A Pessoa e Obra do Espírito Santo (229)

7. “Sede santos!”: vocação à santidade e a responsabilidade do crente  (Continuação)

Meditação e imaginação

A meditação é centrada em Deus e sua Palavra; não é uma mera meditação introspectiva ou transcendental, mas, centrada em Deus e dirigida por Deus.[1]   Portanto, todo momento e cada circunstância é oportuno para tomar a Palavra como alvo de nossas cogitações.

          Curiosamente, no Salmo 2.1, o verbo “imaginar” (hg’h’) (hãgãh) é o mesmo de “meditar” noSalmo1.2. O verbo que é usado de forma negativa e positiva na Escritura, tem o sentido de murmurar, gemer, meditar, planejar, imaginar.É possível que a Palavra fosse “murmurada”, lida a meia voz durante a sua contínua meditação.[2] Este meditar tinha como objetivo de, por meio da aprendizagem dos mandamentos de Deus,[3] adequar a sua vida aos ensinamentos ali contidos, não apenas um exercício intelectual e sensorial (Js 1.8).

          A questão então, está no que ocupa a nossa mente: em meditar na Palavra ou em imaginar cousas vãs?. Quando a nossa imaginação navega sem rumo pode se alimentar de coisas fúteis, tornando-se instrumento de destruição como, por exemplo, para maquinar planos de vingança e calúnia.

A nossa imaginação mal utilizada poderá criar estruturas mentais que se constituem em pressupostos concretos para o novo elaborar intelectual, nos conduzindo a um comportamento totalmente distante da realidade, cujo fundamento está em nossa imaginação pecaminosa que se alimentou de si mesma construindo um mundo fictício e, pior, destrutivo. Esta “petição de princípio” imaginativa certamente acarretará muita dor e ansiedade e, pior, sem nenhum fundamento concreto.

          Salomão nos instrui quanto ao perigo de invejarmos o ímpio e de desejarmos conviver com ele. Este homem é contagiante em suas maquinações para a violência as quais são verbalizadas para persuadir: “Não tenhas inveja dos homens malignos, nem queiras estar com eles,  2 porque o seu coração maquina (hg’h’) (hãgãh) violência, e os seus lábios falam para o mal” (Pv 24.1-2).

          Davi descrevendo seus inimigos que  se aproveitam de sua fragilidade circunstancial, registra: “Armam ciladas contra mim os que tramam tirar-me a vida; os que me procuram fazer o mal dizem coisas perniciosas e imaginam (hg’h’) (hãgãh) engano todo o dia” (Sl 38.12).

          A imaginação pode ser algo extremamente produtiva e útil quando a colocamos à disposição do serviço de Deus, na realização de projetos condizentes com a Palavra. Isto é válido para qualquer atividade, quer seja na arte, na visão missionária – quer próxima, quer distante –, na elaboração de um livro, no planejamento de nosso mês, na preparação de uma festa, etc. Podemos usar a nossa imaginação para visualizar o que pretendemos fazer e nos alegrar na consecução desses projetos.

          O apóstolo Paulo é um exemplo positivo disso. Ele desejava muito visitar os crentes romanos; orava por aqueles irmãos. Enquanto isso, imaginava quando estivesse com eles, levaria uma mensagem instrutiva  e um compartilhar da fé edificante e confortador.     Por volta do ano 57 A.D., estando em Corinto, escreve:  

Porque Deus, a quem sirvo em meu espírito, no evangelho de seu Filho, é minha testemunha de como incessantemente faço menção de vós 10em todas as minhas orações, suplicando que, nalgum tempo, pela vontadede Deus, se me ofereça boa ocasião de visitar-vos.  11 Porque muito desejo ver-vos, a fim de repartir convosco algum dom espiritual, para que sejais confirmados,  12 isto é, para que, em vossa companhia, reciprocamente nos confortemos por intermédio da fé mútua, vossa e minha. (Rm 1.9-12).

          Nesta ocasião Paulo acredita ter uma boa oportunidade de visitar Roma. Contudo, antes deve passar pela Judéia para levar as ofertas para os santos dali. Sua trajetória seria arriscada visto ter muitos inimigos na região. Ele então pede aos crentes romanos:

30 Rogo-vos, pois, irmãos, por nosso Senhor Jesus Cristo e também pelo amor do Espírito, que luteis juntamente comigo nas orações a Deus a meu favor, 31 para que eu me veja livre dos rebeldes que vivem na Judéia, e que este meu serviço em Jerusalém seja bem aceito pelos santos; 32 a fim de que, ao visitar-vos, pela vontade   de Deus, chegue à vossa presença com alegria e possa recrear-me convosco. (Rm 15.30-32).

A nossa imaginação meditativa tende a moldar o nosso comportamento,[4] reforçando propósitos, enchendo-nos de uma alegre perspectiva de concretização do que cremos ser útil e edificante. Deus diz a Josué diante do desafio de conduzir o povo na terra prometida: “Não cesses de falar deste Livro da Lei; antes, medita (hg’h’) (hãgãh) nele dia e noite, para que tenhas cuidado de fazer segundo tudo quanto nele está escrito; então, farás prosperar o teu caminho e serás bem-sucedido” (Js 1.8).

          O meditar na Palavra e nos atos de Deus é uma prática abençoadora pelo fato de ocupar nossas mentes e corações com o que realmente importa; estimula a nossa gratidão e perseverança em meio às angústias.[5] Isto nos traz grande alívio.

          Davi no deserto se confortava meditando nos feitos de Deus: “No meu leito, quando de ti me recordo e em ti medito (hg’h’) (hãgãh), durante a vigília da noite. Porque tu me tens sido auxílio; à sombra das tuas asas, eu canto jubiloso” (Sl 63.6-7/Sl 77.11-12; 143.5).

          Meditar na Palavra tem o sentido de considerá-la em nossas decisões, refletir sobre os seus ensinamentos. A meditação deve modelar, corrigir e confirmar o nosso comportamento. A meditação aqui é uma exortação à assimilação existencial da Palavra a fim de que esta se evidencie em nossa prática.

          Comênio (1592-1670) avalia:

A meditação é a consideração frequente, atenta e devota das obras, das palavras e dos benefícios de Deus, e de como tudo provém de Deus (que opera ou permite) e de como, por caminhos maravilhosos, todos os desígnios da vontade divina são exatamente realizados.[6]

          A palavra “meditar”, em sua origem latina, significa, entre outras coisas, “preparar para a ação”. Desta forma, a meditação não tem um fim em si mesma, mas, sim, visa conduzir o nosso agir e o nosso realizar.[7]

          A prática do meditar na Palavra nos confere maior discernimento e ao prazer de obedecer a Deus e de partilhar de seus ensinamentos. Vejam os testemunhos inspirados descritos por servos de Deus:

Quanto amo a Tua lei! É a minha meditação (hx’yf) (Sihãh) (considerar, perscrutar, cogitar) todo o dia. (Sl 119.97). 
Compreendo mais do que todos os meus mestres, porque medito  (hx’yf) (Sihãh) nos teus testemunhos. (Sl 119.99).

     O Salmista narrando a sua prática prazerosa, diz: Meditarei  (x;yfi) (Siha) nos teus preceitos, e às tuas veredas terei respeito” (Sl 119.15/Sl 119.27,48,78,148).

Maringá, 01 de julho de 2021.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] Veja-se: Bruce K. Waltke; James M. Houston; Erica Moore, The Psalms as Christian Worship: A Historical Commentary,  Grand Rapids, MI.: Eerdmans, 2010, (Sl 1.2), p. 139.

[2] Vejam-se: Mark D. Futato, Interpretação dos Salmos, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, p. 55-56; Hebert Wolf, Hagâ: In:  R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento,São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 337; Willem A. VanGemeren,  Psalms. In: Frank E. Gaebelein, ed. ger., The Expositor’s Bible Commentary, Grand Rapids, Michigan: Zondervan,  1991, v.  5, (Sl 1), p. 55; M.V. Van Pelt; W.C. Kaiser, Jr., Hgh: In: Willem A. VanGemeren, org., Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v.  1, p. 981-982; Helmer Ringgren; A. Negoitã, Haghah: In: G. Johannes Botterweck; Helmer Ringgren; Heinz-Josef Fabry, eds., Theological Dictionary of the Old Testament, Grand Rapids, MI.: Eerdamans, 1978, v. 3, p. 321-324.

[3]“A aprendizagem é o processo mediante o qual a experiência passada do amor de Deus é traduzida, pelos aprendizes, em obediência à Torá de Deus” (D. Müller, Discípulo: In: Colin Brown, ed. ger. Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento,São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 1, p. 662).

[4]“O coração do justo medita (hg’h’) (hãgãh) o que há de responder, mas a boca dos perversos transborda maldades” (Pv 15.28).

[5]“Quando formos premidos pela adversidade, ou envolvidos em profundas aflições, meditemos nas promessas de Deus, nas quais a esperança de salvação nos é demonstrada, de modo que, usando este escudo como nossa defesa, rompamos todas as tentações que nos assaltam” (João Calvino, O Livro dos Salmos,  v.  1, (Sl 4), p. 89).

[6]João Amós Coménio,Didáctica Magna, 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, (1985), XXIV.7. p. 355.

[7]Packer assim define: “Meditação é o ato de trazer à mente as várias coisas que se conhecem sobre as atividades, os modos, os propósitos e as promessas de Deus; pensar em tudo isso, refletir sobre essas coisas e aplicá-las à própria vida”(J.I. Packer,  O Conhecimento de Deus,  São Paulo: Mundo Cristão, 1980, p. 15).

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