A Pessoa e Obra do Espírito Santo (258)

6.4.3. As Marcas da Igreja  (Continuação)

Aplicando o que vimos à necessidade de identificar a verdadeira igreja de Cristo, vemos tal disposição de forma clara na obra Commonitorium, de Vicente de Lérins († 450 AD), escrita em 434. O autor, revelando a sua preocupação e, ao mesmo tempo, a sua metodologia:

Eis por que dediquei, constantemente, meus maiores desvelos e minhas diligências a investigar, entre o maior número possível de homens eminentes em saber e santidade, a maneira de achar uma norma de princípios fixos e, se possível, gerais e orientadores, para distinguir a verdadeira fé católica das degradantes corruptelas da heresia….[1]

A resposta encontrada por Léris foi que os fiéis devem adornar a sua fé com a Lei e a tradição da igreja católica.

Surgem, então, as questões:

Onde buscar a fonte da autoridade para identificar a genuína Igreja?

Na própria Igreja?

Na tradição da Igreja?

Para que isso fosse possível, seria necessário que a Igreja tivesse a sua autoridade autogerada ou delegada por quem de direito. Neste caso, pelo próprio Senhor Jesus Cristo. Portanto, se assim fosse, a igreja apenas indicaria as suas “virtudes” distintivas. Neste caso ela estaria no mesmo nível ou, acima da Palavra. Biblicamente nenhuma das opções se mantêm.

Cânon bíblico foi reconhecido, não estabelecido

          A compreensão de que o cânon não foi estabelecido pela igreja – mas, como tratamos, foi apenas reconhecido –, é um fator decisivo na percepção da supremacia da Palavra sobre a igreja.

O que para a igreja romana significou a demonstração da autoridade infalível da igreja, para nós protestantes, foi uma concretização da providência de Deus fazendo parte do que já estudamos sobre o Espírito e as Escrituras.[2] A teologia católica sustenta a “teoria da fonte dupla”,[3] nivelando a tradição à Palavra. Para nós protestantes, a única autoridade absoluta é a Palavra. Nada pode ser nivelado à sua autoridade infalível.

Assim,  conforme já dissemos,  reconhecemos o Terceiro Concílio de Cartago (397) como a data da oficialização da prática eclesiástica, não como um marco iniciador de um processo surgido na mente de alguns homens. O cânon eclesiástico jamais poderia ter sido imposto. Ele dependeria, no mínimo, da aceitação majoritária da Igreja para que pudesse prevalecer, como de fato prevaleceu.

          De fato, a Igreja não criou os livros do cânon nem os conferiu autoridade;[4] apenas deu testemunho de uma verdade há muito amplamente partilhada pelos cristãos. Nesse sentido, o Espírito conduziu o seu povo à verdade! [5]

  Para a teologia católica, conforme o Concílio Vaticano I (1869-1870), que considera a igreja como “a guardiã e mestra da palavra revelada”[6], está acima das Escrituras. Portanto, estas não poderiam estabelecer o padrão de suas marcas.

Deste modo, a igreja é que vai dizer como ser identificada. Isso faz sentido, já que para a teologia romana não existe um padrão externo ao qual a igreja tenha que se identificar ou ser avaliada.[7]

          No entanto, para nós protestantes – como temos enfatizado –, a autoridade da Igreja é extrínseca e, portanto, derivada. Jesus Cristo é o Senhor e Cabeça da Igreja. Portanto, cabe a Ele governá-la. Ele nos concedeu a sua Palavra. É por meio desta Palavra que a igreja se organiza, elabora suas doutrinas e orienta a sua vida.

Portanto, se queremos saber como identificar a verdadeira igreja, temos que buscar nas Escrituras do Senhor esta orientação como tudo o mais que diz respeito à nossa fé e prática.[8]

Calvino resume: “Devemos estar sujeitos unicamente a Cristo. Ele deve ser nossa única Cabeça.[9] Não devemos desviar-nos sequer um fio de cabelo da doutrina simples do evangelho; tão somente ele deve possuir a mais elevada glória, para que retenha o direito e a autoridade de ser nosso Noivo”.[10]

Maringá, 09 de agosto de 2021.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] Vicente de Lérins, Commonitorium, II.4. In: Philip Schaff; Henry Wace, eds. A Select Library of Nicene And Post-Nicene Fathers of The Christian Church, (Second Series), Grand Rapids, Michigan: Wm. Eerdmans Publishing House Co.,1978, v. 11, p. 132. Enquanto terminava estas anotações chegou-me às mãos a obra de Lérins que descobri esses dias que já estava traduzida para português há muitos anos: São Vicente de Lérins,  Comonitório: regras para conhecer a fé verdadeira, Niterói, RJ.: Editora Permanência, 2009. (O texto por mim traduzido citado acima, na edição em português está na página 16).

[2]“A fórmula católica romana diz que temos os livros corretos porque a igreja é infalível e qualquer coisa que a igreja decide é uma decisão infalível. No entendimento católico romano, a formação do cânon se fundamenta na autoridade da igreja, enquanto no entendimento protestante ele se fundamenta na providência de Deus” (R.C. Sproul, Somos todos teólogos: uma introdução à teologia, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2017, p. 67).

[3] O Concílio Vaticano II (1962-1965), ratificou um ensinamento fundamental da teologia católica: “A Igreja sempre venerou as divinas Escrituras (…). Sempre as teve e tem, juntamente com a Tradição, como a suprema regra de sua fé….” (Frei Frederico Vier, Coord. Ger. Compêndios do vaticano II, 5. ed. Petrópolis, RJ.: Vozes,  © 1968, 1971, § 192, p. 135).

[4]“A igreja, porém, não fez com que o cânon ou mesmo um só livro fosse inspirado, mas apenas reconheceu e confessou aquilo que, há muito tempo, tinha sido estabelecido e tinha autoridade como um escrito canônico na igreja” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 1, p. 428).

[5] F. F. Bruce, Merece Confiança o Novo Testamento?, São Paulo: Junta Editorial Cristã, 1965, p. 29, 36. F. F. Bruce, The New Testament Documents, London: The Inter-Varsity Fellowship, 1966, p. 27); B.D. Hale, Introdução ao Estudo do Novo Testamento, Rio de Janeiro: JUERP., 1983, p. 34; E.F. Harrison, Introducción al Nuevo Testamento, Grand Rapids, Michigan: Subcomision Literatura Cristiana, 1980, p. 104. Ver também, Ibidem, p. 108; B. M. Metzger, The New Testament: its Background, Growth, and Content, 2. ed. (enlarged), Nashiville: Abingdon Press, 1992, p. 276; Oscar Cullmann,  A Formação do Novo Testamento, São Leopoldo, RS.: Sinodal, 1979, p. 115; John R.W Stott,  Eu Creio na Pregação, São Paulo: Editora Vida, 2003, p. 105; M. C. Tenney, O Novo Testamento: Sua Origem e Análise, 2. ed.  São Paulo: Vida Nova, 1972,  p. 438 e 440.

[6] Concílio Vaticano I, Sessão III.10 de 24.04.1870). In: Norman P. Tanner, SJ., org. Decrees of the Ecumenical Councils,  Londres; Washington: Sheed & Ward; Georgetown University Press, 1990, v. 2, p. 807. (https://www.documentacatholicaomnia.eu/03d/1869-1869,_Concilium_Vaticanum_I,_Documenta_Omnia,_EN.pdf) (Consultado em 06.08.21). Da mesma forma o documento pode ser também encontrado em: P. Schaff, The Creeds of Christendom, 6. ed. (Revised and Enlarged), Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1998 (Reprinted), v. 2, [p. 234-271], p. 245.

[7]Veja-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada − Espírito Santo, Igreja e nova criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 4, p. 312.

[8] Vejam-se, por exemplo: James Bannerman, A Igreja de Cristo – Um tratado sobre a natureza, poderes, ordenanças, disciplina e governo da Igreja Cristã, Recife, PE.: Editora os Puritanos, 2014, p. 73-74 e 427; João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1,  (Jo 3.29), p. 143; João Calvino, Gálatas,São Paulo: Paracletos, 1998, (Gl 1.1), p. 22; João Calvino, As Pastorais,São Paulo: Paracletos, 1998 (Tt 1.9), p. 313. “Uma das partes principais da astúcia e sutileza do diabo é tentar mudar a minha autoridade. (…) Na Bíblia, e somente na Bíblia está a genuína autoridade; as teorias vêm e passam, mas a verdade bíblica prossegue indestrutível.” (D.M. Lloyd-Jones, O Combate Cristão, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1991, p. 150,151).

[9] Veja-se, por exemplo, esta mesma linha de argumentação em Agostinho na sua epístola contra os Donatistas. No entanto, Agostinho segue a linha de que a igreja da igreja invisível, conhecida apenas por Cristo (2Tm 2.19).(St. Agostinho, Ad Catholicos Epistola Contra Donatistas Vulgo De Unitate Ecclesiae, Liber Unus, 2.2. In: J.P. Migne, Patrologiae Latinae Cursus Completus, 1844-1864, v. 43, Col. 392).

[10]João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, (Jo 3.29), p. 144.

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