A Pessoa e Obra do Espírito Santo (157)

6.3.2.2. O privilégio e a responsabilidade dos que pregam (continuação)

Cito aqui um fato bastante conhecido que ilustra bem a seriedade de Calvino para com o culto e a pregação da Palavra.

          Por insistente pedido dos magistrados Calvino volta de Estrasburgo para Genebra (13.09.1541). Era uma manhã de terça-feira.

          A semana passa rapidamente. Há muito que fazer. São 18 de setembro de 1541, domingo cedo. Muitos entre o povo estão excitados. Calvino, querido por grande parte e indesejado por outros, vai pregar pela manhã. Momento de expectativa. O que dirá? O próprio Calvino narraria o acontecido, meses depois (janeiro de 1542), em carta a um amigo, demonstrando a sua prática de lactio continua:[1]

Quando preguei, todos estavam muito alertas e ansiosos. Mas, omitindo completamente qualquer menção daqueles assuntos sobre os quais eles com certeza esperavam ouvir, dei uma breve explicação sobre nosso ofício. Depois acrescentei uma modesta recomendação de nossa fé e integridade. Após esse prefácio, tomei a exposição de onde havia parado – gesto pelo qual indiquei que havia interrompido o meu ofício de pregar apenas por um tempo em vez de ter desistido completamente.[2]

Um estudioso da vida e pensamento de Calvino, William Wileman (1848-1944), escreveu: “Como expositor da Escritura, a Palavra de Deus era tão sagrada para ele como se a tivesse ouvido dos lábios de seu Autor”.[3]

          Lutero (1483-1546) em certa ocasião disse: “Eu prego como se Cristo tivesse sido crucificado ontem, ressuscitado dos mortos hoje e estivesse voltando ao mundo amanhã”.[4]  Ele acentuou que “Não há tesouro mais precioso nem coisa mais nobre na terra e nesta vida do que um verdadeiro e fiel pastor ou pregador”.[5]

          Karl Barth (1886-1968), independentemente da divergência que temos em muitos de seus pensamentos, nos exorta corretamente: “Para ser positiva, a pregação deve ser uma explicação da Escritura”.[6]

Em outro lugar:

Aquele que deseja pregar deve estudar mui atentamente seu texto. Em vez de atenção, seria melhor dizer “zelo”, ou seja, esforço de aplicação para descobrir o que se diz neste texto que está aí diante de seus olhos. Para isso é necessário um trabalho exegético, científico. Porque a Bíblia é também um documento histórico; nasceu em meio da vida dos homens.[7]

Não precisamos inventar a mensagem. Por graça, nós conhecemos a Deus e experimentamos o seu conteúdo da Palavra, do qual somos beneficiários; afinal, Deus operou e tem operado maravilhas em nossa vida.

O pregador é o primeiro a usufruir dos benefícios do que prega. Antes de proclamar a Palavra, ele tem sido instruído, confrontado, desafiado e consolado enquanto, dirigido pelo Espírito, elabora o seu sermão.[8]

A pergunta de extrema relevância para todos aqueles que estudam as Escrituras com sinceridade: “O que este texto significa para mim?”,[9] deve ser a pergunta do pregador a si mesmo, humildemente diante do texto em submissão ao Espírito.

          Osborne nos chama a atenção para o aspecto devocional na elaboração do sermão:

A preparação de sermões deve ser um exercício devocional (um encontro em primeira pessoa) antes de se tornar um evento de proclamação (um encontro em segunda pessoa). Os pregadores devem continuamente se colocar diante do texto em vez de meramente se colocar por trás do texto para aplicá-lo a essa ou aquela situação na igreja.[10]

Dentro de uma abordagem mais ampla, toda a igreja tem experimentado a essência da mensagem que proclama, afinal, fomos tirados das trevas para a luz, como escreve Pedro:

9 Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim de proclamardes as virtudes daquele que vos chamou (kale/w)das trevas para a sua maravilhosa luz; 10 vós, sim, que, antes, não éreis povo, mas, agora, sois povo de Deus, que não tínheis alcançado misericórdia, mas, agora, alcançastes misericórdia. (1Pe 2.9-10).

A admoestação do grande pregador britânico, antecessor de Lloyd-Jones na Capela de Westminster, Campbell Morgan (1863-1945), é-nos pertinente: “A obra suprema do ministro cristão é a obra da pregação. Este é um dia no qual um de nossos maiores perigos é fazer mil pequenas coisas enquanto ignoramos uma coisa, a pregação”.[11]

Lembremo-nos sempre.  Soberana e poderosamente Deus emprega a sua Palavra como instrumento de nossa salvação e edificação. Do mesmo modo, Ele partilha conosco deste privilégio: sermos agentes humanos na concretização de seu propósito salvador, anunciando o Evangelho. Portanto, não nos detenhamos, antes, preguemos a Palavra com fidelidade, sabedoria, intensidade e submissão.

Maringá, 11 de abril de 2021.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] Não sabemos quem foi o destinatário da carta. Uma possibilidade é que tenha sido o importante geógrafo, matemático, astrônomo e hebraísta alemão que lecionou em Heidelberg e depois em Basileia, Sebastian Münster (1489-1552), antigo aluno de Conrad Pellicanus (1478-1556), um dos tradutores da Bíblia de Zurique (1529).

[2]A.-L. Herminjard, Correspondance des Réformateurs des les pays de langue française, recueillie et publiée avec d’autres lettres relatives a la Réforme, Genève: G. Fischbacher, © 1886, Facsimile Publisher 2017, v. 7, p. 412; I. Calvini. In: Herman J., Selderhuis, ed., Calvini Opera Database 1.0. Netherlands: Instituut voor Reformatieonderzoek, 2005, v. 11, colunas 365-366.

[3]William Wileman, “John Calvin. His Life, His Teaching & Influence,” John Calvin Collection, [CD-ROM], (Albany, OR: Ages Software, 1998), p. 100.

[4]Lutero, Apud: Steven J. Lawson, O tipo de pregação que Deus abençoa, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2013, p. 64.

[5] Martinho Lutero, Uma Prédica Para que se Mandem os Filhos à Escola (1530): In: Martinho Lutero: Obras Selecionadas, São Leopoldo, RS.; Porto Alegre, RS.: Sinodal; Concórdia, 1995, v. 5, p. 336.

[6] Karl Barth, La proclamación del Evangelio, Salamanca: Ediciones Sígueme, 1969,p. 22. Ver também a página 37.

[7] Karl Barth, La proclamación del Evangelio, Salamanca: Ediciones Sígueme, 1969, p. 56-57.

[8] “Até mesmo o sermão deve ser o produto do Espírito Santo” (Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 357).

[9] Quanto à importância dessa pergunta, veja-se: Bryan Chapell, Pregação Cristocêntrica, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002, p. 111.

[10]Grant Osborne, A Espiral Hermenêutica: Uma nova abordagem à interpretação bíblica,São Paulo: Vida Nova, 2009, p. 570.

[11] G. Campbell Morgan, Preaching, London: Marshall, Morgan & Scott, © 1955, 2. impression, 1960, p. 11.

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