A riqueza da fecunda graça de Deus e a frutuosidade de uma fé obediente e perseverante (1)

Introdução: fé na ciência e ciência da fé

 

Ó Senhor, reconheço, e rendo-te graças por ter criado em mim esta tua imagem a fim de que, ao recordar-me de ti, eu pense em ti e te ame. Mas, ela está tão apagada em minha mente por causa dos vícios, tão embaciada pela névoa dos pecados, que não consegue alcançar o fim para o qual a fizeste, caso tu não a renoves e a reformes. Não tento, ó Senhor, penetrar a tua profundidade: de maneira alguma minha inteligência amolda-se a ela, mas desejo, ao menos, compreender a tua verdade, que o meu coração crê e ama. Com efeito, não busco compreender para crer, mas creio para compreender. Efetivamente creio, porque, se não cresse, não conseguiria compreender. – Anselmo de Cantuária (1033-1109).[1]

 

A fé é indispensável, essencial à vida humana. Todos os homens têm seus pressupostos,[2] os quais nada mais são do que uma confiança preliminar em algo que determina a leitura, interpretação e compreensão dos fenômenos observados.[3] O perigo sempre evidente – pelo menos para quem está de fora –, é sobrepor nossas teorias às evidências,[4] falseando-as, conforme nos adverte Bavinck (1854-1921):

 

A primeira preocupação de todo praticante de ciência, e, particularmente, de todo teólogo, é ser humilde e modesto. Um cientista não deve pensar que é mais sábio do que realmente é. Toda disciplina científica está presa ao seu objeto. Ela não pode  ̶  por causa de uma teoria preconcebida  ̶  falsificar ou negar os fenômenos que observa.[5]

 

O conhecimento científico – como uma forma sofisticada de conhecimento –   apesar de relevante, é extremamente limitado,[6] não sendo estranho observar na história, que a ciência de hoje pode se tornar o mito de amanhã.[7]

 

São pertinentes e embaraçosas as observações de Veith, Jr.:

 

Aqueles que veem a ciência como algo que produz a verdade imutável deveriam estudar a história da ciência e fazer a si mesmos outras perguntas: Se a ciência tem nos dado uma série de modelos para explicar dados sempre crescentes, podemos esperar que seja absoluto o que a ciência nos diz agora? Daqui a cem anos, a ciência estará nos dizendo o mesmo que nos diz hoje?  (…) Se a ciência de 1500 parece bastante primitiva e ingênua, será que a nossa ciência também não parecerá primitiva e ingênua daqui a quinhentos anos? O que a ciência proclama como fato nem sempre é tão certo para a geração seguinte de cientistas.[8]

 

Deve ser dito, que nem por isso a ciência deve ser gratuitamente rejeitada. Na realidade ela é construída tendo um cerne comum, valendo-se das contribuições básicas dos seus predecessores. A ciência de fato deve ser avaliada e a história nos ajuda bastante na compreensão de determinados conceitos e de sua superação e substituição por outros.[9] A nossa dúvida quanto à ciência tem como fundamento a fé na sua capacidade de superação do que foi atingido. Somente a fé que duvida metodologicamente de sua fé, pode de fato se tornar confiável. A fé que se posiciona além da suspeita, não é mais fé, tornou-se uma suposta ciência absoluta.[10] Esta, contudo, pertence somente a Deus.

 

As contribuições científicas geralmente começam por um ato de fé, uma hipótese, um conjunto de pressuposições que poderá, posteriormente, ser confirmado ou não.[11] Lemos a realidade por essas lentes, conscientemente ou não.[12] A fé é fundamental para o início e progresso da ciência; é impossível haver ciência sem fé.[13]

 

A ciência não pode avançar sem fé. O que os cientistas chamam de hipótese é justamente as pressuposições que norteiam a sua pesquisa. Ainda que ela possa mostrar a inviabilidade de seus pressupostos, são estas que determinam a nossa maneira de nos aproximar do objeto, ver e, portanto, agir no mundo.

 

A ciência não ocorre num vácuo asséptico conceitual quer seja religioso, quer filosófico, quer cultural.[14] A nossa percepção e ação fundamentam-se em nossos pressupostos que determinam, em grande medida, a nossa pré-compreensão.

 

A fé não é a ciência em si. Se ela assim fosse, deixaria de ser simples fé para se plenificar em conhecimento. A fé muda a minha percepção, não a realidade em si. Contudo, o meu olhar e percepção podem contribuir para a mudança do real. Isto só pode ocorrer mediante o trabalho condizente com o que creio. Por outro lado, a ciência não implica necessariamente em fé consequente, contudo ela mais cedo ou mais tarde nos levará a crer subjetivamente no que se mostra objetivamente a nós.

 

Em síntese: o que cremos não muda a realidade, no entanto, podemos crer que a realidade pode ser mudada pela nossa fé operante. Os sonhadores, de certa forma, são os construtores do real, todavia, a ciência tenderá a produzir fé naqueles que foram confrontados e convencidos por suas evidências.

 

Devemos estar atentos ao fato de que a ciência é uma construção social, não de um homem isolado.[15] É na experimentação, verificação, repetição e avaliação que refinamos e aperfeiçoamos o conhecimento. Por isso, as ideias valem não simplesmente pelo critério de autoridade – notoriedade de quem disse –, o que nos conduziria ao desfilar de currículos de quem disse sem nenhuma verificação a posteriori já que a autoridade de quem afirmou é suficiente. Precisamos avaliar o saber a partir de si mesmo, do seu conteúdo e verificabilidade, não apenas, de quem o professou.

 

Por sua vez, o sentido e a ética desse conhecimento, extrapolam o alcance da própria ciência, como escreve McGrath:

 

A ciência é moralmente imparcial precisamente porque é moralmente cega, colocando-se a serviço do ditador que quer forçar seu governo opressivo por meio das armas de destruição em massa; e, da mesma forma, colocá-la a serviço dos que desejam curar uma humanidade destruída e enfraquecida por meio de novas drogas e procedimentos médicos. Precisamos de narrativas transcendentes para nos fornecer orientação moral, propósito social e senso de identidade pessoal. Embora a ciência possa nos fornecer conhecimento e informação, ela é impotente para conferir sabedoria e sentido.[16]

 

É muito comum, ouvir pessoas consolando outras, em momentos de dificuldade, dizendo: “tenha fé”, “o importante é ter fé”. Na literatura, encontramos homens de concepções variadas, falando de fé, usando por certo conceitos diferentes para se expressarem, mas de qualquer forma, o assunto envolve a pauta de suas atenções. Como exemplo, temos o filósofo Existencialista espanhol, Miguel de Unamuno (1864-1936), dizendo que a fé “é o poder criador do homem”;[17] Erich Fromm (1900-1980), psicanalista e sociólogo alemão, afirmando que é a “consciência da gravidez”, e do “estado de gravidez”;[18] Paul Tillich (1886-1966), teólogo alemão, falando do “estado de ser”[19] e, Emil Brunner (1889-1966), outro teólogo, esse de origem suíça, declarando ser a fé a “janela aberta para o porvir”.[20]

 

A fé é também importante como elemento psicológico. Todavia, ela em si mesma, como elemento solitário, é de pouco valor prático; a sua relevância não depende simplesmente da sua intensidade, mas, sim, do seu objeto. Uma fé forte em algo débil de nada adianta. Qual o valor de uma “fé forte” nos ídolos criados pela imaginação pecaminosa do homem? Os ídolos nada podem fazer, por maior que seja a fé depositada neles. (Sl 115.4-8; Is 44.9-20/1Rs 18.20-30). Os homens, em seus pecados, se tornaram nulos em seus pensamentos tal qual a sua “criação”.

 

“Os ídolos – escreve o Salmista – das nações são prata e ouro, obra das mãos dos homens. Têm boca, e não falam; têm olhos, e não veem; têm ouvidos, e não ouvem; pois não há alento de vida em sua boca. Como eles se tornam os que os fazem e todos os que neles confiam” (Sl 135.15-18).

 

A nossa fé repousa em Deus e na Sua Palavra: na Sua promessa. “A fé que repousa na Palavra de Deus permanece inabalável contra todas as investidas de Satanás”, instrui-nos Calvino (1509-1564).[21]

 

O nosso estudo se restringe à fé no campo religioso. No próximo post começaremos, então, a analisar os tipos de fé.

 

 

Maringá, 17 de fevereiro de 2019.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 

*Este artigo faz parte de uma série. Veja aqui a série completa!

 


[1]Santo Anselmo de Cantuária, Proslógio, São Paulo: Editora Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 7), 1973, p. 107.

[2] “Nenhum homem, seja ele um cientista ou não, consegue trabalhar sem pressuposições” (Henry H. Van Til, O Conceito Calvinista de Cultura, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 23).

[3] Vejam-se alguns exemplos ilustrativos dessa perspectiva em Vicent Cheung, Confrontações Pressuposicionais, Brasília, DF.: Monergismo, 2011, p. 17ss.

[4] Cf. Alan Sokal; Jean Bricmont, Imposturas intelectuais, 2. ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2016, p. 82-83.

[5]Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 246.

[6] “[A ciência] é provisória e limitada” (Karl Barth, Esboço de uma Dogmática, São Paulo: Fonte Editorial, 2006, p. 7).

[7]“A prevalência de uma crença pode não ser um indicador confiável de sua verdade, mas apenas um reflexo das modas intelectuais ou culturais transitórias. O que hoje parece ser permanente e globalmente aceito é com frequência descartado amanhã como uma forma ultrapassada de pensar” (Alister E. McGrath, Surpreendido pelo sentido: ciência, fé e o sentido das coisas, São Paulo: Hagnos, 2015, p. 19). O filósofo católico Gilson (1884-1978), apresenta outra vertente da questão: “É importante percebermos que a humanidade está condenada a viver cada vez mais sob o feitiço de uma nova mitologia científica, social e política, exceto se exorcizarmos resolutamente estas noções confusas cuja influência na vida moderna se torna aterradora” (Étienne Gilson, Deus e a filosofia, Lisboa: Edições 70, (2003), p. 96).

[8]Gene Edward Veith, Jr., De Todo o Teu Entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 57. Vejam-se também: K. R. Popper, A Lógica da Investigação Científica, São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, v. 44), 1975, § 85. p. 383, 384; Karl R. Popper, O Realismo e o Objectivo da Ciência, (Pós-Escrito à Lógica da Descoberta Científica, v. 1), Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1987, * 27, p. 234-235; Jean Piaget, A Epistemologia Genética, São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, v. 51), 1975, p. 129-130).

[9] Cf. Thomas Kuhn, A Revolução Copernicana, Lisboa: Edições 70, (2002), p. 20.

[10] “A ciência caída do céu, a ciência absoluta, não existe” (Karl Barth, Esboço de uma Dogmática, São Paulo: Fonte Editorial, 2006, p. 8).

[11]Sobre a provisoriedade da ciência, seus pressupostos, ambição e limitação, vejam-se: Hermisten M.P. Costa, Introdução à Metodologia das ciências teológicas, Goiânia, GO.: Editora Cruz, 2015; Hermisten M.P. Costa, Introdução à cosmovisão Reformada: um desafio a se viver responsavelmente a fé professada. Goiânia, GO.: Editora Cruz, 2017.

[12]“Todo crente e todo teólogo dogmático, antes de tudo, recebe suas convicções religiosas de sua igreja. Consequentemente, os teólogos nunca abordam a Escritura de fora, sem qualquer conhecimento anterior ou opinião preconcebida, mas trazem consigo, de seu contexto, uma determinada compreensão do conteúdo da revelação e, assim, olham para a Escritura com a ajuda dos óculos que suas igrejas lhes puseram. Todos os teólogos dogmáticos, quando vão para o trabalho, permanecem, consciente ou inconscientemente, na tradição da fé cristã na qual nasceram e foram nutridos e abordam a Escritura como cristãos reformados, ou luteranos, ou católicos romanos. Também com relação a isso não podemos simplesmente renunciar ao nosso ambiente: somos sempre filhos de nossa época, produto do nosso contexto” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 1, p. 82). Vejam-se também as páginas, 43 e 178. Para um estudo mais detalhado a respeito dos nossos pressupostos e como eles influenciam a leitura da realidade, vejam-se: Hermisten M.P. Costa, Introdução à cosmovisão Reformada: um desafio a se viver responsavelmente a fé professada. Goiânia, GO.: Editora Cruz, 2017; Hermisten M.P. Costa, Raízes da Teologia Contemporânea, 2. ed.  São Paulo: Cultura Cristã, 2018.

[13]Vejam-se: Hermisten M. P. Costa, A Ciência e a sua “autonomia”: Ciência ou fé?: Rompendo em fé com a fé.  In: Ciências da Religião: História e Sociedade, São Paulo: Programa de Pós Graduação em Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie, (8/1, /2010): 61-97; Hendrik van Riessen, Enfoque Cristiano de la Ciencia, 2. ed. Países Bajos: FELIRE, 1990, p. 61ss. “Ainda que a ciência está livre de certos elementos subjetivos e os transcende, nunca estará livre da fé do cientista. A ciência é única porém limitada.” (Hendrik van Riessen, Enfoque Cristiano de la Ciencia, p. 58-59). “A ciência nunca avança sem uma fé, e nunca deverá avançar sem a fé cristã. A ciência sempre está guiada e inspirada pelo crer. O cientista cristão deve escutar e pedir a seu Pai celestial que lhe guie em sua tarefa científica. O resultado dependerá da benção de Deus.” (Hendrik van Riessen, Enfoque Cristiano de la Ciencia, p. 62). “Toda ciência num certo grau parte da , e ao contrário, a fé que não leva à ciência é equivocada ou superstição, mas não é fé real, genuína. Toda ciência pressupõe fé em si, em nossa autoconsciência; pressupõe fé no trabalho acurado de nossos sentidos; pressupõe fé na correção das leis do pensamento; pressupõe fé em algo universal escondido atrás dos fenômenos especiais” (Abraham Kuyper, Calvinismo, São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 137-138).

[14]Veja-se: Nancy R. Pearcey; Charles B. Thaxton, A Alma da Ciência, São Paulo: Cultura Cristã, 2005, p. 9-12; 294. Obviamente, isso se aplica também à exegese e à teologia.  “A reflexão teológica (…) nunca ocorre em um vácuo social ou cultural” (Alister E. MacGrath, Lutero e a Teologia da Cruz, São Paulo: Cultura Cristã, 2014, p. 22). Silva argumenta com precisão e franqueza: “Quer tenhamos ou não a intenção de fazê-lo, quer gostemos ou não, todos lemos o texto conforme interpretado por nossas pressuposições teológicas. Aliás, o argumento mais sério contra a ideia de que a exegese deve ser feita independente da teologia sistemática é que tal ponto de vista é irremediavelmente ingênuo. A mera possibilidade de entender qualquer coisa depende de nossas estruturas anteriores de interpretação. Se observarmos um fato que faz sentido para nós, é simplesmente porque conseguimos encaixá-lo dentro de um conjunto complexo de ideias que assimilamos anteriormente” (Moisés Silva, Em Favor da Hermenêutica de Calvino: In: Walter C. Kaiser Jr.; Moisés Silva, Introdução à Hermenêutica Bíblica, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002, p. 255).

[15] “O conhecimento científico é produto de um empreendimento humano coletivo ao qual os cientistas fazem contribuições individuais purificadas e ampliadas pela crítica mútua e pela cooperação intelectual. Segundo essa teoria, a meta da ciência é um consenso de opinião racional sobre o campo mais amplo possível” (John Ziman, O Conhecimento Confiável: uma exploração dos fundamentos para a crença na ciência, Campinas, SP.: Papirus, 1996, p. 13). Vejam-se também: Émile Durkheim, Educação e Sociologia, 5. ed. São Paulo: Melhoramentos, (s.d.) p. 35; A. Kuyper, Sabedoria e prodígios: graça comum na ciência e na arte, Brasília, DF.: Monergismo, 2018, p. 42-45.

[16]Alister E. McGrath, Surpreendido pelo sentido: ciência, fé e o sentido das coisas, São Paulo: Hagnos, 2015, p. 14.

[17] Miguel de Unamuno, Do Sentimento trágico da vida, Porto: Editora Educação Nacional, 1953, p. 234.

[18] Erich Fromm, A Revolução da esperança, São Paulo: Círculo do Livro, (s.d.), p. 27.

[19] Paul Tillich, A Coragem de ser, 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 134.

[20] Heinrich E. Brunner, Nossa fé, 2. ed. São Leopoldo, RS.: Sinodal, 1970, p. 114.

[21] João Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 4.14), p. 128. “O conhecimento do divino favor, é verdade, deve ser buscado na Palavra de Deus; a fé não possui nenhum outro fundamento no qual possa descansar com segurança, exceto a Palavra; mas quando Deus estende sua mão para ajudar-nos, a experiência disto é uma profunda confirmação tanto da Palavra quando da fé” (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 2, (Sl 43.2), p. 276).

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