A riqueza da fecunda graça de Deus e a frutuosidade de uma fé obediente e perseverante (26)

É necessário que entendamos que a doutrina da justificação não é uma fraude, como se Deus considerasse justo o que não é justo, fazendo vista grossa à condição humana de pecado e depravação. Contudo, se não somos justos, como Deus, então, nos declara justos? Nesta doutrina nos deparamos com o absoluto padrão de Deus e a realidade da aplicação de sua justiça. Prossigamos.

 

O Antigo Testamento refere-se ao Messias que viria como aquele que agiria com justiça. O Novo Testamento atesta a realidade do cumprimento histórico do que fora dito. No Antigo Testamento lemos as profecias messiânicas:

 

Para que se aumente o seu governo e venha paz sem fim sobre o trono de Davi e sobre o seu reino, para o estabelecer e o firmar mediante o juízo e a justiça (hq’d’c.) (tsedaqah) desde agora e para sempre. O zelo do Senhor dos exércitos fará isto (Is 9.7).

Alegra-te muito, ó filha de Sião; exulta, ó filha de Jerusalém: eis aí te vem o teu Rei, justo (qyDIc;)(tsadiyq) e salvador, humilde, montado em jumento, num jumentinho, cria de jumenta (Zc 9.9).

 

No Novo Testamento, na iminência da condenação de Jesus, a mulher de Pilatos, Cláudia Prócula,[1] manda um recado ao seu marido: “…. Não te envolvas com esse justo (di/kaioj); porque hoje, em sonho, muito sofri por seu respeito” (Mt 27.19). Ao presenciar o modo como morreu nosso Senhor, um centurião, glorificando a Deus, exclamou: “Verdadeiramente, este homem era justo (di/kaioj) (Lc 23.47).

 

Após a morte, ressurreição e ascensão de Jesus, Pedro, no seu discurso diante dos judeus, demonstra que eles escolheram libertar um criminoso (Barrabás) ao invés de Jesus Cristo, contra quem não havia acusação real passível de qualquer condenação judicial: “Vós, porém, negastes o Santo e o Justo (di/kaioj), e pedistes que vos concedessem um homicida” (At 3.14).

 

Anos mais tarde, na sua primeira Epistola, Pedro escreveria: “Cristo morreu, uma única vez, pelos pecados, o justo (di/kaioj) pelos injustos (a)/dikoj = “ímpio”, “desonesto”[2]) (1Pe 3.18).

 

As Escrituras nos ensinam que Jesus Cristo, a nossa justiça, é a própria justiça de Deus, e que o seu ministério consistiu em cumprir a obra que o Pai lhe confiara, em favor de todo o seu povo (Jo 17.4). A sua obra foi realizada retamente, em harmonia com o “Conselho da Trindade” (Ef 1.11). Por isso, o escritor da Carta aos Hebreus pôde dizer: “Porque não temos sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas, antes foi ele tentado em todas as cousas, à nossa semelhança, mas sem pecado” (Hb 4.15).

 

John Murray (1898-1974) diz corretamente que:

 

     A única justiça concebível que satisfará as necessidades da nossa situação como pecadores e que satisfará as exigências de uma plena e irrevogável justificação é a justiça de Cristo. Esta afirmação implica a sua obediência e, portanto, a sua encarnação, morte e ressurreição. Em uma palavra, a necessidade da expiação é inerente e essencial à justificação. Uma salvação do pecado que é divorciada da justificação é uma impossibilidade, e a justificação de pecadores sem a justiça divina do Redentor é inconcebível.[3]

 

A santidade absoluta de Deus se revela na cruz onde o seu amor e a sua justiça se evidenciam de forma eloquente e perfeita.[4] A cruz enfatiza o Deus santo e majestoso, zeloso por sua glória.[5] A cruz não fez Deus nos amar, antes, o seu amor por nós a produziu e se revelou ali.[6]

 

Enquanto para nós as circunstâncias servem de pretexto para os nossos atos pecaminosos e os posteriores atenuantes, para Deus, ditas circunstâncias estão totalmente sob o seu total domínio: ele também é o Senhor das circunstâncias. Elas, sob à direção de Deus oportunizam a manifestação do que Ele é em sua essência.

 

O pecado não tornou Deus misericordioso, santo ou justo, Ele é eternamente misericordioso, santo e justo. No entanto, o pecado propiciou a Deus, por sua livre graça, revelar-se desta forma para conosco. [7] Na cruz vemos a manifestação gloriosa dos atributos de Deus. “A justiça e o amor se encontraram e se abraçaram. Os santos atributos de Deus são glorificados juntamente na morte do Filho de Deus na cruz”.[8] A nossa dívida foi paga. Nada ficou pendente. Cristo satisfez completamente as santas e justas exigências do Pai. Tudo foi pago pela graça e com justiça. A Trindade nos justifica (At 13.39; Rm 8.30,33; 1Co 6.11).

 

Desse modo, a justiça de Deus não nos condena porque Deus mesmo nos revestiu com a justiça de Cristo.[9] Não haveria para nenhum de nós salvação de nossos pecados sem a justificação. Da mesma forma, existe a justificação porque Jesus Cristo é a nossa justiça.  Ele mesmo quem nos redime (1Co 1.30).[10] Como escreveu Lloyd-Jones (1899-1981):

 

Se lhes fosse solicitado responder onde a Bíblia ensina a santidade de Deus mais poderosamente teriam de ir ao Calvário. Deus é tão santo, tão plenamente santo, que nada senão aquela morte terrível poderia tornar possível que Ele nos perdoasse. A cruz é a suprema e a mais sublime declaração e revelação da santidade de Deus.[11]

 

Na cruz temos a reconciliação do santo com o pecador, do perfeitamente justo com o totalmente injusto, do infinito com o finito; do Deus eterno com o homem temporal: “A cruz é o centro da história e a reconciliação de todas as antíteses”.[12] Isaías diz que “Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas; cada um se desviava pelo caminho, mas o SENHOR fez cair sobre ele [Jesus Cristo] a iniquidade de nós todos” (Is 53.6).

 

De acordo com as Escrituras, ou somos justificados por Cristo por meio da fé, ou estamos definitivamente condenados. A ilusão humana fruto do seu pecado é achar que não tem pecado, ou que pode por seus próprios merecimentos apresentar-se diante de Deus.[13] Na realidade, não há meio-termo; não há síntese entre nossas supostas obras e a fé em Cristo. Não há meia-justiça. Ou é tudo, ou é nada. Para a Teologia Reformada, a justificação é totalmente pela graça, mediante a fé, ou seja, por Cristo Jesus.[14]

 

São Francisco do Sul, 10 de março de 2019.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 

*Este post faz parte de uma série. Acesse aqui a série completa

 


[1] Que segundo a tradição, se tornaria cristã.

[2] a)dikoj * Mt 5.45; Lc 16.10,11; 18.11; At 24.15; Rm 3.5; 1Co 6.1,9; Hb 6.10; 1Pe 3.18; 2Pe 2.9.

[3] John Murray, Redenção: Consumada e Aplicada, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1993, p. 19.

[4] “A cruz e a coroa revelam não apenas as virtudes do Filho, mas também do Pai. Todos os atributos divinos alcançam plena expressão aqui. Dentre todas elas, uma sobressai: a justiça do Pai. Se Ele não tivesse sido justo, certamente não teria entregue Seu Filho Unigênito. E também, se não fosse justo, Ele não teria recompensado o Filho por Seu sofrimento. Mais, por meio dos louvores da multidão salva, o Pai (bem como o Filho) é glorificado” (William Hendriksen, O Evangelho de João, São Paulo: Cultura Cristã, 2004 (Jo 17.1), p. 754). “A cruz se levanta como testemunho da infinita dignidade de Deus e o infinito ultraje do pecado” (John Piper, A Supremacia de Deus na Pregação, São Paulo: Shedd Publicações, 2003, p. 31).

[5] “A justiça de Deus é o zelo resoluto pela exaltação de Sua glória” (John Piper, A Supremacia de Deus na Pregação, São Paulo: Shedd Publicações, 2003, p. 27).

[6]Veja-se: D.M. Lloyd-Jones, Deus o Pai, Deus o Filho, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1997 (Grandes Doutrinas Bíblicas, v. 1), p. 426.

[7] Watson (c. 1620-1686) disse que “A justificação é uma misericórdia provinda das entranhas da livre graça. Deus não nos justifica porque temos valor, mas ao nos justificar nos faz de grande valor” (Thomas Watson, A Fé Cristã, estudos baseados no breve catecismo de Westminster, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 264).

[8] David Martyn Lloyd-Jones, Uma Nação sob a Ira de Deus: estudos em Isaías 5, 2. ed. Rio de Janeiro: Textus, 2004, p. 222.

[9]Veja-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 4, p. 179.

[10]Ver: John Murray, Redenção: Consumada e Aplicada, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1993, p. 19.

[11] D. M. Lloyd-Jones, Deus o Pai, Deus o Filho, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1997, p. 97. “A santidade e a retidão do Seu ser eterno e do Seu caráter significam que Ele não pode ignorar o pecado. O pecado é uma realidade, um problema (…) até para Deus. É uma coisa que Ele vê e da qual tem que tratar, e assim manifesta a glória do Seu ser em Sua santidade e justiça” (D.M Lloyd-Jones, Salvos desde a Eternidade, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2005 (Certeza Espiritual: v. 1), p. 51).

[12]Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara D’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 48.

[13] “A ilusão mais perigosa de todas é o farisaísmo. Essa é a verdadeira barreira a Jesus Cristo. Toda a rejeição da graça de Deus toma essa forma. Aqueles que recusam o perdão gratuito de Deus por meio de Cristo fazem assim porque acham que não precisam desse perdão. Eles não admitem que são pecadores. Eles negam que estejam desesperadamente perdidos” (Gene Edward Veith, Jr, De Todo o Teu Entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 79).

[14]Veja-se: João Calvino, Gálatas, São Paulo: Paracletos, 1998, (Gl 2.15-16), p. 68-71.

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