Uma fé que investiga e uma ciência que crê (44) – Final


Considerações finais (continuação)

            Aqui, no entanto, vai uma antiga, porém, ainda pertinente advertência de Kuyper (1837-1920), especialmente a nós, reformados:

Se nos consolamos com o pensamento de que podemos sem perigo deixar a ciência secular nas mãos de nossos oponentes, se somos bem-sucedidos apenas em salvar a Teologia, nossas táticas serão as do avestruz. É realmente insensato limitar-se à salvação de seu quarto superior, enquanto o resto da casa está em chamas.[1]

            Somos chamados a apresentar a alternativa cristã em todas as áreas de nossa existência, inclusive em nossas pesquisas. Não fomos destinados a viver em um gueto acadêmico ou, simplesmente, na defensiva, nos esgueirando nas brechas da academia buscando apoio em um mundo totalmente paganizado.

            Temos uma estrutura de pensamento consistente, coerente e demonstrável. Precisamos ter clareza quanto a isso a fim de não sucumbirmos a uma estrutura de pensamento e valores pagãos. Sem uma sólida fundamentação teórica nos tornaremos joguetes fáceis e ingênuos nas mãos de teóricos e teorias totalmente incompatíveis com a fé cristã e, portanto, com a totalidade da realidade. “Ser  radicalmente cristão, escreve Poythress, significa não aceitar mais ingenuamente a mensagem cultural da secularidade”.[2]   De fato, pressuposições seculares, com referenciais materialistas e pretensões autônomas, não poderão ser compatíveis com a fé cristã.

            Por vezes, no afã de sermos aceitos nos meios acadêmicos e contarmos com apoio de nossos pares, reconhecimento, e de recursos (verbas) muito bem distribuídos, somos capazes de negar a nossa fé. Assim, covardemente assumimos um referencial teórico totalmente estranho ao que cremos ou ao que deveríamos crer.

            Assim, em uma “saia justa”, mas, desejando abraçar com nossas pernas continentes teóricos excludentes, sustentamos em ambientes específicos postulados que são incompatíveis com a nossa fé. Quando muito, apenas falamos genericamente de Deus, ou citamos algum versículo bíblico fora de contexto para granjearmos certa simpatia quando estivermos em ambiente cristão, ou obtermos alguma paz em nosso coração já dividido entre Deus e baal.

            Certamente, podemos e devemos aprender com as várias ciências, com diversas pessoas, mesmo incrédulos, que pela graça comum de Deus, podem nos auxiliar a melhor compreender aspectos da realidade.[3] Contudo, isso não significa aceitar as suas pressuposições reducionistas e superficiais.

            As suas descobertas, observações e críticas podem ter valor e pertinência, todavia, faz-se necessário olhar estes aspectos dentro de uma cosmovisão cristã que, sem dúvida, ainda que validando muito do que foi dito, nos encaminhará para uma solução diferente, considerando a complexidade da existência humana, tendo Deus como Criador e Senhor de todas as coisas. Somente pela Palavra poderemos ter uma dimensão abrangente da realidade.

            Poythress faz uma afirmação tristemente esclarecedora:

A maior parte da filosofia ocidental tem sido a história de tentar responder às principais questões da vida independentemente da revelação divina, pela razão somente. E essa receita de política de ignorar a revelação divina é uma receita para a autonomia do pensamento humano em lugar da submissão à instrução de Deus.[4]

            É necessário que, enquanto cristãos, assumamos a nossa fé em sua amplitude e desafios. A fé não é uma ilusão. Ela não fecha os nossos olhos às evidências contrárias, ou apenas enxerga com o brilho otimista de quem encontrou o que queria nas evidências favoráveis. A fé, contrariamente, aguça a nossa inteligência e sensibilidade, nos ajudando de forma objetiva em nossa pesquisa.[5]          

Há um depoimento que considero muito significativo. Próximo ao fim da vida, Newton (1642-1727), mesmo tendo consciência de suas contribuições, confessa-se extasiado diante da magnitude da criação. Isso o conduzia a localizar o seu trabalhado de forma relacional. Por isso, a clareza quanto à sua pequenez. Disse então: 

Não sei o que posso parecer ao mundo; mas para mim eu pareço ter sido apenas como um garoto brincando à beira-mar e me desviando de vez em quando, encontrando uma pedra mais lisa ou uma concha mais bonita do que o normal, enquanto o grande oceano da verdade permanecia misterioso diante de mim.[6]

            Mcgrath, cientista e teólogo contemporâneo, assim se expressa:

A fé, portanto, tem de ser vista como uma forma de crença motivada ou justificada. Não é um salto cego no escuro, mas a jubilosa descoberta de um quadro mais abrangente das coisas, do qual fazemos parte. É algo que induz e convida à sanção racional, e não algo que a compele. A fé diz respeito a ver as coisas que os outros deixaram passar e apreender sua relevância mais profunda.[7]

A fé diz respeito a intensificar a capacidade da visão, permitindo-nos ver e apreciar os indícios que estão ali de fato, mas que são negligenciados ou mal-entendidos pelos outros. [8]

A estrutura da fé, uma vez apreendida, nos concede uma nova maneira de ver o mundo e encontrar sentido em nosso lugar no esquema maior das coisas. [9]

A fé nos capacita a ver as coisas de forma distinta; e nos leva a agir de formas consistentes com isso. A fé cristã, independentemente do que possa ser, está inquestionavelmente preocupada com a crença de que Deus existe e de que essa existência possui relevância para a identidade, a atividade e ação humanas.[10]

            O Cristianismo, partindo da revelação do Deus transcendente e pessoal, apresenta o caminho da salvação em Jesus Cristo. A fé cristã é bastante objetiva quanto a isso. Não há salvação fora dele (At 4.12). No entanto, essa fé além de consistente,  é capaz de apresentar respostas às indagações mais profundas da existência humana, demonstrando a sua fundamentação e conexão metafísica, epistemológica e ética.

     As suas propostas se forem levadas a sério se constituem em verdades conflitantes com os valores hodiernos. No entanto, a seriedade das reivindicações bíblicas se constitui  na alternativa divina para a “desordem do homem”. A genuína teologia cristã é compreensível, transformadora e operante.  A Igreja como manifestação histórica do Reino é desafiada a apresentar em sua fé operante[11] (práxis)[12] a eficácia da ética de Jesus Cristo e, a demonstrar o quanto a Igreja leva a sério o Seu Senhor.   

A fé cristã, amparada e estruturada a partir de um Deus infinito-pessoal, que se relaciona conosco, nos conduzindo em amor e bondade pela vida à fora, confere sentido à realidade a partir de nós como seus agentes que pela fé vivem, e constroem e transformam o mundo de Deus. (Rm 12.1-2).

Maringá, 14 de maio de 2020.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] Abraham Kuyper,Calvinismo, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002, p. 145. *** Do mesmo modo, ver:   A. Kuyper, Sabedoria e prodígios: graça comum na ciência e na arte, Brasília, DF.: Monergismo, 2018, p. 93.

[2] Vern S. Poythress, O Senhorio de Cristo: servindo o nosso Senhor o tempo todo, com toda a vida e de todo o nosso coração, Brasília, DF.: Monergismo, 2019, p. 19. No entanto, à frente admite: “Os cristãos não são totalmente consistentes com a fé que professam” (p. 61).

[3]Calvino em passagem magistral, escreveu:

“Quantas vezes, pois, entramos em contato com escritores profanos, somos advertidos por essa luz da verdade que neles esplende admirável, de que a mente do homem, quanto possível decaída e pervertida de sua integridade, no entanto é ainda agora vestida e adornada de excelentes dons divinos. Se reputarmos ser o Espírito de Deus a fonte única da verdade, a própria verdade, onde quer que ela apareça, não a rejeitaremos, nem a desprezaremos, a menos que queiramos ser insultuosos para com o Espírito de Deus. Ora, nem se menosprezam os dons do Espírito sem desprezar-se e afrontar-se ao próprio Espírito.

“E então? Negaremos que a verdade se manifestou nos antigos jurisconsultos, os quais, com equidade tão eminente, plasmaram a ordem política e a instituição jurídica? Diremos que os filósofos foram cegos, tanto nesta apurada contemplação da natureza, quanto em sua engenhosa descrição? Diremos que careciam de inteligência esses que, estabelecida a arte de arrazoar, a nós nos ensinaram a falar com razoabilidade? Diremos que foram insanos esses que, forjando a medicina, nos dedicaram sua diligência? O que dizer de todas as ciências matemáticas? Porventura as julgaremos delírios de dementes? Pelo contrário, certamente não poderemos ler sem grande admiração os escritos dos antigos acerca dessas coisas. Mas os admiraremos porque seremos obrigados a reconhecer seu profundo preparo.

“Todavia, consideraremos algo digno de louvor ou mui excelente que não reconheçamos provir de Deus? Envergonhemo-nos de tão grande ingratidão, na qual nem mesmo os poetas pagãos incidiram, os quais têm professado que a filosofia é invento dos deuses, bem como as leis e todas as boas artes. Portanto, se esses homens, a quem a Escritura chama [psychikoús naturais, 1Co 2.14], que não tinham outra ajuda além da luz da natureza, foram tão engenhosos na inteligência das coisas deste mundo, tais exemplos devem ensinar-nos quantos são os dons e graças que o Senhor tem deixado à natureza humana, mesmo depois de ser despojada do verdadeiro e sumo bem. (João Calvino, As Institutas (2006), II.2.15). Veja um testemunho interessante: Vern S. Poythress, Redimindo a filosofia: uma abordagem teocêntrica às grandes questões, Brasília, DF.: Monergismo, 2019, p. 39; Vern S. Poythress, O Senhorio de Cristo: servindo o nosso Senhor o tempo todo, com toda a vida e de todo o nosso coração, Brasília, DF.: Monergismo, 2019, p. 64.

[4] Vern S. Poythress, O Senhorio de Cristo: servindo o nosso Senhor o tempo todo, em toda a vida e de todo o nosso coração, Brasília, DF.: Monergismo, 2019, p. 99.

[5] “Pesquisar significa descobrir todas as evidências, quer os achados concordem com as opiniões do pesquisador, que não concordem” (Andreas J. Köstenberger; Richard D. Patterson, Convite à interpretação bíblica: A tríade hermenêutica, São Paulo: Vida Nova, 2015, p. 600).

[6] Citado em David Brewster, Life of Sir Isaac Newton, Good Press, 2019. Edição do Kindle (Posição 3814 de 4520).

[7]Alister E. McGrath, Surpreendido pelo sentido: ciência, fé e o sentido das coisas, São Paulo: Hagnos, 2015, p. 14.

[8]Alister E. McGrath, Surpreendido pelo sentido: ciência, fé e o sentido das coisas, p. 14.

[9]Alister E. McGrath, Surpreendido pelo sentido: ciência, fé e o sentido das coisas, p. 14.

[10] Alister E. McGrath, Surpreendido pelo sentido: ciência, fé e o sentido das coisas, p. 18.

[11] Paulo fala da operosidade da fé (1Ts 1.3).

[12] Jeremias denomina isso de “fé vivencial” (J. Jeremias, O Sermão do Monte, 4. ed. São Paulo: Paulinas, 1980, p. 57).

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