A Pessoa e Obra do Espírito Santo (124)

6.3.1.1. A vocação teológica para o discipulado e ensino (continuação)

O “hobbista” da serra elétrica e a teologia

Deus não os enviou [profetas, mestres] para tagarelarem sobre coisas desconhecidas ou duvidosas, mas os educa em sua escola para que transmitam a outros o que dele aprenderam pessoalmente.– João Calvino.[1]

Recentemente passei umas duas semanas pensando em comprar uma serra elétrica circular. Analisei marca, preço, potência, avaliação de profissionais por meio de diversos vídeos, dos comentários que eram feitos a partir dos vídeos bem como de consumidores comuns como eu.

Depois soube que há uma outra serra circular, conhecida como “serra mármore”, que é mais potente, mais leve e mais barata. Pensei comigo. Descobri o segredo: quem pode mais, pode menos. Por que não comprar esta e ter uma mais potente para madeira que é o que primariamente me interessa?

Descobri que era possível. Comecei a ver que isso é muito comum de ser usado nas construções. Estava praticamente decidido. Até que vi algo sobre a conveniência de usar uma “serra mármore” como se fosse “serra circular” para cortar madeira. O especialista falou dos perigos. O mais simples era perder um dos dedos. Outros, mais penetrantes nas descrições dos cortes, me lembraram os Simpsons consertando o telhado com o martelo.[2]

Assisti outros e outros vídeos. Todos apontavam na mesma direção. Resultado: Comprei a serra circular com a metade da potência, mais cara e mais pesada.

Chegou logo. Ontem coloquei a lâmina e fui apenas testá-la em um resto de madeira que estava no porão. Confesso que tremi um pouco. Mas, eu comprei a correta, dizia-me em um solilóquio que pretendia ser tranquilizador. Não importa. Vendo a velocidade da serra e os vídeos me vindo à cabeça, fiquei contente em cortar uma madeira mole de 5cms de largura e 1cm de espessura. A serra é ótima. Guardei-a como se guarda um veneno… Isso foi tão impactante, que agora, umas 26 horas depois, estou aqui ilustrando com isso.

Meus irmãos, se pensarmos bem, o ministério pastoral pode ser terrificante. Se formos analisar as coisas envolvidas, o trabalho que realizamos, os efeitos desse trabalho na vida das pessoas, em suas decisões e destino, podemos desanimar e deixar isso para outros.

    No primeiro dia de 1553, período turbulento, Calvino, então com 43 anos,  escreve a sua carta dedicatória dos comentários do Evangelho de João aos síndicos de Genebra. A certa altura diz:

Espontaneamente reconheço diante do mundo que mui longe estou de possuir a cuidadosa diligência e outras virtudes que a grandeza e a excelência do ofício requer de um bom pastor, e como continuamente lamento diante de Deus os numerosos pecados que obstruem meu progresso, assim me aventuro declarar que não estou destituído de honestidade e sinceridade na realização de meu dever.[3]

De fato, se não formos mesmo vocacionados é melhor que o façamos. Autovocação é o caminho da tristeza, angústia, frustração e muitos males para outras pessoal.[4] No entanto, atender à vocação de nosso Senhor é altamente estimulante e consolador.

O nosso chamado nos liga definitivamente  por uma vocação divina ao Senhor da Igreja e ao seu povo:

Nada poderá encher-nos de mais coragem do que o reconhecimento de que fomos chamados por Deus. Pois desse fato podemos inferir que o nosso labor, que está sob a direção divina e no qual Deus nos estende sua mão, não ficará infrutífero. Portanto, pesaria sobre nós uma acusação muito grave caso rejeitássemos o chamado divino.[5]

O homem, uma vez chamado, que ponha indelevelmente em sua mente que ele não mais é livre para retroceder, quando bem lhe convier, se, por exemplo, as frustrações arrebatarem seu coração ou as tribulações o esmagarem; porquanto ele está dedicado ao Senhor e à Igreja, e se acha firmemente amarrado por um laço sagrado, o qual lhe seria pecaminoso desatar.[6]

Por outro lado, quando a nossa fidelidade inicial se transforma em capitalizações de reconhecimento, influência, cargos, salários, convites e fama, corremos o risco de reavaliar nossa vocação por algum prisma estranho às Escrituras. Isso me fez lembrar mais uma vez o corajoso e incisivo Lutero e o lúcido Calvino:

É para muito se lamentar o fato de que nenhum homem está contente ou satisfeito com aquilo que Deus lhe dá em sua vocação e chamado. As condições dos outros homens agradam-nos mais do que as nossas: como disse o pagão (Ovídio): “A colheita é sempre mais abundante nas terras do outro, e o gado de nosso vizinho produz  mais do que o nosso”. E outro pagão (Horácio): “O boi preguiçoso deseja a sela do cavalo, e o cavalo lento, arado”.

Quanto mais temos, mais queremos. Servir a Deus, para todos nós, permanecer em sua vocação e chamado, por mais simples e humilde que seja.[7]

Cada um deve viver contente com sua vocação, e persistir nela, e não viver ansioso em mudar para alguma outra coisa. (…) [Paulo] deseja corrigir a irrefletida avidez de alguns em mudar sua situação sem qualquer razão plausível, pois talvez são movidos por uma crença errônea ou alguma outra influência. (…) Condena o desassossego [de espírito] que impede os indivíduos de permanecerem alegremente como estão….[8]

A poderosa Palavra de Deus

O apóstolo Paulo, diante dos presbíteros de Éfeso, quando se despede em caráter definitivo, traz à lembrança de seus ouvintes um dos aspectos fundamentais de seu ministério:“Jamais deixei de vos anunciar todo o desígnio de Deus” (At 20.27). Este foi o seu ministério durante os três anos nos quais ali passou. (At 20.27,31).

          Tendo aprendido com o Cristo, Paulo não se deteve em sabedoria humana, em debates frívolos ou em exibicionismo de saber, antes, anunciou o Evangelho da graça de Deus (At 20.24).[9]

          Ele prevê as dificuldades que viriam, surgidas muitas delas dentro da própria Igreja,[10] até mesmo, é possível, da parte de presbíteros (At 20.29-30),[11]no entanto, ele não estabelece nenhum método mirabolante, antes os orienta a ficarem atentos – contínua e perseverantemente[12] – e os encomenda à Palavra (At 20.31-32).[13] Demonstra também a necessidade de autovigilância (At 20.28).

          Stott (1921-2011) comenta:

Notamos que os pastores efésios devem primeiro vigiar a si mesmos, e só depois ao rebanho que lhes foi confiado pelo Espírito Santo. Pois eles não podem dar um cuidado adequado aos outros se negligenciarem o cuidado e a instrução de suas próprias almas.[14]

    A Palavra de Deus é um antídoto contra os lobos vorazes que desejam se apossar do rebanho e contra os homens pervertidos que procuram corromper o povo de Deus.

    A Palavra é poderosa para nos edificar e santificar. Por isso, caberia àqueles presbíteros, pregar a Palavra, assim como Paulo o fizera. “A Igreja e o evangelho são inseparáveis. (…) A Igreja é tanto o fruto como o agente do evangelho, visto que por meio do evangelho a igreja se desenvolve e por meio desta se propaga aquele”, comentam Stott e Meeking (1929-2020).[15]

    Em outro lugar, o apóstolo diz: “Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, (didaskali/a = “instrução”) para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça” (2Tm 3.16). Entre outras coisas, isto significa que o nosso pensar teológico deverá estar sempre conectado com a fidelidade à Escritura e com o ensino da Palavra. Este aspecto realça a nossa responsabilidade como intérpretes, discípulos, mestres e expositores da Palavra.

Há também aqui um grande conforto, do qual nem sempre temos nos dado conta: Não precisamos – nem nos foi requerido –, “desculpar” ou “justificar” Deus e a sua Palavra.[16] Não há o que selecionar ou cortar: “Toda Escritura é (…) útil o para ensino”.

 Algumas vezes, tenho a impressão de que diante de “questões embaraçosas” tais como: a “condenação de todos os homens inocentes que morrerem sem conhecer a Cristo”, a “eleição de uns para a salvação em detrimento de outros”, “o quase silêncio dos evangelhos sobre os trinta primeiros anos de Cristo”, “os tsunamis”, “terremotos”, “pandemias” e semelhantes, ficamos como que procurando uma justificativa para o Soberano agir desta ou daquela forma; buscamos uma maneira de tornar Deus apetecível à mente e aos valores modernos e “pós-modernos”.

Deste modo, como tem acontecido em ênfases teológicas recentes, despojamos Deus de sua glória, o colocando como um aprendiz da história que vai se surpreendendo com os eventos que ocorrem à sua revelia.

O alto conceito a respeito de nós mesmos e de nossos pensamentos tendem a corromper totalmente a nossa compreensão da Escritura e, consequentemente, de toda a realidade. É preciso que reconheçamos Deus como Deus a partir da plenitude de sua revelação. A sua revelação é para ser recebida com uma fé inteligente e uma inteligência submissa à Palavra. Isso é graça abundante.

Maringá, 27 de fevereiro de 2021.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, (Jo 3.11),  p. 125-126.

[2]https://www.youtube.com/watch?v=wT5Q_TeJ4T8 (Acessado em 27.02.2021).

[3] João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1,  p. 23.

[4] “O que torna válido um ofício é a vocação, de modo que ninguém pode exercê-lo correta ou legitimamente sem antes ser eleito por Deus (…). Nenhuma forma de governo deve ser estabelecida na Igreja segundo o juízo humano, senão que os homens devem atender à ordenação divina; e, ainda mais, que devemos seguir um procedimento de eleição preestabelecido, para que ninguém procure satisfazer seus próprios desejos. (…) Segundo é a promessa de Deus de governar sua Igreja, assim ele reserva para si o direito exclusivo de prescrever a ordem  e forma de sua administração” (J. Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 5.4), p. 127-128).

[5]João Calvino, As Pastorais,São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 6.12), p. 173.

[6]J. Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 9.16), p. 276-277.

[7]Martinho Lutero, Conversa à mesa de Lutero, Brasília, DF.: Monergismo, 2017,  891, p. 461-462.

[8]João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996,  (1Co 7.20), p. 221-222.

[9] “O método ordinário de Cristo de ensinar – isto é, com comum simplicidade – aqui se contrasta com o exibicionismo e brilhantismo a que os homens ambiciosos se apegam tanto” (João Calvino, O evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, (Jo 3.12), p. 128).

[10]“Se existe algo que a história nos ensina, este ensino é que os ataques mais devastadores desfechados contra a fé sempre começaram com erros sutis surgidos dentro da própria igreja” (John F. MacArthur Jr., Com Vergonha do Evangelho,São José dos Campos, SP.: Fiel, 1997, p. 11).

[11] 1Tm 1.3; 2Tm 1.15; Ap 2.1-7.

[12] O presente imperativo do verbo (grhgore/w) (de onde vem Gregório), vigiar, ficar acordado, desperto, indica uma vigilância contínua e perseverante.

[13] “Grande prudência é requerida daqueles que têm a incumbência da segurança de todos; e grande diligência, daqueles que têm o dever de manter vigilância, dia e noite, para a preservação de toda a comunidade” (João Calvino, Exposição de Romanos,São Paulo: Paracletos, 1997, (Rm 12.8), p. 434).

[14] John R.W. Stott, A Mensagem de Atos: Até os confins da terra,São Paulo: ABU, (A Bíblia Fala Hoje),1994, (At 20.28-35), p. 369.

[15]John R.W. Stott; Basil Meeking, editores, Dialogo sobre la mision, Grand Rapids, Michigan: Nueva Creación, 1988, p. 62.

[16]Calvino afirma que: “Contra os ímpios, que com destemor falam mal de Deus abertamente, o Senhor se defende suficientemente com a Sua justiça, sem que Lhe sirvamos de advogados” (João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, v. 3, (III.8), p. 49). Na sequência, entretanto, ele nos mostra como Deus nos fornece argumentos racionais para fazer calar as suas maldades e injustiças.

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