Eu lhes tenho dado a tua Palavra” (Jo 17.1-26) (51)

O Espírito, a Lei e a Santificação

Neste processo há a participação do homem regenerado na construção de sua nova caminhada a partir de um coração restaurado e transformado. ** A Lei do Senhor além de nos confrontar em nossos pecados, mostrando o padrão de Deus, restaura o nosso coração, apontando para Jesus Cristo.

O salmista escreve: “A lei do SENHOR é perfeita e restaura (bWv) (shub) a alma….” (Sl 19.7).

O sentido da palavra “restaurar” é o de “refrigerar” (Sl 23.3), “restabelecer” (Sl 60.1; 85.4), “converter” (Ez 14.6). Deus, com sua Palavra, dá-nos alento, trazendo-nos para junto de si mesmo, a fim de que, confiados nele, possamos continuar a nossa caminhada. Deus transforma, converte o nosso desalento espiritual em fervor de serviço.

Deus nos converte por meio de sua Palavra (Rm 10.17; Tg 1.18,21; 1Pe 1.23) e segue nos educando, aperfeiçoando, trazendo refrigério. Ele tira a nossa alma do exílio, para uma viva alegria em sua presença.

Na Palavra reencontramos o fôlego restaurador da vida. Podemos estar como que “apegados ao pó” em nosso abatimento, mas, a Palavra de Deus nos ergue, nos concedendo, pelas promessas de Deus, um ânimo novo, fundamentado na certeza de que Deus reina e está em nós. “Deus emprega sua Palavra como instrumento para a restauração de nossas almas”, consola-nos Calvino.[1]

Somente o Espírito por meio da Palavra pode nos alimentar, corrigir, animar, conceder-nos real vitalidade amparado nas promessas de Deus. Por isso, usando uma expressão de Lutero, afirmamos que podemos prescindir de tudo, menos da Palavra.[2]

É oportuno fazer aqui uma distinção. A “conversão salvífica[3] só ocorre uma única vez. É produzida pelo Espírito. Ela não se repete. Vejamos alguns exemplos:

Namã“Voltou ao homem de Deus, ele e toda a sua comitiva; veio, pôs-se diante dele e disse: Eis que, agora, reconheço que em toda a terra não há Deus, senão em Israel; agora, pois, te peço aceites um presente do teu servo” (2Rs 5.15).

Manassés 12 Ele, angustiado, suplicou deveras ao SENHOR, seu Deus, e muito se humilhou perante o Deus de seus pais; 13 fez-lhe oração, e Deus se tornou favorável para com ele, atendeu-lhe a súplica e o fez voltar para Jerusalém, ao seu reino; então, reconheceu Manassés que o SENHOR era Deus” (2Cr 33.12-13).

Israel“Bem ouvi que Efraim se queixava, dizendo: Castigaste-me, e fui castigado como novilho ainda não domado; converte-me, e serei convertido, porque tu és o SENHOR, meu Deus. 19 Na verdade, depois que me converti, arrependi-me; depois que fui instruído, bati no peito; fiquei envergonhado, confuso, porque levei o opróbrio da minha mocidade” (Jr 31.18-19).

“Converte-nos a ti, SENHOR, e seremos convertidos; renova os nossos dias como dantes” (Lm 5.21).

Zaqueu8 Entrementes, Zaqueu se levantou e disse ao Senhor: Senhor, resolvo dar aos pobres a metade dos meus bens; e, se nalguma coisa tenho defraudado alguém, restituo quatro vezes mais. 9 Então, Jesus lhe disse: Hoje, houve salvação nesta casa, pois que também este é filho de Abraão” (Lc 19.8-9).

Paulo “Saulo, respirando ainda ameaças e morte contra os discípulos do Senhor, dirigiu-se ao sumo sacerdote 2 e lhe pediu cartas para as sinagogas de Damasco, a fim de que, caso achasse alguns que eram do Caminho, assim homens como mulheres, os levasse presos para Jerusalém. 3 Seguindo ele estrada fora, ao aproximar-se de Damasco, subitamente uma luz do céu brilhou ao seu redor, 4 e, caindo por terra, ouviu uma voz que lhe dizia: Saulo, Saulo, por que me persegues? 5 Ele perguntou: Quem és tu, Senhor? E a resposta foi: Eu sou Jesus, a quem tu persegues; 6 mas levanta-te e entra na cidade, onde te dirão o que te convém fazer. 7 Os seus companheiros de viagem pararam emudecidos, ouvindo a voz, não vendo, contudo, ninguém. 8 Então, se levantou Saulo da terra e, abrindo os olhos, nada podia ver. E, guiando-o pela mão, levaram-no para Damasco. 9 Esteve três dias sem ver, durante os quais nada comeu, nem bebeu. 10 Ora, havia em Damasco um discípulo chamado Ananias. Disse-lhe o Senhor numa visão: Ananias! Ao que respondeu: Eis-me aqui, Senhor! 11 Então, o Senhor lhe ordenou: Dispõe-te, e vai à rua que se chama Direita, e, na casa de Judas, procura por Saulo, apelidado de Tarso; pois ele está orando 12 e viu entrar um homem, chamado Ananias, e impor-lhe as mãos, para que recuperasse a vista. 13 Ananias, porém, respondeu: Senhor, de muitos tenho ouvido a respeito desse homem, quantos males tem feito aos teus santos em Jerusalém; 14 e para aqui trouxe autorização dos principais sacerdotes para prender a todos os que invocam o teu nome. 15 Mas o Senhor lhe disse: Vai, porque este é para mim um instrumento escolhido para levar o meu nome perante os gentios e reis, bem como perante os filhos de Israel; 16 pois eu lhe mostrarei quanto lhe importa sofrer pelo meu nome. 17 Então, Ananias foi e, entrando na casa, impôs sobre ele as mãos, dizendo: Saulo, irmão, o Senhor me enviou, a saber, o próprio Jesus que te apareceu no caminho por onde vinhas, para que recuperes a vista e fiques cheio do Espírito Santo. 18 Imediatamente, lhe caíram dos olhos como que umas escamas, e tornou a ver. A seguir, levantou-se e foi batizado. 19 E, depois de ter-se alimentado, sentiu-se fortalecido. Então, permaneceu em Damasco alguns dias com os discípulos” (At 9.1-19).

Cornélio44Ainda Pedro falava estas coisas quando caiu o Espírito Santo sobre todos os que ouviam a palavra. 45 E os fiéis que eram da circuncisão, que vieram com Pedro, admiraram-se, porque também sobre os gentios foi derramado o dom do Espírito Santo; 46 pois os ouviam falando em línguas e engrandecendo a Deus. Então, perguntou Pedro: 47 Porventura, pode alguém recusar a água, para que não sejam batizados estes que, assim como nós, receberam o Espírito Santo? 48 E ordenou que fossem batizados em nome de Jesus Cristo. Então, lhe pediram que permanecesse com eles por alguns dias” (At 10.44-48).

Lídia 14 Certa mulher, chamada Lídia, da cidade de Tiatira, vendedora de púrpura, temente a Deus, nos escutava; o Senhor lhe abriu o coração para atender às coisas que Paulo dizia. 15 Depois de ser batizada, ela e toda a sua casa, nos rogou, dizendo: Se julgais que eu sou fiel ao Senhor, entrai em minha casa e aí ficai. E nos constrangeu a isso” (At 16.14-15).

O Carcereiro e seus familiares 29 Então, o carcereiro, tendo pedido uma luz, entrou precipitadamente e, trêmulo, prostrou-se diante de Paulo e Silas. 30 Depois, trazendo-os para fora, disse: Senhores, que devo fazer para que seja salvo? 31 Responderam-lhe: Crê no Senhor Jesus e serás salvo, tu e tua casa. 32 E lhe pregaram a palavra de Deus e a todos os de sua casa. 33 Naquela mesma hora da noite, cuidando deles, lavou-lhes os vergões dos açoites. A seguir, foi ele batizado, e todos os seus. 34 Então, levando-os para a sua própria casa, lhes pôs a mesa; e, com todos os seus, manifestava grande alegria, por terem crido em Deus” (At 16.29-34).

Esta conversão é radical, envolvendo um novo começo regido, assim, por um conhecimento essencialmente diferente e, consequentemente, a construção de uma nova experiência. Na linguagem do Novo Testamento, a conversão consiste[4] na ressurreição espiritual já que estávamos mortos (Ef 2.1-10); um novo nascimento (Jo 3.1-5),[5] um abrir o coração e os olhos, os iluminando (At 16.14; 2Co 4.4-6), uma nova compreensão (1Jo 5.20).

A conversão teológica tem implicações pessoais e sociais. Digamos assim: a conversão teológica se aperfeiçoa e se evidencia em nosso perceber a realidade e atuar. Somos interiormente mudados e isto se reflete em todas as nossas relações. Há um redirecionamento de nossa vida à medida que somos refeitos à imagem de Cristo. Como não somos perfeitos e jamais o seremos nesta vida, haverá sempre a necessidade do aperfeiçoamento dessa conversão, marcada pelo arrependimento e um novo rumo em nossa vida (Vejam-se: 2Sm 12.13; Sl 51.10-12; Mt 26.75/Lc 22.32; Lc 17.3-4; Rm 13.14; Ef 4.22-24; Ap 2.4-5,16; 21-22; 3.3,19).

Somos intimados, biblicamente, a nos converter de nossos maus caminhos, tornar à obediência a Deus, voltar de nosso “desvio temporário” ao caminho de Deus. Este deve ser o nosso caminhar cotidiano e o amadurecer de nossa fé. A conversão deve ser olhada dinamicamente. Fomos convertidos definitivamente por Deus, e para Deus, contudo, devemos caminhar em nossa conversão do pecado residual para uma genuína obediência a Deus. Neste sentido, esta conversão se confunde com a santificação, sendo nomes diferentes para falar do mesmo processo.

E, a graça nos acompanha em nossa caminhada de fé e obediência. Calvino capta bem isso ao escrever: “Uma vez que os crentes todos os dias se envolvem em muitos erros, de nada lhes aproveitará já terem tomado a vereda da justiça, a menos que a mesma graça que os manteve em sua companhia os conduza à última fase de sua vida”.[6]

Por isso que a nossa genuína conversão nunca nos poderá conduzir à arrogância diante de nosso próximo, antes, a uma atitude de humildade e dependência da graça, consciente da grandeza de nosso chamado a sermos conforme Jesus Cristo (Rm 8.29-30). A Conversão verdadeira nos leva a diversas conversões durante a vida.[7] Todas elas em direção a Deus, o nosso Senhor.

A conversão engloba necessariamente a mudança de nossa mente, emoções e vontade. Esta nova percepção precisa ser desenvolvida, amadurecida e refinada a fim de que cada vez mais nos pareçamos com o nosso Senhor.

Maringá, 20 de maio de 2020.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 19.7), p. 425.

[2]“A alma pode prescindir de todas as coisas, menos da Palavra de Deus, e fora da Palavra de Deus nada mais pode auxiliá-la. Quando, porém, ela possui a Palavra, de nada mais necessitará, pois na Palavra ela encontrará satisfação, alimento, alegria, paz, luz, ciência, justiça, verdade, sabedoria, liberdade e todos os bens em abundância” (Martinho Lutero, Da Liberdade do Cristão: Prefácios à Bíblia, São Paulo: Fundação Editora da UNESP., 1998, p. 27) (Escreveu em 1520).

[3] Cf. Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 366-367.

[4] Cf. J.I. Packer, Conversão: In: J.D. Douglas, ed. org. O Novo Dicionário da Bíblia,São Paulo: Junta Editorial Cristã, 1966, v. 1, p. 320.

[5] “Como o bebê entra no mundo físico com uma existência totalmente nova e cresce numa nova experiência, assim também a conversão, neste sentido, é um novo começo em relação a Deus” (M.C. Tenney, Conversão: In: Carl Henry, org., Dicionário de Ética Cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 142).

[6]João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 2, (Sl 32.1), p. 42.

[7] Veja-se: Emil Brunner, Nossa Fé, 2. ed. São Leopoldo, RS.: Sinodal, 1970, p. 85.

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