Rei e Pastor: O Senhor na visão e vivência dos salmistas (20)

Rejeitar o Evangelho é rejeitar a Deus

            A rejeição ao Evangelho é, na realidade, uma rebeldia contra o domínio soberano de Deus. A negação da soberania de Deus é uma atitude que pode pavimentar o caminho para o ateísmo.Pink (1886-1952) entende que “negar a soberania de Deus é entrar em um caminho que, seguindo até à sua conclusão lógica, leva a manifesto ateísmo”.[1]

            Como sempre desejosos de ser autônomos  a nossa dificuldade óbvia está em reconhecer a Deus como o Senhor que reina.[2] Esta é uma concorrência que não aceitamos com naturalidade e, na realidade, nos rebelamos contra ela. A nossa autonomia presumida é bastante ciosa de seus supostos poderes. Tendemos a ser bastante iluministas em nosso otimismo diante do que vemos no espelho.

A Palavra, por sua vez, nos desafia a aprender com ela a respeito de Deus e de seu Reino. O nosso Deus, entre tantas perfeições, é o Deus soberano, Sem este atributo, Deus não seria Deus: “Verdadeiramente reconhecer a soberania de Deus é, portanto, contemplar o próprio Deus soberano”.[3]

            No entanto, Jó demonstra a dificuldade de nossa compreensão, ao indagar: “Eis que isto são apenas as orlas dos seus caminhos! Que leve sussurro temos ouvido dele! Mas o trovão do seu poder, quem o entenderá?” (Jó 26.14).  

Mas, o fato que faz parte amplamente da experiência cristã, é que somente aquele que confia intensamente na soberania de Deus poderá encontrar a paz em meio às vicissitudes da vida.[4]

 Conhecer a Deus em sua soberania é libertador

            Conhecer a Deus em sua soberania, portanto, é um dom da graça do soberano Deus. Este conhecimento, por sua vez, nos liberta para que possamos conhecer a nós mesmos e as demais coisas da realidade. Somente por obra e graça de Deus poderemos enxergar com clareza o que posto diante de nós reivindica ser a realidade e aquilo que nos escondem, como se não existissem, mas, que, de fato tem o seu valor e significado. Somente Deus confere sentido à realidade e, portanto, à nossa vida.

            Tomemos um caso específico. No Salmo 11 vemos que a vida de Davi está em perigo, os fundamentos do seu reino estão ameaçados; seus amigos aconselham-no a fugir para as montanhas onde teria melhor abrigo.

No entanto, o salmista indaga a respeito desta atitude, considerando-a inadequada (Sl 11.1-3). É possível[5] que este salmo tenha sido escrito no tempo em que Absalão preparava de forma sorrateira uma rebelião contra seu pai para tentar assumir o trono.[6]

            Em princípio o conselho que fora dado não lhe era estranho. Afinal, Davi já tivera a experiência de esconder-se nos montes devido à perseguição de Saul, no entanto o texto no livro de Samuel nos diz:“Permaneceu Davi no deserto, nos lugares seguros, e ficou na região montanhosa no deserto de Zife. Saul buscava-o todos os dias, porém Deus não o entregou na sua mão”(1Sm 23.14).

Um princípio teológico

            Davi sabia que quem lhe protegia não eram os montes, mas, Deus. Ele tinha consciência de que não podemos substituir Deus pelos montes. É Deus quem criou e sustenta os montes. Os montes podem servir como instrumentos de proteção, no entanto, quem nos protege é Deus. Por isso, Davi rejeita o conselho de seus amigos, porque se refugia em Deus (Sl 16.1; 36.7).[7]

            Davi também não apelou para uma suposta bondade sua, ou para uma pergunta retórica: “o que eu fiz para merecer isso?”, antes, tem uma perspectiva objetiva dos fatos, ainda que não se limite à percepção de seus conselheiros.

            Nesta rejeição, que poderia parecer mera teimosia, há, na realidade, uma questão de princípio teológico, uma experiência de fé. A nossa fé é sempre um transpirar de nossa teologia. Posso me valer da fuga, contudo, devo entender que, o meu socorro está em Deus. É dentro desta perspectiva que devo caminhar. A sua visão teológica regia a sua percepção e, consequentemente a sua atitude.

São Paulo, 17 de setembro de 2019.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]A.W. Pink, Deus é Soberano, Atibaia, SP.: Editora Fiel, 1977, p. 21. Em outro lugar: “Os idólatras do lado de fora da cristandade fazem ‘deuses’ de madeira e de pedra, enquanto os milhões de idólatras que existem dentro da cristandade fabricam um Deus extraído de suas mentes carnais. Na realidade, não passam de ateus, pois não existe alternativa possível senão a de um Deus absolutamente supremo, ou nenhum deus” (A.W. Pink, Os Atributos de Deus, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1985, p. 28). “Defender a crença num ‘poder do alto’ nebuloso é balançar entre o ateísmo e um cristianismo total com suas exigências pessoais” (R.C. Sproul, Razão para crer, São Paulo: Mundo Cristão, 1986, p. 48).

[2]Ver o sermão de Spurgeon sobre Mt 28.15 citado por Pink. A.W. Pink, Os Atributos de Deus, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1985, p. 32-33.

[3]A.W. Pink, Deus é Soberano, Atibaia, SP.: Editora Fiel, 1977, p. 138.

[4] Veja-se: John MacArthur Jr., Abaixo a Ansiedade,São Paulo: Cultura Cristã, 2001, p. 30.

[5] Cf. C.F. Keil; F. Delitzsch, Commentary on the Old Testament, Grand Rapids, MI: Eerdmans, (1871), v. 5, (I/III), (Sl 11), p. 186.

[6] Há quem pense que o contexto deste salmo é o período no qual Davi fugia de Saul (João Calvino,O Livro dos Salmos,São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 11), p. 233; F.B. Meyer, Joyas de los Salmos, 2. ed., Buenos Aires: Casa Bautista de Publicaciones, 1972, p. 18; Leslie S. M’Caw, Salmos: In: F. Davidson, ed., O Novo Comentário da Bíblia, São Paulo: Vida Nova, 1976 (reimpressão), p. 508; J.A. Motyer, Salmos. In: D. A. Carson, et. al., orgs. Comentário Bíblico: Vida Nova, São Paulo: Vida Nova, 2010, p. 747; Spurgeon e Simeon Cf. James M. Boice, Psalms: an expositional commentary, Grand Rapids, MI.: Baker Book House, 1994, v. 1, (Sl 11), p. 91). Se o Salmo foi escrito durante o período de Saul ou de Absalão, é uma “controvérsia perpétua” (Cf. Ernst W. Hengstenberger; John Thomson, Commentary of the Psalms, Tennessee: General Books, 2010 (Reprinted), (Sl 11), v. 1, p. 119). Por isso a indefinição: H.C. Leupold, Exposition of The Psalms, 6. impressão, Grand Rapids, MI.: Baker, 1979, p. 125. Para uma visão panorâmica das interpretações, veja-se: W.S. Plumer, Psalms, Carlisle, Pennsylvania: The Banner of Truth Trust, © 1867, 1975 (Reprinted), p. 164. Especialmente devido à construção do verso três quando Davi fala de destruir os fundamentos, inclino-me a pensar que o Salmo foi escrito quando ele já era rei de Israel, havendo, portanto, uma subversão da ordem por meio de Absalão.

[7]“Guarda-me, ó Deus, porque em ti me refugio” (Sl 16.1). “Como é preciosa, ó Deus, a tua benignidade! Por isso, os filhos dos homens se acolhem à sombra das tuas asas” (Sl 36.7).

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