A riqueza da fecunda graça de Deus e a frutuosidade de uma fé obediente e perseverante (2)

 

1. Tipos de fé

 

Pode parecer estranho para alguns, o fato de tratarmos de tipos diferentes de fé; no entanto, a Bíblia nos mostra que apesar de usarmos a palavra “fé” de modo generalizado, há distinções importantes que devem ser feitas, para que possamos ter uma verdadeira compreensão da nossa fé.

 

1.1. Fé histórica ou especulativa

 

Ela é caracterizada pela crença intelectual na veracidade de um acontecimento tido como histórico. Quando, por exemplo, estudamos os eventos da História, na realidade estamos exercitando a nossa fé histórica, crendo que de fato os episódios se deram conforme os registros históricos. Alguém pode ter sido criado na igreja, aprendido as histórias bíblicas, estar socialmente integrado na igreja e, no entanto, só dispor de uma crença puramente intelectual que, em nada afeta a sua existência.[1]

 

O fato de alguém crer na singularidade da Bíblia, na existência de Jesus; na veracidade histórica das narrativas do Pentateuco, por exemplo, não indica necessariamente que ele tenha uma fé divina, salvadora. (Vejam-se: Jo 3.2; At 26.24-27; Tg 2.19).

 

1.2. Fé temporal ou transitória

 

Devemos estar atentos ao fato de que há também “conversões temporárias” que, mesmo apresentando frutos, logo se dissipam. Este tipo de fé é decorrente, pela graça comum,[2] da consciência da realidade das verdades religiosas. Em um primeiro momento, ela manifesta frutos parecidos com os da fé salvadora; todavia, por ela não estar amparada no genuíno conhecimento da Palavra e não proceder de um coração regenerado, é ineficaz e não permanece; falta-lhe raiz (Mt 13.20-21)[3].[4]

 

De quando em quando, surgem pessoas na Igreja cheias de entusiasmo, julgando que tudo está errado, querendo transformar as estruturas, achando que podem fazer melhor o trabalho, etc. De repente, de modo abrupto ou gradativo, elas perdem o primeiro vigor e se afastam: sua fé aparentemente tão fervorosa se apagou. Era uma fé cheia de adjetivos. Contudo, não dispunha de substância. Esta é uma forma característica da fé temporal se manifestar. (Veja-se: Jo 2.23-25; At 8.13,18-24; 2Tm 2.17-18; 4.10; 1Jo 2.18-19).[5]

 

1.3. Fé milagrosa

 

É caracterizada pela persuasão intelectual de que eu serei o instrumento ou o beneficiário de um milagre. Dessa conceituação, podemos distinguir esta fé em dois tipos:

 a) Ativa

É a certeza de que Deus operará um milagre por meu intermédio. (Mt 7.21-23; 10.1; 17.20).

b) Passiva

É a convicção de que Deus operará um milagre em mim. (Mt 8.10-13; Lc 17.11-19; At 14.8-10).

 

Esta fé pode estar acompanhada da fé salvadora, porém não necessariamente; no caso do leproso que foi curado e voltou para “dar glória a Deus”, há evidência da fé salvadora (Cf. Lc 17.19), enquanto que no caso dos outros nove, ao que parece, havia apenas a fé milagrosa.

 

Observemos que Deus é soberano para agir como Ele quiser; inclusive capacitando os homens para serem seus agentes ou beneficiários dos milagres; por isso, não nos iludamos com os “sinais” alegados por tantos pregadores.

 

No final dos tempos, quando Cristo voltar em glória, muitos homens se apresentarão diante dele, dizendo terem feito milagres e sinais em Seu nome, entretanto, apesar de tais sinais terem ocorrido, não foram operados através de Cristo, conforme alegado, mas, sim, pelo “espírito de demônios” (Ver: Ap 16.14).

 

Assim Jesus narra o episódio profético:

 

Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus. Muitos naquele dia, hão de dizer-me: Senhor, Senhor! porventura, não temos nós profetizado em teu nome, e em teu nome não expelimos demônios, e em teu nome não fizemos muitos milagres (du/namij)? Então lhes direi explicitamente: Nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais a iniquidade. (Mt 7.21-23).

 

Jesus Cristo declara que nunca os reconheceu como Seus discípulos; em momento algum manteve com eles uma relação afetiva. (Vejam-se: Ex 7.22; 8.7,18).

 

Satanás é um imitador de Deus; ele procura produzir obras semelhantes às de Deus a fim de confundir os homens, deixando-os desnorteados.[6] Satanás também procura criar em nossas mentes uma valorização demasiada do sinal a fim de manter-nos presos a isso, não conseguindo enxergar o valor de tudo o mais.

 

Paulo escreve sobre este ponto: “Ora, o aparecimento do iníquo é segundo a eficácia (e)ne/rgeia)[7] de Satanás, com todo poder (du/namij),[8] e sinais (shmei=on)[9] e prodígios (te/raj)[10] da mentira” (2Ts 2.9). Neste texto fica claro que Satanás se vale de todos os recursos a ele disponíveis, contudo, como não poderia ser diferente, amparado na “mentira”, já que ele é seu pai (Jo 8.44).

 

Jesus advertiu aos Seus discípulos: “Surgirão falsos cristos e falsos profetas operando grandes sinais (shmei=on) e prodígios (te/raj) para enganar, se possível, os próprios eleitos” (Mt 24.24).

 

1.4. Fé salvadora ou justificadora

 

Esta é a genuína fé cristã. Ela está enraizada no coração que foi regenerado por Deus. A fé salvadora é obra de Deus e é direcionada para Deus por meio de Cristo (Hb 12.2; 1Jo 5.1-5).[11] Contudo, devemos observar que nós não somos salvos pela fé, mas sim por Cristo Jesus por intermédio da fé.

 

No próximo post começaremos a tratar a respeito da natureza da fé salvadora.

 

Maringá, 17 de fevereiro de 2019.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 

*Este artigo faz parte de uma série. Veja aqui a série completa!

 

 

 

 


 

[1] Veja-se: D. Martyn Lloyd-Jones, Deus o Espírito Santo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1998, p. 188-189.

[2] Ver: João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 6.4), p. 153-154; François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 2, p. 704. Em outro lugar Calvino escreve: “Existe uma fé temporária, como Marcos a chama (4.7), a qual não é tanto um fruto do Espírito de regeneração, mas uma certa emoção mutável e prontamente se desvanece” (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 2002, v. 3, (Sl 106.12), p. 676). Calvino a chama também de “conversão temporária” e “fé transitória” (João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6, São Paulo: Parakletos, 2000, v. 1, (Dn 3.26), p. 221 e (Dn 3.28), p. 226)

[3] 20 O que foi semeado em solo rochoso, esse é o que ouve a palavra e a recebe logo, com alegria; 21 mas não tem raiz em si mesmo, sendo, antes, de pouca duração; em lhe chegando a angústia ou a perseguição por causa da palavra, logo se escandaliza” (Mt 13.20-21).

[4] Veja-se: François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 2, p. 708.

[5]23 Estando ele em Jerusalém, durante a Festa da Páscoa, muitos, vendo os sinais que ele fazia, creram no seu nome; 24 mas o próprio Jesus não se confiava a eles, porque os conhecia a todos. 25 E não precisava de que alguém lhe desse testemunho a respeito do homem, porque ele mesmo sabia o que era a natureza humana” (Jo 2.23-25). 13 O próprio Simão abraçou a fé; e, tendo sido batizado, acompanhava a Filipe de perto, observando extasiado os sinais e grandes milagres praticados. (…) 18 Vendo, porém, Simão que, pelo fato de imporem os apóstolos as mãos, era concedido o Espírito Santo, ofereceu-lhes dinheiro, 19 propondo: Concedei-me também a mim este poder, para que aquele sobre quem eu impuser as mãos receba o Espírito Santo. 20 Pedro, porém, lhe respondeu: O teu dinheiro seja contigo para perdição, pois julgaste adquirir, por meio dele, o dom de Deus. 21 Não tens parte nem sorte neste ministério, porque o teu coração não é reto diante de Deus. 22 Arrepende-te, pois, da tua maldade e roga ao Senhor; talvez te seja perdoado o intento do coração; 23 pois vejo que estás em fel de amargura e laço de iniquidade. 24 Respondendo, porém, Simão lhes pediu: Rogai vós por mim ao Senhor, para que nada do que dissestes sobrevenha a mim” (At 8.13,18-24).17 Além disso, a linguagem deles corrói como câncer; entre os quais se incluem Himeneu e Fileto. 18 Estes se desviaram da verdade, asseverando que a ressurreição já se realizou, e estão pervertendo a fé a alguns” (2Tm 2.17-18). “Porque Demas, tendo amado o presente século, me abandonou e se foi para Tessalônica; Crescente foi para a Galácia, Tito, para a Dalmácia” (2Tm 4.10). 18Filhinhos, já é a última hora; e, como ouvistes que vem o anticristo, também, agora, muitos anticristos têm surgido; pelo que conhecemos que é a última hora. 19 Eles saíram de nosso meio; entretanto, não eram dos nossos; porque, se tivessem sido dos nossos, teriam permanecido conosco; todavia, eles se foram para que ficasse manifesto que nenhum deles é dos nossos” (1Jo 2.18-19).

[6] “Não me passa despercebido que Satanás é em muitos aspectos um imitador de Deus, a fim de, mediante enganosa similaridade, melhor insinuar-se à mente dos símplices” (J. Calvino, As Institutas, I.8.2). “Satanás pode imitar muitos dos dons do Espírito Santo” (D.M. Lloyd-Jones, Salvos desde a Eternidade, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2005 (Certeza Espiritual: v. 1), p. 92).

[7]Esse substantivo pode também ser traduzido por “força operante” (Ef 3.7); “cooperação” (Ef 4.16); “poder” (Cl 2.12); “operação” (2Ts 2.11).  Satanás atua de forma eficaz na consecução dos seus objetivos: e)ne/rgeia (energeia) – “trabalho efetivo” –, de onde vem a nossa palavra “energia”, passando pelo latim, “energîa”. O substantivo é empregado tanto para Deus (Ef 3.7; 4.16; Fp 3.21; Cl 1.29; 2.12) como para Satanás (2Ts 2.9). Estando este subordinado à e)ne/rgeia de Deus (2Ts 2.11). E)ne/rgeia e seus derivados, no NT., descreve sempre um poder eficaz em atividade sobre-humana, através da qual a natureza de quem a exerce se revela. (Ver: William Barclay, Palavras Chaves do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1988, p. 51-57).

[8] Satanás atua com “poder”, “força”, “habilidade” (Veja-se a palavra “capacidade” em Mt 25.15 e “força” em 2Co 1.8).

[9]A palavra indica uma marca ou sinal indicativo pelo qual alguma coisa é identificada; aponta para outra coisa cujo significado parece obscuro. Esta palavra é usada para referir-se aos milagres divinos: (Mt 12.38,39; 16.1,4; Mc 8.11,12; 16.17,20; Lc 11.16; Jo 2.11) e de Satanás e seus mensageiros: (Mt 24.24; Mc 13.22; 2Ts 2.9; Ap 13.13,14; 16.14; 19.20). Os discípulos querem um sinal da vinda de Cristo (Mt 24.3/24.30; Mc 13.4); o beijo traidor de Judas serviu como sinal (Mt 26.48); a criança nascida em Belém era um sinal do nascimento do Messias (Lc 2.12); Simeão diz que Jesus será “alvo” (shmei=on) de contradição. (Lc 2.34). Jonas foi um sinal para os ninivitas e Jesus era para a sua geração (Lc 11.29,30). Herodes queria ver Jesus realizar algum sinal (Lc 23.8); os judeus queriam um sinal de Jesus que atestasse a Sua autoridade (Jo 2.13-18/3.2/6.14; 6.30); muitos creram por intermédio de Seus sinais (Jo 2.23/4.48; 6.2; 7.31). Todavia, outros estavam mais preocupados com o pão (Jo 6.26), e outros, ainda que vendo os sinais, não creram (Jo 12.37); contudo gostavam de ver sinais (Mt 16.1/1Co 1.22). Os sinais de Jesus deixavam confusos os judeus e amedrontadas as autoridades (Jo 9.16; 11.47,48). João diz que Jesus fez “muitos outros sinais”, contudo estes foram registrados para que os homens cressem (Jo 20.30,31/Hb 2.3,4). Os sinais incitam “a mente humana a atentar para algo mais elevado que a mera aparência” (João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo, Paracletos, 1997, (Hb 2.4), p. 55). João Batista não fez sinal, contudo, tudo que disse era verdade (Jo 10.41). Os apóstolos também realizaram sinais (At 2.43; 4.16; 5.12) reconhecendo que estes eram obra de Deus (At 4.30; 14.3; 15.12). Estevão, Filipe, Paulo e Barnabé, do mesmo modo, operaram sinais (At 6.8; 8.13; 14.3; 15.12; Rm 15.19). Os sinais se constituíam num dos elementos que credenciavam o apóstolo (2Co 12.12). Resumindo: os sinais de Cristo nunca eram praticados com fins egoístas ou, com o propósito de se mostrar aos Seus ouvintes. Na realidade vimos sempre o propósito de glorificar a Deus, relacionar de forma fundamental a base sobrenatural da revelação e, também, satisfazer e aliviar as necessidades humanas. (Quanto a maiores detalhes sobre esta palavra, vejam-se:  K.R. Rengstorf, shmei=on, etc.: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1983 (Reprinted), v. 7, p. 200-269; O. Hofius, Milagre: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 3, p. 169-174; Richard C. Trench, Synonyms of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1985 (Reprinted), p. 339-344; Richard C. Trench, Notes on The Miracles of Our Lord, London: Kegan Paul, Trench, Trübner, & Co. Ltd., 1911, p. 2ss.).

[10]A palavra indica algo que é maravilhoso, prodigioso, causa assombro, é estarrecedor; é aquilo que desperta a atenção, é novo e incomum, sendo guardado na memória. Satanás também usa deste recurso para enganar, se possível os eleitos (Mt 24.24 (= Mc 13.22); 2Ts 2.9); Jesus, além de sinais, operou prodígios (At 2.22); do mesmo modo os apóstolos (At 2.43; 5.12), os quais reconheciam ser isto obra de Deus (At 4.30; 14.3). Estevão, Paulo e Barnabé também realizaram prodígios (At 6.8; 14.3; 15.12). Assim como os “sinais”, os “prodígios” se constituíam num dos elementos que credenciavam o apóstolo (2Co 12.12). Eles tinham uma função de confirmar o anúncio da salvação (Hb 2.3,4). (Quanto a maiores detalhes sobre esta palavra, Vejam-se: O. Hofius, Milagre: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, v. 3, p. 175; K.R. Rengstorf, te/raj: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, v. 8, p. 113-126; Richard C. Trench, Synonyms of the New Testament, p. 339-344; Richard C. Trench, Notes on The Miracles of Our Lord, p. 2ss.).

[11] “Olhando firmemente para o Autor e Consumador da fé, Jesus” (Hb 12.2). “Todo aquele que crê que Jesus é o Cristo é nascido de Deus; e todo aquele que ama ao que o gerou também ama ao que dele é nascido. 2 Nisto conhecemos que amamos os filhos de Deus: quando amamos a Deus e praticamos os seus mandamentos. 3 Porque este é o amor de Deus: que guardemos os seus mandamentos; ora, os seus mandamentos não são penosos, 4porque todo o que é nascido de Deus vence o mundo; e esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé. 5Quem é o que vence o mundo, senão aquele que crê ser Jesus o Filho de Deus?” (1Jo 5.1-5).

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