A Pessoa e Obra do Espírito Santo (353)

6.4.8.3.4. Unidade não existe em detrimento da verdade (Continuação)

Calvino, por sua vez, nos aconselha: “Recordemos sempre, quando o diabo nos empurrar para as controvérsias, que as desavenças dos membros, no seio da Igreja, não nos levam a parte alguma, senão para a ruína e destruição de todo o corpo”.[1]

Como os jovens são mais irritáveis, segue uma orientação mais específica:

Os jovens, em meio às controvérsias, se irritam muito mais depressa do que os de mais idade; se iram mais facilmente, cometem mais equívocos por falta de experiência e se precipitam com mais ousadia e temeridade. Daí ter Paulo boas razões para aconselhar a um jovem a precaver-se contra os erros próprios de sua idade, os quais, de outra forma, poderiam facilmente envolvê-lo em disputas inúteis.[2]

Após argumentar contra aqueles que chamavam os reformados de hereges, ressalta que a unidade cristã deve ser na Palavra:

Com efeito, também isto é de notar-se: que esta conjunção de amor assim depende da unidade de fé que lhe deva ser esta o início, o fim, a regra única, afinal. Lembremo-nos, portanto, quantas vezes se nos recomenda a unidade eclesiástica, isto ser requerido: que, enquanto nossas mentes têm o mesmo sentir em Cristo, também entre si conjungidas nos hajam sido as vontades em mútua benevolência em Cristo. E, assim, Paulo, quando para com ela nos exorta, por fundamento assume haver um só Deus, uma só fé e um só batismo [Ef 4.5]. De fato, onde quer que nos ensina o Apóstolo a sentir o mesmo e a querer o mesmo, acrescenta imediatamente: em Cristo [Fp 2.1,5] ou: segundo Cristo [Rm 15.5], significando ser conluio de ímpios, não acordo de fiéis a unidade que se processa à parte da Palavra do Senhor.[3]

Em outro lugar, instrui: “A melhor forma de promover a unidade é congregar [o povo] para o ensino comunitário”.[4]

Para os irmãos refugiados em Wezel (Alemanha), que sofriam diversas pressões de luteranos e sobreviviam numa pequena Igreja Reformada, Calvino, em 1554, os consola mostrando que apesar dos grandes problemas pelos quais passava o mundo, Deus lhes havia concedido um lugar onde poderiam adorar a Deus em liberdade. Também os desafia a não abandonarem a Igreja por pequenas divergências nas práticas cerimoniais, sendo tolerantes a fim de preservar a unidade. Contudo, os exorta a jamais fazerem acordos em pontos doutrinários.[5]

Portanto, mesmo desejando a paz e a concórdia, Calvino entendia que essa paz nunca poderia ser em detrimento da verdade, pois, se assim fosse, essa dita paz seria maldita:

Naturalmente, há uma condição para entendermos a natureza desta paz, ou seja, a paz da qual a verdade de Deus é o vínculo. Pois se temos de lutar contra os ensinamentos da impiedade, mesmo se for necessário mover céu e terra, devemos, não obstante, perseverar na luta. Devemos, certamente, fazer que a nossa preocupação primária cuide para que a verdade de Deus seja mantida em qualquer controvérsia; porém, se os incrédulos resistirem, devemos terçar armas contra eles, e não devemos temer sermos responsabilizados pelos distúrbios. Pois a paz, da qual a rebelião contra Deus é o emblema, é algo maldito; enquanto as lutas, indispensáveis à defesa do reino de Cristo, são benditas.[6]

Em 20 de março de 1552, Thomas Cranmer (1489-1556) escreveu a Calvino – bem como a Melanchthon (1497-1560)[7] e a Bullinger (1504-1575)[8] – convidando-o para uma reunião no Palácio de Lambeth[9] com o objetivo de preparar um credo que fosse consensual para as Igrejas Reformadas.[10] Cranmer tinha em vista também, a realização do Concílio de Trento[11] que estava em andamento, estando preocupado de modo especial com a questão da Ceia do Senhor.

Em 1552, Calvino escreve ao Arcebispo de Canterbury, Thomas Cranmer (1489-1556), que em 1549 havia elaborado o Livro de Oração Comum, no qual dava ênfase ao culto em inglês, à leitura da Palavra de Deus e, ao aspecto congregacional da adoração cristã: “Estando os membros da Igreja divididos, o corpo sangra. Isso me preocupa tanto que, se pudesse fazer algo, eu não me recusaria a cruzar até dez mares, se necessário fosse, por essa causa”.[12]

O próprio Cranmer compôs no Livro de Oração Comum, uma oração para o culto anual anglicano, quando se comemorava a coroação do monarca. A oração diz:

Ó Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, nosso único Salvador, o Príncipe da Paz: Dá-nos a graça para com seriedade nos compenetrarmos dos grandes perigos em que nos encontramos por causa de nossas lamentáveis divisões, retira todo o ódio e preconceito e tudo o mais que possa impedir-nos de ter uma união e concórdia piedosas; para que, como existe somente um só corpo e um só Espírito e uma só esperança de nossa vocação, um só Senhor, uma só fé, um só batismo, um só Deus e Pai de todos nós, assim possamos de agora em diante ser todos de um só coração, de uma só alma, unidos em um único e santo vínculo de verdade e paz, de fé e caridade, e possamos de uma só mente e com uma só boca glorificar-te: por meio de Jesus Cristo, nosso Senhor. Amém.[13]

Calvino, por experiência própria, sabia o quão difícil é doutrinar uma igreja e, quantos anos são necessários para fazer este serviço ainda que de modo imperfeito:

A edificação de uma igreja não é uma tarefa tão fácil que se torne possível fazer com que tudo seja imediata e perfeitamente completado. (…) Hoje sabemos pela própria experiência que o que se requer não é o labor de um ou dois anos para levantar as igrejas caídas a uma condição mais ou menos funcional. Aqueles que têm alcançado diligente progresso por muitos anos devem ainda preocupar-se em corrigir muitas coisas.[14]

O nosso conforto é que é o Espírito mesmo quem edifica a sua Igreja por intermédio da sua Palavra, cabendo a nós a responsabilidade de transmiti-la com fidelidade.

MacArthur discorrendo sobre o abandono da crença da verdade e a preocupação da Igreja na presente época em agir de forma politicamente correta, acrescenta:

Até mesmo os erros grosseiros são agora totalmente toleráveis em alguns ambientes em nome de preservar a paz. Em lugar de manejar bem a Palavra da verdade e proclamá-la como verdadeira, muitas igrejas agora apresentam palestras, dramas, comédias e outras formas de entretenimento motivacionais – enquanto ignoram as grandes doutrinas da fé.[15]

Maringá, 26 de novembro de 2021.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]João Calvino, Gálatas,São Paulo: Paracletos, 1998, (Gl 5.15), p. 165. “Aqueles que são imoderadamente severos e mal-humorados levam consigo aquele fogo maligno que inflama as controvérsias” (João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (Tt 3.2), p. 342).

[2] João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (2Tm 2.22), p. 244.

[3]João Calvino, As Institutas,IV.2.5. Calvino entendia que “onde os homens amam a disputa, estejamos plenamente certos de que Deus não está reinando ali” (J. Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 14.33), p. 436). George comenta com acerto, que “Calvino não estava disposto a comprometer pontos essenciais em favor de uma paz falsa, mas ele tentou chamar a igreja de volta à verdadeira base de sua unidade em Jesus Cristo” (Timothy George, Teologia dos Reformadores,São Paulo: Vida Nova, 1993, p. 182-183).

[4] João Calvino, Efésios,(Ef 4.12), p. 125.

[5]John Calvin, To the Brethren of Wezel, “Letter,” John Calvin Collection,(CD-ROM), (Albany, OR: Ages Software, 1998), nº 346, p. 32-34.

[6] J. Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 14.33), p. 437.

[7]Melanchthon mesmo sendo luterano, e amigo pessoal de Lutero, desfrutou também de boa amizade com Calvino, mantendo com este ampla correspondência. Nos dizeres de Schaff (1819-1893), Melanchthon “permaneceu como um homem de paz entre dois homens de guerra” (Philip Schaff,History of the Christian Church,Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1996, v. 8, p. 260). O seu principal trabalho teológico foi Loci Communes (abril de 1521). Este tratado foi a primeira obra de teologia sistemática protestante do período da Reforma, marcando época portanto, na história da teologia. Nele Melanchthon segue a ordem da Epístola aos Romanos. (Ver: Philip Schaff, History of the Christian Church,Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1996, v. 7, p. 368-370).

[8]Bullinger foi amigo, discípulo e sucessor de Zuínglio (1484-1531), tendo escrito cerca de 150 obras, entre elas,A Segunda Confissão Helvética (1562-1566).

[9]Residência oficial do Arcebispo de Cantuária em Londres.

[10]Cranmer, na carta a Calvino diz: “Como nada mais tende a separar as Igrejas de Deus que as heresias e diferenças sobre as doutrinas de religião, assim nada mais eficazmente os une, e fortalece a obra de Cristo mais poderosamente, que a doutrina incorrupta do evangelho, e união em opiniões reconhecidas. Eu tenho frequentemente desejado, e agora desejo que esses homens instruídos e piedosos que superam outros em erudição e julgamento, constituíssem uma assembleia em um lugar conveniente, onde se realizasse uma consulta mútua, e comparando as suas opiniões, eles poderiam discutir todas as principais doutrinas da igreja…. Nossos adversários estão agora organizando o seu concílio em Trento, no qual eles podem estabelecer os seus erros. E devemos nós negligenciar convocar um sínodo piedoso que nos possibilite refutar os erros deles, e purificar e propagar a verdadeira doutrina?” (Thomas Cranmer to Calvin, “Letter,” John Calvin Collection,(CD-ROM), (Albany, OR: Ages Software, 1998), 16).

[11]Cranmer era teólogo e estadista; a sua preocupação com Trento era pertinente e a história já demonstrou amplamente esse fato.

Os jesuítas foram a força motriz do Concílio de Trento, sendo de fato os teólogos do Papa. Como os bispos geralmente não dispunham de grande conhecimento teológico (Vinham da nobreza com cargos comprados ou impostos (Cf. Aliste McGrath, Origens Intelectuais da Reforma, São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 23-24), mesmo titulados em Direito Canônico, eles se valiam de teólogos – em geral pertencentes às ordens religiosas –, que os assessoravam, sendo alguns teólogos enviados diretamente pelo Papa. É nessa condição, de modo especial, que destacam-se os jesuítas, entre eles, Diego Lainez (1512-1565), Afonso Salmerón (1515-1585) – estes dois sugeridos por Loyola –, Claude Le Jay (1504-1552), Pedro Canísio (1521-1597) e Otto von Truchsess (1514-1573), que passaram, alguns deles, a desempenhar no Concílio um “papel teológico de primeira linha” (Marc Venard, O Concílio Lateranense V e o Tridentino. In: Giuseppe Alberigo, org. História dos Concílios Ecumênicos,São Paulo: Paulus, 1995, p. 332).

[12]Letters of John Calvin, Selected from the Bonnet Edition, Edinburgh: The Banner of Truth Trust, 1980, p. 132-133.

[13] Apud Mark A. Noll, Momentos Decisivos na História do Cristianismo, p. 204.

[14] João Calvino, As Pastorais, (Tt 1.5), p. 306.

[15]John MacArthur, Jr., Princípios para uma Cosmovisão bíblica,São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 53.

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