Dia do Teólogo: uma homenagem
Costumo brincar dizendo que a comemoração do dia dos Pais me é massacrante: nunca consigo me encaixar perfeitamente no quadro apresentado em nossa “homenagem”. No final da leitura de algum texto piedoso e bem escrito, lá vem as perguntas e exortações: “Pai, o que você tem feito com o seu tempo?”. “Adote o seu filho antes que um traficante o adote”. “O que você vai deixar para os seus filhos?”…
Agora, dia das mães é uma alegria só. Aprecio bastante. Lembro-me de minha mãe, identifico minha exemplar esposa. Assim ouço com satisfação poesias ilustrando corretamente a importância das mães, a sua abnegação, perseverança e amor. Tenho a impressão que até as crianças são mais convincentes nesse dia.
Descobri agora há pouco que hoje é o dia do Teólogo. Vou então “homenagear” esse personagem com meu post. Portanto, hoje, excepcionalmente, vou publicar dois textos. O anterior já foi postado.
Comecemos pela teologia.
A teologia não é algo simplesmente teórico, menos ainda especulativo e abstrato –, antes tem uma relação direta com a vida daqueles que a estudam; ela é, portanto, uma ciência teórica e prática, tendo como fim último o glorificar a Deus por meio do nosso conhecimento de Deus que se materializa em obediência. (Veja-se: François Turretini, Compêndio de Teologia, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 61-65).
A profundidade do conhecimento dos ensinamentos da Palavra deve estar em ordem direta com a nossa vida cristã. A teologia oferece-nos subsídios, para que possamos conhecer mais de Deus – que deve ser o nosso objetivo principal1 –, por meio de sua Revelação Especial nas Escrituras. A dissociação entre Teologia e vida é algo estranho à fé cristã e consequentemente à Igreja de Cristo.
À Igreja cabe a responsabilidade de propagar o Evangelho e defendê-lo contra as heresias e a imoralidade. Uma visão defeituosa da doutrina bíblica levará necessariamente a equívocos na estrutura e ensino da Igreja, bem como no seu aspecto ético. O cristianismo não é apenas um ensino moral,2 todavia tem implicações naquilo que cremos, na forma como encaramos a realidade e, consequentemente, nos nossos valores morais. “Uma religião sem doutrina seria uma religião sem significado. E tal religião não poderia ser propagada nem defendida”.3
Ao longo da História diversos teólogos têm insistido neste ponto. O luterano Davi Chyträus (1530-1600) – aluno de Melanchthon (1497-1560) –, resumiu bem este espírito, quando escreveu em 1581: “Demonstramos ser cristãos e teólogos muito mais através da fé, da vida santa e do amor a Deus e ao próximo, do que através da astúcia e das sutilezas das polêmicas”.4 Ele também costumava repetir aos seus alunos durante o ano: “O estudo da teologia não deve ser conduzido através da rixa e disputa, mas pela prática da piedade”.5 Pouco mais tarde, demonstrando que a ciência e a verdade se revelam em piedade, escreveria Gisbertus Voetius (1589-1676): “Piedade deve ser unida à ciência”. 6
Hoje, quando aparece de forma mais evidente uma tendência na igreja de desvincular a doutrina da vida – como se fossem verdades estanques –, devemos, como cristãos que somos, mais do que nunca estar comprometidos com esta relação coessencial, tornando-a uma realidade coexistencial e, portanto, assunto perene de nosso ensino e oração, rogando a Deus que nos capacite a aplicar a sua Palavra em cada setor de nossa existência, buscando uma coerência teológica e vivencial.
A ênfase de Lloyd-Jones (1899-1981) parece-nos correta: “A verdadeira doutrina cristã é sempre urgentemente importante. É de suma importância para toda a vida da Igreja”.7
Entendo a teologia como uma sistematização do revelado na Palavra, a fim de tornar mais compreensível a plenitude da revelação.8 A teologia, portanto, nada tem a dizer além das Escrituras. Ela não a substitui nem a completa, antes, deve ser a sua serva. A teologia brota dentro da intimidade da fé daqueles que cultuam a Deus e comprometem-se com a edificação da igreja.
A nossa teologia é sempre limitada e finita. Nunca é um edifício completo em todas as suas partes.9 Antes, é uma tentativa humana de aproximação fiel das Escrituras, rogando a indispensável assistência do Espírito (Sl 119.18) e, por isso mesmo, sempre aberta à correção e aperfeiçoamento proveniente do estudo das Escrituras. Nesse propósito, ela apresenta uma direção humilde para os peregrinos que vivem no teatro de Deus buscando o melhor caminho para chegar ao seu destino.10
Portanto, a doutrina não é apenas para o nosso deleite espiritual e reflexivo, antes, exige de forma imperativa um compromisso de vida e obediência. “O fim de um teólogo não pode ser deleitar o ouvido, senão confirmar as consciências ensinando a verdade e o que é certo e proveitoso”, declarou corretamente Calvino (1509-1564). (João Calvino, As Institutas, I.14.4).
Em outro lugar:
Visto que todos os questionamentos supérfluos que não se inclinam para a edificação devem ser com toda razão suspeitos e mesmo detestados pelos cristãos piedosos, a única recomendação legítima da doutrina é que ela nos instrui na reverência e no temor de Deus. E assim aprendemos que o homem que mais progride na piedade é também o melhor discípulo de Cristo, e o único homem que deve ser tido na conta de genuíno teólogo é aquele que pode edificar a consciência humana no temor de Deus.11
A teologia deverá estar sempre comprometida com o conhecimento de Deus e com a promoção deste conhecimento por meio da Palavra, mediante a iluminação do Espírito. É o Espírito Quem nos conduz à Palavra e Ele mesmo nos dá a conhecer a Cristo nas Escrituras.12 Aliás, Jesus Cristo é o cerne de toda a Escritura, devendo ser o foco de toda pregação genuinamente bíblica. A pregação que falha na exaltação de Cristo, certamente fugiu totalmente ao objetivo de genuína pregação.13
Portanto, como teólogos, devemos permanecer comprometidos com a nossa vocação pastoral, glorificando a Deus em nossos estudos, buscando uma piedade genuína e ensinando a Palavra com profundidade, fidelidade e simplicidade.
A nossa oração deve ser como a do salmista: “Desvenda os meus olhos, para que eu contemple as maravilhas da tua lei” (Sl 119.18). Amém Senhor!
São Paulo, 30 de novembro de 2018.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
1Veja-se: D.M. Lloyd-Jones, As Insondáveis Riquezas de Cristo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1992, p. 161. Esse conhecimento conduz-nos invariavelmente ao culto: “O conhecimento de Deus não está posto em fria especulação, mas Lhe traz consigo o culto” (João Calvino, As Institutas ou tratado da religião cristã, Campinas, SP.; São Paulo, SP.: Luz para o Caminho; Cultura Cristã, 1985-1989, I.12.1).
2 “Se o cristianismo é apenas um ensino moral, um ensino ético, é tão inútil como todos os demais. Está provado que o caminho ‘cristão’ é inútil toda vez que o reduzem a esse nível” (D. Martyn Lloyd-Jones, O Combate Cristão, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1991, p. 31).
3Walter T. Conner, Doctrina Cristiana, 4. ed. Buenos Aires: Casa Bautista de Publicaciones, 1978, p. 19. “A religião é a melhor mestra para ensinar-nos a mutuamente manter a equidade e a retidão uns para com outros. E onde a preocupação pela religião é extinta, toda e qualquer consideração pela justiça perece juntamente com ela” (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 14.4), p. 281).
4D. Chyträus, Apud Ph. J. Spener, Mudança para o Futuro: Pia Desideria, São Bernardo do Campo, SP.; Curitiba, PR.: Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Ciências da Religião; Encontrão Editora, 1996, p. 114 e 30. (Veja-se também, Spener, Ibidem., p. 102-117).
5D. Chyträus, Apud Ph. J. Spener, Pia Desideria, São Bernardo do Campo, SP.: Imprensa Metodista, 1985, p. 30. (Esta frase de Chyträus foi omitida na edição mais recente, citada supra, conforme explicação do editor).
6Apud Willemien Otten, Religion as exercitatio mentis: A case for theology as a Humanism discipline: In: Alasdair A. MacDonald, et. al. eds. Christian Humanism: Essays in Honour of Arjo Vanderjagt, Leiden: Brill Academic Pub., 2009, p. 60.
7D. Martyn Lloyd-Jones, O Combate Cristão, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1991, p. 103. Vejam-se também: D.M. Lloyd-Jones, As Insondáveis Riquezas de Cristo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1992, p. 8, 85-86, 165, 254; Idem., O Combate Cristão, p. 101-102, 127.
8 “A teologia representa a tentativa humana de colocar ordem nas idéias das Escrituras, organizando-as e ordenando-as para que a relação mútua entre elas possa ser melhor entendida” (Alister McGrath, Teologia para Amadores, São Paulo: Mundo Cristão, 2008, p. 32). “A teologia consiste em associar muitas passagens sobre diversos assuntos e organizá-las em um conjunto inteligível” (Gordon H. Clark, Em Defesa da Teologia, Brasília, DF.: Monergismo, 2010, p. 20).
9 “A teologia deve sempre ser submetida à reforma. O entendimento humano é imperfeito. Embora as construções sistemáticas de alguma geração ou grupo de gerações possam ser arquitetônicas, sempre há a necessidade de correção e reconstrução de modo que a estrutura possa vir a uma aproximação mais íntima das Escrituras e a reprodução possa vir a ser uma transcrição ou reflexo mais fiel do exemplar divino” (John Murray, O Pacto da Graça: Um Estudo Bíblico-Teológico, São Paulo: Editora Os Puritanos, 2001, p. 8).
10 “O objetivo da boa teologia é humilhar-nos diante do Deus trino de majestade e graça. (…) Os antigos teólogos da Reforma e da pós-Reforma estavam tão convictos que suas interpretações estavam muito distantes da majestade de Deus que eles chamavam seus resumos e sistemas de ‘nossa humilde teologia’ e ‘uma teologia para peregrinos no caminho’” (Michael Horton, Doutrinas da fé cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2016, p. 15). Vejam-se: João Calvino, Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 2, (Jo 14.6), p. 93; John M Frame, A doutrina do conhecimento de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 97; Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 1, p. 45.
11João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos,1998, (Tt 1.1), p. 300.
12Calvino resumiu bem este conceito, dizendo: “Só quando Deus irradia em nós a luz de seu Espírito é que a Palavra logra produzir algum efeito. Daí a vocação interna, que só é eficaz no eleito e apropriada para ele, distingue-se da voz externa dos homens” (João Calvino, Exposição de Romanos, São Paulo: Paracletos, 1997, (Rm 10.16), p. 374.
13 Quanto a este ponto, veja-se o excelente e desafiante livro de Lawson. (Steven J. Lawson, O tipo de pregação que Deus abençoa, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2013).
Excelente Reflexão , tenho aprendido bastante com os escritos
Obrigado por compartilhar! Grande artigo.