A riqueza da fecunda graça de Deus e a frutuosidade de uma fé obediente e perseverante (28)

6.6. Passamos da morte para a vida; das trevas para a luz

Deus nos salvou do domínio do pecado para Ele mesmo nos concedendo vida. (Jo 5.24; 12.46/[1]Ef 2.1; 5.8).

 

6.7. Certeza da vida eterna

 

A visão Reformada aponta para o fato da total incapacidade de nos salvar a nós mesmos. Ao mesmo tempo, enfatiza a livre graça de Deus que providencia a salvação para o Seu povo. A salvação, portanto, está condicionada à fé em Cristo Jesus, recebendo os seus merecimentos, sendo transformados por Deus e, deste modo, declarados justos aos olhos de Deus.[2] A justificação descortina diante de nós o caminho da glorificação. O Deus que nos justifica é o mesmo que nos glorificará (Rm 8.30). “A justificação é coroada com a glorificação”, exulta Watson (c. 1620-1686).[3] Nos propósitos de Deus a regeneração se consumará necessariamente na glória futura.

 

“A fé não se satisfaz com probabilidades, mas com a plena verdade”, exulta Calvino (1509-1564).[4] Deus nos garante já nesta vida a certeza de que temos a vida eterna. “Os santos no céu são mais felizes que os crentes aqui na terra, porém sua salvação não é mais segura que a destes últimos”, rejubila-se Boettner (1901-1990).[5] (Jo 3.13-18, 36; 6.40,47; 11.25,26; 1Tm 1.16; 1Jo 5.13).[6]

 

6.8. A intercessão eficaz de Jesus e do Espírito

 

Quando o Espírito nos testifica que somos filhos de Deus, ele, ao mesmo tempo, imprime esta confiança em nossos corações, para que ousemos invocar a Deus como nosso Pai. – João Calvino.[7]

 

A oração é uma das maiores bênçãos que Deus concedeu ao Seu povo. Deus propicia-nos condições para falar com Ele; ensina-nos a fazê-lo de modo correto – quanto à forma e à essência – e assiste-nos com o Seu Santo Espírito que habita em nós, os crentes em Cristo.

 

Todavia, a oração pode, de modo lamentável, tornar-se uma prática rotineira, mecânica, sem maior significado qualitativo para a nossa existência: em suma, por vezes negamos a existência da oração em nossa suposta prática devocional. Isso, até que tomemos consciência da nossa situação e precisemos clamar das “profundezas” a Deus (Sl 130.1).[8] Esta situação não foi estranha a diversos personagens bíblicos.

 

Josafá, perseguido de forma implacável pelas lanças sírias, registra o Cronista: “Josafá, porém, gritou e o Senhor o socorreu; Deus os desviou dele” (2Cr 18.31).

 

Jonas, no ventre do grande peixe, antes disposto a fugir da presença de Deus (Jn 1.3), agora diz: “Na minha angústia, clamei ao SENHOR, e ele me respondeu; do ventre do abismo, gritei, e tu me ouviste a voz. (…) Quando, dentro de mim, desfalecia a minha alma, eu me lembrei do SENHOR; e subiu a ti a minha oração” (Jn 2.2,7).

 

Habacuque, num primeiro momento, sem entender o porquê de Deus permitir a maldade dos judeus sem aparentemente puni-los e, posteriormente, Deus punindo o Seu povo por meio dos ímpios Caldeus, encontra as suas profundezas na torre, e diz: “Por-me-ei na minha torre de vigia, colocar-me-ei sobre a fortaleza e vigiarei para ver o que Deus me dirá e que resposta eu terei à minha queixa (tx;k;AT)(tôkêchâh)[9] (Hc 2.1).

 

Aqui, portanto, entramos em um terreno maravilhoso, surpreendente e altamente abençoador.  Em nossas orações, ainda que nem sempre pensemos nisto e, por vezes, somos equivocadamente tentados a exclusivisar uma das pessoas da Trindade, vemos, no entanto, na oração de Paulo a presença não meramente figurativa, antes, real e abençoadora da Santíssima Trindade (Ef 1.15-23). A Trindade faz parte essencial de nossa fé.[10] A doutrina da trindade está estreitamente relacionada à nossa salvação. Encontramos a paz para o nosso coração inquieto na graça que procede do Deus Triúno.[11]

 

Paulo reconhece este fato. Deus deseja que partilhemos da intimidade da relação da Trindade, nos dirigindo ao Pai, pela mediação do Filho sob a direção iluminadora do Espírito.[12] Lembremo-nos de que Trindade é habitualmente o nome cristão para Deus, fazendo, portanto, parte do cerne de nossa fé.[13] Curiosamente, foi a busca da Igreja pela compreensão do mistério do Cristo encarnado que a fez desenvolver e precisar de forma enriquecedora o conceito de Trindade.[14] E a igreja estava certa.

 

O que Deus revelou é para nós e para os nossos filhos para que O adoremos em obediência (Dt 29.29). Por sua vez, sabemos que a Trindade nos deu a Trindade. Sem a ação trinitária, jamais conheceríamos o Pai, o Filho e o Espírito Santo. É por eles que conhecemos o Deus Triúno e nos relacionamos com Ele em santa adoração. Analisemos um pouco melhor este assunto:

 

O Espírito é Quem nos ensina a orar como convém; ou seja: orar segundo a vontade de Deus. A oração é educativa, pois nos desafia a confiar nas promessas de Deus registradas na Sua Palavra e, assim, na medida em que confiamos, podemos amadurecer a nossa fé por meio do aprendizado experiencial de que Deus cumpre fielmente as Suas promessas. “Com a oração encontramos e desenterramos os tesouros que se mostram e descobrem à nossa fé pelo Evangelho”, observou Calvino.[15] Portanto, este tesouro não pode ser negligenciado como se “enterrado e oculto no solo!”.[16] Admite: “Agora, quanto é necessário, e de quantas maneiras o exercício da oração é útil para nós, não se pode explicar satisfatoriamente com palavras”.[17]

 

São Paulo, 15 de março de 2019.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 

*Este post faz parte de uma série. Acesse aqui a série completa

 


 

[1]Em verdade, em verdade vos digo: quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna, não entra em juízo, mas passou da morte para a vida” (Jo 5.24). Eu vim como luz para o mundo, a fim de que todo aquele que crê em mim não permaneça nas trevas” (Jo 12.46).

[2] “A visão reformada da justificação forense se fundamenta no princípio de que pela imputação da justiça de Cristo o pecador é agora feito formalmente, mas não materialmente, justo aos olhos de Deus” (R.C. Sproul, Justificação pela Fé Somente: a natureza forense da justificação: In: John F. MacArthur, Jr., et. al., A Marca da Vitalidade Espiritual da Igreja: Justificação pela Fé Somente, São Paulo: Editora Cultura Cristã, (2000), p. 33).

[3] Thomas Watson, A Fé Cristã, estudos baseados no breve catecismo de Westminster, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 265.

[4]João Calvino, As Pastorais, (Tt 1.1), p. 299.

[5] Loraine Boettner, La Predestinación, Michigan: SLC. (s.d.), p. 156.

[6]13 Ora, ninguém subiu ao céu, senão aquele que de lá desceu, a saber, o Filho do Homem que está no céu.  14 E do modo por que Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do Homem seja levantado,  15 para que todo o que nele crê tenha a vida eterna.  16 Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna.  17 Porquanto Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que julgasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele.  18 Quem nele crê não é julgado; o que não crê já está julgado, porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus. (…) 36 Por isso, quem crê no Filho tem a vida eterna; o que, todavia, se mantém rebelde contra o Filho não verá a vida, mas sobre ele permanece a ira de Deus(Jo 3.13-16; 36). 40 De fato, a vontade de meu Pai é que todo homem que vir o Filho e nele crer tenha a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia. (…) 47 Em verdade, em verdade vos digo: quem crê em mim tem a vida eterna(Jo 6.40,47). Mas, por esta mesma razão, me foi concedida misericórdia, para que, em mim, o principal, evidenciasse Jesus Cristo a sua completa longanimidade, e servisse eu de modelo a quantos hão de crer nele para a vida eterna(1Tm 1.16).

[7] João Calvino, Romanos, 2. ed. São Paulo: Edições Parakletos, 2001, (Rm 8.16), p. 288.

[8] “Das profundezas clamo a ti, SENHOR” (Sl 130.1).

[9]Esta palavra que corre 28 vezes no Antigo Testamento, é empregada especialmente no livro de Provérbios, com o sentido de: Repreensão (Pv 1.23,25, 30; 3.11; 6.23; 10.17; 12.1; 13.18; 15.5, 10,31,32; 27.5; 29.1; Ez 25.17); Defesa (Jó 13.6); Disciplina (2Rs 19.3; Pv 5.12); Argumento (Jó 23.4); Réplica (Sl 18.14); Castigo (Sl 39.11; 73.14; 149.7; Is 37.3; Ez 5.15; Os 5.9).

A oração do profeta é um protesto, um arrazoado sincero e audacioso de um homem que quer mas não consegue compreender o modo de Deus agir, daí a sua queixa, a sua réplica, o seu argumento contra o desígnio de Deus.

Calvino comenta: “Não é de se estranhar se os fiéis, mesmo em oração, nutram em seus corações divergências e emoções conflitantes. O Espírito Santo, porém, que os habita, amenizando a violência de sua dor, pacifica todas as suas queixas e os conduz paciente e cordialmente à obediência” (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, v. 2, (Sl 44.2), p. 282).

[10] “A Trindade é a língua na qual a verdade cristã é falada. Ela dá forma à verdade. A Trindade não é periférica, quanto menos é opcional. Ela está no maravilhoso e grandioso cerne de nossa fé” (Tim Chester, Conhecendo o Deus Trino: porque Pai, Filho e Espírito Santo são boas novas, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2016, p. 18).

[11]Veja-se: B.B. Warfield, The Biblical Doctrine of the Trinity: In: B.B. Warfield, The Works of Benjamin B. Warfield, Grand Rapids, MI.: Baker Book House, 2000 (Reprinted), v. 1, p. 168.

[12]“O propósito original de Deus foi que o ser humano partilhasse a intimidade familiar jubilosa da Trindade” (J.I. Packer, O Plano de Deus para Você, 2. ed. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 2005, p. 125).

[13] Veja-se: Tim Chester, Conhecendo o Deus Trino: porque Pai, Filho e Espírito Santo são boas novas, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2016, p. 18.

[14]Pelikan (1923-2006) chega a dizer que “o dogma da Trindade foi desenvolvido como a resposta da igreja à questão sobre a identidade de Jesus Cristo” (Jaroslav Pelikan, A tradição cristã: uma história do desenvolvimento da doutrina: O surgimento da tradição católica 100-600, v.1, São Paulo: Shedd Publicações, 2014, p. 235). Novamente: “O auge do desenvolvimento doutrinal da igreja primitiva foi o dogma da Trindade” (Jaroslav Pelikan, A tradição cristã: uma história do desenvolvimento da doutrina: O surgimento da tradição católica 100-600, v.1, p. 185). “É verdade que as controvérsias cristológicas que remontam ao ano 360 não são no fundo mais do que uma consequência lógica das discussões sobre a fé trinitária” (B. Studer, Trindade: In: Ângelo Di Berardino, org. Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs, Petrópolis, RJ.; São Paulo: Vozes; Paulinas, 2002, p. 1389). “É possível argumentar que a doutrina da Trindade encontra-se intimamente associada ao desenvolvimento da doutrina sobre a divindade de Cristo. Quanto mais a igreja insistia no fato de Cristo ser Deus, mas era pressionada a esclarecer a forma como Cristo se relacionava com Deus” (Alister E. McGrath, Teologia Sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia cristã, São Paulo: Shedd Publicações, 2005, p. 378). No final do segundo século, Irineu (c. 130-200 AD) testemunha que a Igreja de Deus, espalhada por toda face da terra, declarava a sua fé trinitária – conforme recebera dos discípulos – a saber: “a fé em um só Deus, Pai onipotente, que fez o céu e a terra, o mar e tudo quanto nele existe; em um só Jesus Cristo, Filho de Deus, encarnado para nossa salvação; e no Espírito Santo que, pelos profetas, anunciou a economia de Deus” (Irineu, Irineu de Lião, São Paulo: Paulus, 1985, I.10.1. p. 61-62). Ainda segundo ele, esta pregação era comum na Igreja “Unanimemente as prega, ensina e entrega, como se possuísse uma só boca” (Irineu, Irineu de Lião, I.10.2. p. 62).

[15]João Calvino, As Institutas, III.20.2.

[16]João Calvino, As Institutas, III.20.1.

[17]João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 3, (III.9), p. 92.

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