“Eu lhes tenho dado a tua Palavra” (Jo 17.1-26) (18)


f) Não pertencimento e ódio da parte do mundo. Como temos insistido, a transformação espiritual passa pelo guardar (6), receber (8), reconhecer/conhecer (7,8) e crer (8) em Jesus Cristo e na sua Palavra.  De fato, Deus opera ordinariamente em nossa vida por meio da Palavra. É esta operação do Espírito em nossos corações que nos transforma concedendo-nos uma visão diferente da realidade e, também, um modo de agir condizente com a nossa nova natureza.

Neste sentido é que Jesus Cristo disse que o mundo odiou os seus discípulos e, acrescentou: “Eles não são do mundo” (14). Aqui temos uma questão de pertencimento, não simplesmente de existência. O cristão não pertence a esse mundo, ainda que viva no mundo e atue de forma concreta dentro de sua esfera de ação, visando glorificar a Deus em todos os seus atos.

Lloyd-Jones, destaca com propriedade: “A primeira coisa que verdadeiramente caracteriza o cristão é que ele não é deste mundo, e não lhe pertence”.[1]

O ódio da parte do mundo, como resultado de nossa lealdade a Deus, é evidência do discipulado: “Se o mundo vos odeia, sabei que, primeiro do que a vós outros, me odiou a mim. Se vós fôsseis do mundo, o mundo amaria o que era seu; como, todavia, não sois do mundo, pelo contrário, dele vos escolhi, por isso, o mundo vos odeia” (Jo 15.18-19).

Recuemos um pouco.

            Jesus Cristo, no primeiro sermão ou série de sermões proferidos às multidões, fala de perseguição e sofrimento. Ele não apresenta um caminho colorido, repleto de falsas esperanças, antes, nos adverte que se quisermos seguir os seus ensinamentos devemos estar preparados para ser caluniados, difamados e perseguidos.[2] Nas Bem-aventuranças, de pacificador passamos a perseguidos. A paz proposta pelo Senhor envolve a fome e sede de justiça. Esta paz não costuma ser bem-vinda. Por isso a perseguição.

          Aliás, isto não seria nenhuma novidade àqueles que tivessem como projeto de vida a fidelidade a Deus: “Pois assim perseguiram (diw/kw) aos profetas que viveram antes de vós” (Mt 5.10). Mais tarde Estevão faria publicamente esta acusação aos judeus indicando a situação de frequente perseguição imposta aos profetas de Deus: “Qual dos profetas vossos pais não perseguiram (diw/kw)? Eles mataram os que anteriormente anunciavam a vinda do Justo, do qual vós agora vos tornastes traidores e assassinos” (At 7.52).

          Juntamente com os princípios orientadores e identificadores dos cristãos, há promessas e, também, a descrição, ainda que sumária, das consequências da adoção desta ética do Reino.[3]

Os cristãos são diferentes e, por isso mesmo, devem saber que lhe esperam perseguições. O cristianismo não nos propõe a ser uma versão melhorada do velho homem, antes, há uma transformação total, um nascer de novo. Por isso o conflito de essência, consequentemente, de valores, perspectivas e comportamento.[4] Podemos fazer e eco a Rookmaaker (1922-1977): “É difícil para qualquer cristão viver em um mundo pós-cristão”.[5]

          As perseguições, portanto, conforme o ensino de Jesus Cristo, não seriam causadas por alguma idiossincrasia dos fiéis, antes, pelo seu desejo de se assemelhar a Cristo, o alvo final do cristão. A fome e sede de justiça que deve caracterizar o cidadão do reino é totalmente odiosa e, no mínimo, incômoda ao mundo. É impossível viver coerentemente no mundo sem revelar a nossa verdadeira identidade. Pela graça, somos o que somos: cidadãos do Reino. Somos, em muitos sentidos, estranhos neste mundo. Esta estranheza causada, não deve ser buscada, antes, se manifestará de forma natural conforme assumimos coerentemente os valores do Reino. Stott (1921-2011) afirma corretamente: “A perseguição é simplesmente o conflito entre dois sistemas de valores irreconciliáveis”.[6]

          Continuaremos no próximo post.

São Paulo, 19 de fevereiro de 2020.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]D.M. Lloyd-Jones, Seguros Mesmo no Mundo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2005 (Certeza Espiritual: v. 2), p. 25.

[2] Barclay destaca esta característica do Senhor denominando-a de “absoluta honradez” (William Barclay, El Nuevo Testamento Comentado, Buenos Aires: La Aurora, 1973, v. 1, (Mt 5.10-12), p. 120).

[3]“Tão pronto um crente mostre sinais de zelo por Deus, a ira de todos os ímpios se acende e, mesmo que não tenham suas espadas desembainhadas, arrojam seu veneno, ou criticando, ou caluniando, ou provocando distúrbio de um ou de outro modo. Portanto, ainda que não sofram os mesmos ataques e não se envolvam nas mesmas batalhas, eles têm uma só guerra em comum e jamais viverão totalmente em paz nem isentos de perseguições” (João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (2Tm 3.12), p. 258).

[4]“O crente não é alguém parecido com todo mundo, apenas com leves modificações. Mas é alguém essencialmente diferente; possui uma natureza diferente, e é uma pessoa diferente” (David M. Lloyd-Jones, Estudos no Sermão do Monte, São Paulo: Editora Fiel, 1984, p. 129). Vejam-se também: David M. Lloyd-Jones, Estudos no Sermão do Monte, p. 88,89; D.M. Lloyd-Jones, O Supremo Propósito de Deus, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1996, p. 27; D.M. Lloyd-Jones, Seguros Mesmo no Mundo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2005 (Certeza Espiritual: v. 2), p. 25; D.M. Lloyd-Jones, A Unidade Cristã, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1994, p. 14.

[5]H.R. Rookmaaker, A Arte não precisa de justificativa, Viçosa, MG.: Editora Ultimato, 2010, introdução, p. 9.

[6]John R.W. Stott, A Mensagem do Sermão do Monte, 3. ed. São Paulo: ABU, 1985, p. 43.

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