Uma fé que investiga e uma ciência que crê (38)


4.5. Ciência e Religião no Pensamento Moderno (Continuação)

            Contudo, a rejeição das hipóteses de Copérnico deu-se entre católicos e protestantes – com todas as suas diversidades – ainda que encontremos uma adoção maior de seu sistema entre os calvinistas e puritanos,[1] a ponto de ser relacionado os sistemas como “calvinista-copernicano”[2] e algumas vezes o puritanismo ser identificado com os defensores da “nova Ciência”.[3] Treze anos depois da publicação da obra de Copérnico, ela seria reeditada em Basiléia (1556?),[4] cidade protestante.[5] O matemático e astrônomo puritano Thomas Digges (c. 1546-1596) difundiu e ampliou[6] a teoria copernicana na Inglaterra fora dos “círculos dos astrônomos”,[7] indo além dele em suas teorias.[8] Na realidade, entre os protestantes havia maior tolerância para as novas correntes de pensamento (Lembremo-nos de Descartes e Espinosa).[9] Galileu quando adotou a teoria de Copérnico foi denunciado ao Santo Ofício que reafirmou o geocentrismo. Com o recuo parcial de Galileu (26/02/1616),[10] no dia 03/3/1616, é promulgado o decreto de condenação das obras de Copérnico, Kepler e Galileu (26/02/1616).[11] Como nos lembra Hill, Galileu só pode desenvolver as suas ideias publicamente em países protestantes.[12]

Até o século XVIII todas as obras que defendiam o sistema copernicano permaneciam no Index.[13] Este instrumento era tão temido que o físico e matemático jesuíta R.R. Giuseppe Boscovich (1711-87), entre outros, em meados do século XVIII – vivendo “no ambiente corrupto e conformista da corte papal”[14] – sendo copernicano, adotava uma “duplicidade epistemológica” ou, um “ambíguo conformismo” em suas obras. Deste modo, eufemisticamente, poderíamos dizer que “em Roma, a tese copernicana é rejeitada apenas em homenagem à autoridade da Igreja”.[15] Deve ser lembrado que a aceitação ou não das teorias de Copérnico não estava simplesmente relacionada à religião ou a ignorância das pessoas. Mesmo entre os astrônomos, Copérnico não foi uma unanimidade.[16]

            Contrastando a atitude protestante com a católica, destaca Eisenstein:

Convém frisar que é equivocada a prática, tão comum, de tratar as declarações anti-Copérnico, feitas por protestantes do século XVI, como se fossem equivalentes às medidas anti-Copérnico tomadas pelos católicos do século XVII. Um texto de grande circulação, escrito para uso de estudantes universitários, por exemplo, dá a seus leitores a impressão errônea de que o desprezo de Lutero por Copérnico acabou ‘sufocando’ a revolução científica na Alemanha (apesar dos êxitos de Rheticus, Reinhold, Maestlin e Kepler!). As declarações teológicas não representam a mesma modalidade de resistência às mudanças, que é tipificada nas medidas tomadas para impedir uma publicação. Estas ameaçavam a vida da ciência, ao contrário das primeiras.[17]

Ilustrando a sua tese, exemplifica:

Embora os teólogos, tanto protestantes como católicos, tenham adotado uma posição muito próxima (tanto uns como outros atribuíam uma condição hipotética e provisória às teorias geocinéticas e negaram que o movimento da Terra pudesse constituir algo mais que uma ficção útil), os astrônomos editores protestantes não se sentiram impedidos de rejeitar aquela posição, o que constitui um nítido contraste com a atitude católica, depois que o papa condenou a teoria de Copérnico, em 1616.

Já antes mesmo da condenação de 1616, e mesmo após os vários pronunciamentos de Lutero e Melanchton, os editores católicos faziam menos que os protestantes para promover a causa copernicana.[18]

             Quanto à teoria de Copérnico, Hooykaas (1906-1994) admite que avaliando-a pelos seus próprios méritos “a opção mais sensata àquela época seria considerar a hipótese do movimento da Terra não como um dogma científico, mas tão-somente uma teoria muito provável (como o fizeram Beeckman e Pascal)”.[19]

Maringá, 27 de abril de 2020.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] Ver: R. Hooykaas, A Religião e o Desenvolvimento da Ciência Moderna, p. 169ss. “Do século IV ao XVI, a atitude da Igreja foi um fator determinante no progresso ou na estagnação da astronomia.” (Thomas Kuhn, A Revolução Copernicana, p. 123)

[2] Cf. R. Hooykaas, A Religião e o Desenvolvimento da Ciência Moderna, p. 171, 173.

[3] Cf. R. Hooykaas, A Religião e o Desenvolvimento da Ciência Moderna, p. 182ss.

[4]Cf. Paolo Rossi, O Nascimento da Ciência Moderna na Europa, p. 123.Febvre e Martin, dizem: “O público quase não se interessou pelo sábio tratado: foi preciso esperar 23 anos, até 1566, para que ele fosse reimpresso” (Lucien Febvre; Henry-Jean Martin, O Aparecimento do Livro,São Paulo: Hucitec., 1992, p. 391. Do mesmo modo: Lucien Febvre, O Problema da Descrença no Século XVI, Lisboa: Editorial Início, 1970, p. 451; John Hale, A Civilização Europeia no Renascimento, Lisboa: Editorial Presença, 2000, p. 506). Salvo melhor juízo, Febvre, Martin e Hale se referem então à reedição da obra em Nuremberg.

[5]Cf. Paolo Rossi, O Nascimento da Ciência Moderna na Europa, p. 123.Febvre e Martin, dizem: “O público quase não se interessou pelo sábio tratado: foi preciso esperar 23 anos, até 1566, para que ele fosse reimpresso” (Lucien Febvre; Henry-Jean Martin, O Aparecimento do Livro,São Paulo: Hucitec., 1992, p. 391. Do mesmo modo: Lucien Febvre, O Problema da Descrença no Século XVI, Lisboa: Editorial Início, 1970, p. 451; John Hale, A Civilização Europeia no Renascimento, Lisboa: Editorial Presença, 2000, p. 506). Salvo melhor juízo, Febvre, Martin e Hale se referem então à reedição da obra em Nuremberg.

[6] Cf. Ver Alexandre Koyré, Do Mundo Fechado ao Universo Infinito, 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 43ss.; R. Hooykaas, The Reception of Copernicanism in England and the Netherlands. In: The Anglo-Dutch Contribution to the Civilization of Early Modern Society: An Anglo-Netherlands Symposium, London: British Academy by Oxford University Press, 1976, p. 36.

[7] Cf. Thomas Kuhn, A Revolução Copernicana, p. 203; Giovanni Reale; Dario Antiseri, História da Filosofia,2. ed. São Paulo: Paulus, 1990, v. 2, p. 227; R. Hooykaas, A Religião e o Desenvolvimento da Ciência Moderna, p. 172; Christopher Hill, Origens Intelectuais da Revolução Inglesa,São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 31ss.

[8] “A ideia de um Universo infinito veio a ser aceita na Inglaterra basicamente em função do trabalho desenvolvido por Digges; todos os cientistas admitiram a necessidade de as teorias serem continuamente testadas por meio da observação e experimentação, motivo pelo qual as brilhantes especulações metafísicas de um Giordano Bruno tiveram uma influência relativamente pequena na Inglaterra.” (Christopher Hill, Origens Intelectuais da Revolução Inglesa, p. 32-33). Ver: Bertrand Russell, História da Filosofia Ocidental, 2. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967, v. 3, p. 47, 49.

[9] Ver: Hermisten M.P. Costa, A Propósito dos 300 anos da Morte de Vieira: Reflexões Fortuitas sobre a sua vida e obra: In: Fides Reformata 2/2 (1997) 35-60.

[10] Galileu seria interpelado posteriormente. No dia 22 de junho de 1633, em Roma, “Galilei em traje de penitência e de joelhos diante dos cardeais da Congregação, pronuncia a abjuração pública: ‘com coração sincero e fé não fingida abjuro, condeno e detesto os referidos erros e heresias […] e juro que no futuro nunca mais direi nem sustentarei, por palavra ou por escrito, coisas dessa espécie pelas quais se possa ter a meu respeito tal suspeita, mas se ficar sabendo de algum herege ou que seja suspeito de heresia, denunciá-lo-ei a este S. Ofício” (Paolo Rossi, O Nascimento da Ciência Moderna na Europa, p. 184). Galileu transforma-se num presidiário herege e um alcaguete em potencial. Mesmo com sua retratação Galileu foi condenado à prisão domiciliar pelo resto de seus dias (Cf. Hal Hellman, Grandes Debates da Ciência: dez das maiores contendas de todos os tempos, São Paulo: UNESP., 1999, p. 21).

[11]Vejam-se: Paolo Rossi, O Nascimento da Ciência Moderna na Europa, p. 163-164; Philip Schaff; David S. Schaff, History of the Christian Church, v. 8, p. 679. “Em 1616, a Igreja baniu todos s livros que advogavam a realidade do movimento da Terra. Nenhuma simples generalização descreverá a influência opressiva da Igreja sobre a ciência, porque a influência alterava-se com a situação mutável da Igreja.” (Thomas Kuhn, A Revolução Copernicana, p. 123. Do mesmo modo, p. 208). “É um fato curioso que quando Galileu foi sentenciado ao confinamento na masmorra da Inquisição, por um período indeterminado, por ter defendido o sistema de Copérnico, foi obrigado a repetir como penitência estes sete Salmos Penitenciais [6,32,38,51,102,130 e 143], a cada semana, por três anos; pelo quê, a intenção indubitável era arrancar dele a confissão de sua culpa e o reconhecimento da retidão de sua sentença” (Nota de James Anderson ao Comentário de Calvino: João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Edições Paracletos, 1999, v. 2, (Sl 38), p. 175). Ver também: Felipe Fernándes-Armesto; Derek Wilson, Reforma: O Cristianismo e o Mundo 1500-2000,Rio de Janeiro: Record, 1997. p. 48.

[12]Christopher Hill, Origens Intelectuais da Revolução Inglesa, p. 43.

[13]Cf. Christopher Hill, Origens Intelectuais da Revolução Inglesa, p. 42. Vejam-se alguns exemplos de condenação in: Paolo Rossi, O Nascimento da Ciência Moderna na Europa, p. 160ss. Por outro lado, segundo Fernándes-Armesto e Wilson, “Salamanca foi a única universidade europeia onde as teorias de Copérnico chegaram aos programas dos cursos no século XVI.” (Felipe Fernándes-Armesto; Derek Wilson, Reforma: O Cristianismo e o Mundo 1500-2000,Rio de Janeiro: Record, 1997, p. 379). No entanto, deve ser observado que ainda que os Estatutos da Universidade de Salamanca (1561) determinassem que o curso de Matemática deveria abranger Euclides, Ptolomeu ou Copérnico, a critério dos alunos, Copérnico quase nunca foi escolhido. (Cf. Paolo Rossi, O Nascimento da Ciência Moderna na Europa, p. 127).

[14] Paolo Casini, Newton e a Consciência Europeia, São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1995, p. 149.

[15] Paolo Casini, Newton e a Consciência Europeia, São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1995, p. 155. Ver: p. 147ss.

[16] Ver por exemplo: Paolo Rossi, O Nascimento da Ciência Moderna na Europa, p. 124-126.

[17]Elisabeth L. Eisenstein, A Revolução da Cultura Impressa: Os primórdios da Europa Moderna,São Paulo: Editora Ática, 1998, p. 252.

[18]Elisabeth L. Eisenstein, A Revolução da Cultura Impressa: Os primórdios da Europa Moderna,p. 252-253.

[19]R. Hooykaas, A Religião e o Desenvolvimento da Ciência Moderna,Brasília, DF.: Editora Universidade de Brasília, 1988, p. 174.

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