A Pessoa e Obra do Espírito Santo (142)

6.4. Um estudo de caso: A Academia de Genebra: missão como vocação (Continuação)

A Academia, portanto, além de um centro intelectual rigoroso, procurando vivenciar, pela graça, a sabedoria de Deus em seus estudos e ensino, era também um grande centro missionário, subordinando todo o saber a Cristo e, partir dele, viver e anunciar o Evangelho a todos os povos.

    No entanto, os recursos eram poucos, as perseguições eram intensas, havia lutas internas e externas a Genebra, além do recrudescimento da vigilância contra o pensamento protestante nas cidades e países de predomínio católico – o  que seria mesmo de se esperar –, questões variadas a se posicionar e, também, não podemos nos esquecer: pastorear o seu rebanho (Pregando,[1] visitando, aconselhando) mais próximo; a igreja de Genebra, trabalho para o qual se sentia muito pequeno.[2]

    Ilustro muito brevemente.

Irmãos perseguidos em Lyon

    Comentando Filipenses, Calvino abre um pouco o seu ardente coração pastoral:

Um dos sinais de um genuíno pastor é que, enquanto se encontrar a grande distância, e se detiver voluntariamente por atividades piedosas, não obstante será atingido por preocupação pelo seu rebanho, e terá saudade dele; e, ao descobrir que suas ovelhas se angustiam por sua causa, ele se preocupará com a tristeza delas.[3]

    Em 7 de julho de 1553, Calvino escreve mais uma carta aos “prisioneiros de Lyon” que aguardavam a sua condenação por terem aderido à Reforma Protestante. Esta ele dirige em especial a dois deles: Denis Peloquin de Blois e Louis de Marsac. A certa altura, diz:

Meus irmãos (…), estejam certos de que Deus, que se manifesta em tempos de necessidade e aperfeiçoa Sua força em nossa fraqueza,  não vos deixará desprovidos daquilo que poderosamente glorificará o Seu nome. (…) E como você sabe, temos resistido firmemente as abominações do Papado, a menos que nós renunciássemos o Filho de Deus,  que nos comprou para Si mesmo pelo precioso preço. Medite, igualmente, naquela glória celestial e imortalidade para as quais nós somos chamados, e é certo  de alcançar pela Cruz –– por infâmia e morte.  De fato, para a razão humana é estranho que os filhos de Deus sejam tão intensamente afligidos, enquanto os ímpios divertem-se em prazeres; porém, ainda mais, que os escravos de Satanás esmaguem-nos sob seus pés, como diríamos, e triunfem sobre nós. Contudo, temos meios de confortar-nos em todas as nossas misérias, buscando aquela solução feliz que está prometida para nós, que Ele não apenas nos libertará mediante Seus anjos, mas pessoalmente enxugará as lágrimas de nossos olhos.[4] E, assim, temos todo o direito de desprezar o orgulho desses pobres homens cegos, que para a própria ruína levantam seu ódio contra o céu; e, apesar de não estar neste momento em suas condições, nem por isso deixamos de lutar junto com vocês em oração, com ansiedade e suave compaixão, como companheiros, percebendo que agradou a nosso Pai celeste, em Sua bondade infinita, unir-nos em um só corpo sob Seu Filho, nossa cabeça. Pelo que eu lhe suplicarei que possa garantir a vocês essa graça; que Ele os conserve sob Sua proteção e lhes dê tal segurança disso que possam estar aptos a desprezar tudo o que é deste mundo. Meus irmãos os saúdam mui afetuosamente, e assim também muitos outros. –– Seu irmão, João Calvino.[5]

    Louis de Marsac, na prisão, responde-lhe:

Senhor e irmão, eu não posso expressar o grande conforto que recebi… da carta que você enviou para meu irmão Denis Peloquin que passou-a a um  de nossos irmãos que estavam numa cela abobadada acima de mim, e leu-a para mim em voz alta, porque eu não pude lê-la por mim mesmo, sendo incapaz de ver qualquer coisa em meu calabouço. Então, eu lhe peço que persevere nos ajudando com semelhante consolação, pois isso nos convida a chorar e orar.[6] 

    Posteriormente, Louis de Marsac, Etienne Gravot de Gyen, e Marsac, primo de Louis serão condenados à morte, sendo queimados: Morreram cantando um hino. Aliás, o canto em meio às chamas tornou-se um testemunho fervoroso da fé calvinista na França.[7]

Relevante encontro do qual não pôde participar

    Em 20 de março de 1552, Thomas Cranmer (1489-1556) escreveu a Calvino – bem como a Melanchthon (1497-1560) e a Bullinger (1504-1575) – convidando-o para uma reunião no Palácio de Lambeth com o objetivo de preparar um credo que fosse consensual para as Igrejas Reformadas.[8] Cranmer tinha em vista também, a realização do Concílio de Trento[9] que estava em andamento, estando preocupado de modo especial com a questão da Ceia do Senhor.

Em 1552, Calvino escreve ao Arcebispo de Canterbury, Thomas Cranmer (1489-1556), que em 1549 havia elaborado o Livro de Oração Comum, no qual dava ênfase ao culto em inglês, à leitura da Palavra de Deus e, ao aspecto congregacional da adoração cristã: “Estando os membros da Igreja divididos, o corpo sangra. Isso me preocupa tanto que, se pudesse fazer algo, eu não me recusaria a cruzar até dez mares, se necessário fosse, por essa causa”.[10]

Consciência da dificuldade em edificar o povo de Deus

    Calvino, por experiência própria, sabia o quão difícil é doutrinar uma igreja e, quantos anos são necessários para fazer este serviço ainda que de modo imperfeito:

A edificação de uma igreja não é uma tarefa tão fácil que se torne possível fazer com que tudo seja imediata e perfeitamente completado. (…) Hoje sabemos pela própria experiência que o que se requer não é o labor de um ou dois anos para levantar as igrejas caídas a uma condição mais ou menos funcional. Aqueles que têm alcançado diligente progresso por muitos anos devem ainda preocupar-se em corrigir muitas coisas.[11]

Doenças, conforto e preparo para a eternidade

    Em 5 de agosto de 1563, Calvino escreve uma carta à Madame de Coligny (Charlotte de Laval) (1530-1568), esposa do Almirante Coligny (1519-1572).

    Em meio a palavras de conforto e estímulo, se reporta às suas próprias enfermidades e aflições, dizendo que elas além de nos humilhar e evidenciar a nossa fraqueza, podem também servir para nos conduzir a colocar nossos olhos na misericórdia de Deus.

As aflições também “servem para nós como remédios para nos purificar das infecções mundanas e remover o que é supérfluo em nós, e, como são mensageiras da morte, devemos aprender a ter um pé levantado para partir quando aprouver a Deus”.[12]  

Severidade do Ministério

    Tinha profunda consciência da responsabilidade do ministério pastoral e da necessidade de ter um coração totalmente devotado a Cristo.

Devemos estar sujeitos unicamente a Cristo. Ele deve ser nossa única Cabeça. Não devemos desviar-nos sequer um fio de cabelo da doutrina simples do evangelho; tão somente ele deve possuir a mais elevada glória, para que retenha o direito e a autoridade de ser nosso Noivo.[13]
Os que arrastam a Igreja após si, e não a Cristo, se fazem culpados de vilmente violar o matrimônio que deveriam ter honrado. E, quanto maior é honra que Cristo nos confere, fazendo-nos guardiãs de sua esposa, tão mais hedionda será nossa falta de fidelidade, se não nos esforçarmos em manter e defender seu direito.[14]
Cristo não chama seus ministros para o ofício docente a fim de que, conquistando a Igreja, reivindiquem domínio sobre ela, mas para que ele faça uso de seus labores fiéis associando-os consigo. A designação de homens sobre a Igreja é uma distinção grande e sublime, para que representem a pessoa do Filho de Deus. Portanto, assemelham-se aos amigos a quem o noivo conduz a seu lado, para que o acompanhem na celebração das bodas. Mas devemos atentar bem para esta distinção, a saber: que os ministros, sendo cônscios de  sua posição, não se apropriem do que pertence exclusivamente ao noivo.[15]

    A despeito desses fatores, a estrutura do pensamento de Calvino tornou-se uma força motriz poderosa para o trabalho missionário.[16]

É o que veremos no próximo post.

Maringá, 26 de março de 2021.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] Estima-se  que  Calvino durante os seus trinta e cinco anos de Ministério – pregando dois sermões por domingo e uma vez por dia em semanas alternadas –  tenha  pregado  mais  de  três mil sermões. “260 sermões por ano”, especula Collinson. (Patrick Collinson, A Reforma, Rio de Janeiro: Objetiva, 2006, p. 115). (Vejam-se: J.H. Leith, A Tradição Reformada: Uma maneira de ser a comunidade cristã,p. 126 e T. George, Teologia dos Reformadores,p. 187).

     Bouwsma calcula que Calvino tenha pregado cerca de 4 mil sermões depois que voltou para Genebra em 1541, pouco mais de 170 sermões por ano; em média, mais de três por semana. (William J. Bouwsma, John Calvin: A Sixteenth-Century Portrait, New York; Oxford: Oxford University Press, 1988, p. 29). Em 11/9/1542, o Conselho decidiu que Calvino aos domingos, não pregasse mais do que um sermão. (Cf. W. Greef, The Writings of John Calvin: An Introductory Guide, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1993, p. 110). Ainda em 1539 (20 de abril), Calvino em carta a Farel revela incidentalmente o quão pesada era a sua rotina diária: preparação de sermões, tradução para o francês da Instituição, cartas para responder, interrupções constantes, etc. (Veja-se: John Calvin, To Farel, “Letters,” John Calvin Collection,[CD-ROM], (Albany, OR: Ages Software, 1998), nº 34).

[2] Veja-se: João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1,  p. 23.

[3]João Calvino, Gálatas-Efésios-Filipenses-Colossenses,  São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2010, (Fp 2.26), p. 434.

[4] Comentando o salmo 56.8, Calvino assim se expressou: “…. Se Deus concede tal honra às lágrimas de seus santos [lembrar-se delas], então pode ele contabilizar cada gota do sangue que eles derramaram. Os tiranos podem queimar sua carne e seus ossos, mas seu sangue continua a clamar em altos brados por vingança; e as eras intervenientes jamais poderão apagar o que foi escrito no registro divino das memórias” (João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 2, (Sl 56.8), p. 501).

[5] John Calvin, To the Prisoners of Lyons, “Letters,” John Calvin Collection,[CD-ROM], nº 320.

[6]In: To the Prisoners of Lyons, “Letters,” John Calvin Collection,[CD-ROM], nº 320. Calvino atendeu à solicitação e, em 22/08/1553, escreveu-lhes novamente (Ver: John Calvin, To Denis Peloquin and Louis de Marsache, “Letters,” John Calvin Collection,[CD-ROM], nº 323).

[7] Vejam-se: John H. Leith, A Tradição Reformada: Uma maneira de ser a comunidade cristã, São Paulo: Pendão Real, 1997, p. 299, 301. Encontramos alguns exemplos significativos em: Charles W. Baird, A Liturgia Reformada: Ensaio histórico, Santa Bárbara D’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 67ss.

[8]  Cranmer, na carta a Calvino diz: “Como nada mais tende a separar as Igrejas de Deus que as heresias e diferenças sobre as doutrinas de religião, assim nada mais eficazmente os une, e fortalece a obra de Cristo mais poderosamente, que a doutrina incorrupta do evangelho, e união em opiniões reconhecidas. Eu tenho frequentemente desejado, e agora desejo que esses homens instruídos e piedosos que superam outros em erudição e julgamento, constituíssem uma assembleia em um lugar conveniente, onde se realizasse uma consulta mútua, e comparando as suas opiniões, eles poderiam discutir todas as principais doutrinas da igreja…. Nossos adversários estão agora organizando o seu concílio em Trento, no qual eles podem estabelecer os seus erros. E devemos nós negligenciar convocar um sínodo piedoso que nos possibilite refutar os erros deles, e purificar e propagar a verdadeira doutrina?” (Thomas Cranmer to Calvin, “Letter,” John Calvin Collection,(CD-ROM), (Albany, OR: Ages Software, 1998), 16).

[9]Cranmer era teólogo e estadista; a sua preocupação com Trento era pertinente e a história já demonstrou amplamente esse fato.

Os jesuítas foram a força motriz do Concílio de Trento, sendo de fato os teólogos do Papa. Como os bispos geralmente não dispunham de grande conhecimento teológico, mesmo titulados em Direito Canônico, eles se valiam de teólogos – em geral pertencentes às ordens religiosas –, que os assessoravam, sendo alguns teólogos enviados diretamente pelo Papa. É nessa condição, de modo especial, que destacam-se os jesuítas, entre eles, Diego Lainez (1512-1565), Afonso Salmerón (1515-1585) – estes dois sugeridos por Loyola –, Claude Le Jay (1504-1552), Pedro Canísio (1521-1597) e Otto von Truchsess (1514-1573), que passaram, alguns deles, a desempenhar no Concílio um “papel teológico de primeira linha” (Marc Venard, O Concílio Lateranense V e o Tridentino. In: Giuseppe Alberigo, org. História dos Concílios Ecumênicos,São Paulo: Paulus, 1995, p. 332).

[10] Letters of John Calvin, Selected from the Bonnet Edition, Edinburgh: The Banner of Truth Trust, 1980, p. 132-133.

[11]João Calvino, As Pastorais, (Tt 1.5), p. 306.

[12]John Calvin, To Madame de Coligny, “Letters,” John Calvin Collection, [CD-ROM], (Albany, OR: Ages Software, 1998), nº 655.

[13]João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1,  (Jo 3. 29), p. 144.

[14]João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1,  (Jo 3. 29), p. 144.

[15] João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1,  (Jo 3. 29), p. 143. Veja-se também: João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998 (1Tm 4.16), p. 125.

[16] S.L. Morris,  The relation of Calvin and Calvinism to Missions: In: R.E. Magill, ed., Calvin Memorial Addresses, Richimond VA.: Presbyterian Committee of Publication, 1909, p. 133.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *