensa compreensão em busca de uma arrogante autonomia.

            Assim, quando consigo dominar a realidade, já não preciso de Deus; quando não, invoco este deus criado por mim para justificar as minhas crenças, expectativas e, ao mesmo tempo, a minha falta de fé. Dentro desta perspectiva, onde há ciência não precisamos de Deus;[6] onde reina a ignorância há um espaço para um ser transcendente, destituído de sua glória, é verdade, mas, assim mesmo um “ser superior”. Aqui há o esquecimento proposital, de que o ateísmo é também uma questão de fé.[7] Posso crer que Deus existe, como também, crer que ele não existe. Em ambos os casos, a fé é essencial.

Tentativa de nivelar Deus aos nossos pecados

            No Antigo Testamento os judeus insensíveis aos seus próprios pecados, tomaram o aparente silêncio de Deus como uma aprovação a seus erros, projetando nele o seu comportamento. Consideravam que eles mesmos procediam daquele modo, porque julgavam que Deus fosse igual a eles.[8] No entanto, Deus, no momento próprio, exporia diante deles os seus delitos: “Tens feito estas coisas, e eu me calei; pensavas que eu era teu igual; mas eu te arguirei e porei tudo à tua vista” (Sl 50.21).

Calvino diz que o homem pretende usurpar o lugar de Deus: “Cada um faz de si mesmo um deus e virtualmente se adora, quando atribui a seu próprio poder o que Deus declara pertencer-lhe exclusivamente”.[9]

            De fato, os homens estão dispostos a reconhecer espontaneamente diversas virtudes em Deus: o seu amor, sua graça, bondade, perdão, tolerância, provisão etc. Agora, a sua soberania, jamais.[10]

São Paulo, 16 de setembro de 2019.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]Vejam-se: Stephen Charnock, The Existence and Attributes of God, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (Two Volumes in one), 1996 (Reprinted), v. 2, p. 12; Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 252ss.; Agostinho, A Cidade de Deus contra os pagãos, 2.ed. Petrópolis, RJ.; São Paulo: Vozes; Federação Agostiniana Brasileira, 1990, v. 1, 5.10, p. 204-205; François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 335-336.

[2]No Catecismo Maior de Westminster(1647) temos a pergunta 14: “Como executa Deus os seus decretos?”. Responde: “Deus executa os seus decretos nas obras da criação e da providência, segundo a sua presciência infalível e o livre e imutável conselho da Sua vontade”. Veja-se também: Agostinho, A Trindade,São Paulo: Paulus, 1994, III.4.9.

[3]Vejam-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 256; François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 329ss.

[4]“Dizer que Deus é soberano é declarar que Deus é Deus” (A.W. Pink, Deus é Soberano, Atibaia, SP.: Editora Fiel, 1977, p. 19).

[5]Veja-se: Alister E. McGrath, Paixão pela Verdade: a coerência intelectual do Evangelicalismo, São Paulo: Shedd Publicações, 2007, p. 32-35.

[6]Este otimismo secular foi sustentado primariamente por Nietzsche. Veja-se: Alister E. McGrath, Teologia, sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia cristã, São Paulo: Shedd Publicações, 2005,p. 331.

[7]“O ateísmo é uma questão de fé tanto quanto o cristianismo” (Alister McGrath, O Deus Desconhecido: Em Busca da Realização Espiritual, São Paulo: Loyola, 2001, p. 23). “Portanto, os homens que rejeitam ou ignoram a Deus o fazem não porque a ciência ou a razão requeira que o façam, mas pura e simplesmente porque querem fazê-lo” (Henry H. Morris, The Bible has the Answer, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1971, p. 16. Apud D. James Kennedy, Por Que Creio, Rio de Janeiro: JUERP., 1977, p. 33). “Não vejo como é possível não acreditar em Deus e considerar que não se pode comprovar Sua existência, e depois a acreditar firmemente na inexistência de Deus, pensando poder prová-Lo” (Umberto Eco, In: Umberto Eco; Carlo Maria Martini, Em que creem os que não creem? Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 85). “Pode-se negar que a existência de Deus seja demonstrável. Não se pode demonstrar que Deus não existe” (Jean-Yves Lacoste, Ateísmo: In: Jean-Yves Lacoste, dir. Dicionário Crítico de Teologia, São Paulo: Paulinas; Loyola, 2004, p. 204). “A ideia de que a ciência ‘refuta’ a existência de Deus é o tipo de declaração simplista que se destaca de forma proeminente no recente ateísmo populista” (Alister E. McGrath, Surpreendido pelo sentido: ciência, fé e o sentido das coisas, São Paulo: Hagnos, 2015, p. 76).

[8] “Em todos os lugares os ministros piedosos tem tido a experiência do mesmo tipo de conflitos; pois os homens sempre formam sua avaliação sobre Deus com base em si mesmos, e creem que Ele se satisfaz com exibição externa, porém não podem, sem a maior dificuldade, ser levados a oferecer-lhe a integridade de seu coração” (John Calvin, Commentary on the Book of the Prophet Isaiah,Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, (Calvin’s Commentaries), 1996 (Reprinted),v. VII/1, (Is 1.11), p. 56).

[9]João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 2002, v. 3, (Sl 100.1-3), p. 549. Veja-se também: João Calvino, Instrução na Fé, Goiânia, GO: Logos Editora, 2003, Caps. 1-3, p. 11-14.

[10] Kennedy diz precisamente isso: “O motivo por que tantas pessoas se opõem a essa doutrina (predestinação) é que elas querem um Deus que seja qualquer coisa, menos Deus. Talvez permitam-lhe ser algum psiquiatra cósmico, um pastor prestativo, um líder, um mestre, qualquer coisa, talvez… contanto que Ele não seja Deus. E isso por uma razão muito simples… elas mesmas querem ser Deus. Essa sempre foi a essência do pecado – o fato que o homem pretende ser Deus” (James Kennedy, Verdades que Transformam, São Paulo: Editora Fiel, 1981, p. 31).

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