Uma fé que investiga e uma ciência que crê (22)

3) Preserva a Criação (Continuação)

O que entendemos por preservação?

Preservação (conservatio, sustentatio ou preservatio) é a contínua operação do poder de Deus, pela qual Ele sustenta e conserva todas as coisas contingentes – a Criação – a fim de que esta possa cumprir ordenadamente o propósito para o qual foi criada.

Preservação é o ato contínuo de Deus de sustentar a existência do que Ele mesmo criou. A própria efemeridade das coisas depende de Deus que as trouxe à existência. Sem a criação e preservação de Deus, nada existe. O que existe e enquanto existe é pelo poder de Deus.

A matéria não é autônoma

Isto significa que a Criação de Deus não tem poderes em si mesma para autoexistir. Se não fosse, a matéria seria autônoma, qualidade que pertence única e exclusivamente a Deus. Sem a sustentação do Senhor, o universo inteiro, tudo o que existe fora de Deus deixaria de existir.

O escritor de Hebreus, registra:

Ele, que é o resplendor da glória e a expressão exata do seu Ser, sustentando (fe/rw) todas as coisas pela palavra do seu poder, depois de ter feito a purificação dos pecados, assentou-se à direita da Majestade, nas alturas. (Hb 1.3).

A criação cumpre o seu propósito

A ideia de “sustentação” no texto (fe/rw = “levar”, “carregar”), além de preservação, é a de fazer com que as coisas sigam o seu rumo, o seu propósito determinado por Deus;[1] “encerra a ideia de controle ativo e deliberado da coisa que se carrega de um lugar a outro”.[2]

Turretini (1623-1687) interpreta corretamente:

Se foi glorioso para Deus criá-las, não deve ser-lhe inconveniente velar por elas. Não só isso: como as criou, assim ele se obriga a conservá-las e continuamente, uma vez que jamais abandona sua obra, senão que está perpetuamente presente com ela, para que não mergulhe outra vez na nulidade.[3]

O descanso em contentamento: transição da criação para preservação

As Escrituras registram que Deus após ter criado todas as coisas: nos céus e na terra; no sétimo dia, descansou da obra da criação.[4] Deus completou o que iniciou.[5] Temos então, negativamente, a conclusão de sua obra criativa e, positivamente, a santificação do sétimo dia (Gn 2.2-3).[6] A palavra sábado não ocorre na narrativa de Gênesis, contudo, é-nos dito posteriormente em linguagem antropomórfica: “Porque, em seis dias, fez o SENHOR os céus e a terra, o mar e tudo o que neles há e, ao sétimo dia, descansou; por isso, o SENHOR abençoou o dia de sábado (tB’v;) (shãbbath) e o santificou” (Ex 20.11).Posteriormente, isto é reafirmado, dizendo que nesta ocasião Deus “descansou, e tomou alento” (Ex 31.17).

Van Dyke, escreve com precisão:  “Deus não descansa da fadiga, mas em contentamento pela realização completada”.[7] De fato, Ele concluiu seus atos criativos que visam adornar o mundo em seu estado primeiro.[8] Aqui temos a transição da criação para a preservação divina.[9] Deus cria e preserva todas as coisas. Ele continuou preservando e sustentando a sua obra, como sempre o faz.[10] Do mesmo modo, o povo de Deus, juntamente com todos os seus, seguindo o seu Criador, deve tomar alento nesse dia (Ex 23.12)[11] e rememorar o que pôde fazer em suas múltiplas relações durante a semana, reconhecendo em suas conquistas e progressos a graça de Deus.

A Criação não pode ser considerada separadamente de Deus

A natureza como a criação em geral não pode ser considerada separadamente de Deus pois deste modo ou ela tornar-se-ia o centro de todas as coisas (idolatria) ou, sendo menosprezada, tornar-se-ia apenas um detalhe cósmico o qual o homem pode usar a seu bel-prazer com objetivos egoístas e, portanto, destruidores.

É impossível uma genuína ecologia divorciada da teologia bíblica. A questão “ecológica” é, antes de tudo, uma questão teológica.[12]

Sem a preservação de Deus nada mais existiria; tudo teria voltado ao nada. Por isso, podemos afirmar sem nenhum constrangimento, que até mesmo Satanás e os seus anjos, são alvos da bondade mantenedora de Deus; sem a sustentação divina, eles voltariam ao nada, que é a ausência do ser.           Vejam-se: Dt 33.12, 25-28; 1Sm 2.9; Ne 9.6; Jó 33.4/Jó 34.14-15/Sl 104.29; 145.14,15; At 17.28; Cl 1.17; Hb 1.3.

O socorro de Deus para com os seus servos, é uma forma de preservação: Gn 28.15; Ex 14.29,30; Dt 1.30,31; Sl 91.3,4,7,9,10,14;[13] 121.3,4,7,8; Is 40.11; 41.9-15; 43.2; Lc 21.18; 1Co 10.13; 1Pe 3.12; Ap 3.10.[14]

Maringá, 13 de abril de 2020.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] “Ele sustenta o universo, não como Atlas que suporta um peso morto sobre seus ombros, senão como aquele que leva todas as coisas até a meta prefixada” (F.F. Bruce, La Epistola a los Hebreos, Buenos Aires: Nueva Creacion, 1987, (Hb 1.3), p. 7).

[2] Wayne A. Grudem, Teologia Sistemática, São Paulo: Vida Nova, 1999, p. 248. “Sustentar é usado no sentido de cuidar e de conservar toda a criação em seu próprio estado. Ele percebe que tudo se desintegraria instantaneamente se não fosse sustentado por sua munificência” (João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 1.3), p. 36).

[3]François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 627.

[4] Notemos que Deus cessou a obra da criação, não de preservação (Jo 5.17). “O termo em si (descansou) não significa ociosidade, inatividade completa. Significa parar de fazer alguma coisa, ficar livre da mesma. Humanamente falando, isso pode ser dito de Deus em relação à sua obra criadora” (Gerard Van Groningen, O Sábado no Antigo Testamento: tempo para o Senhor, tempo de alegria nele (II): In: Fides Reformata, Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper, 4/1 (1999), p. 133). Ver também: Gerard Van Groningen, O Sábado no Antigo Testamento: tempo para o Senhor, tempo de alegria nele: In: Fides Reformata, Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper, 3/2 (1998), p. 156).

[5]“Deus está enfatizando nesta passagem que, sendo um Deus fiel, Ele completa o que começa” (Gerard Van Groningen, O Sábado no Antigo Testamento: tempo para o Senhor, tempo de alegria nele: In: Fides Reformata,3/2 (1998), p. 163). Do mesmo modo: Geerhardus Vos, Teologia Bíblica do Antigo e Novo Testamentos, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 174.

[6]Cf. C.F. Keil; F. Delitzsch, Commentary on the Old Testament,Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, (s.d.), v. 1, (Gn 2.1-3), p. 68.

[7]Fred Van Dyke, et. al.,A Criação Redimida,São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 86. Do mesmo modo, Kidner: “É o repouso da realização cumprida, não da inatividade, pois Ele nutre o que cria” (Derek Kidner, Gênesis: introdução e Comentário,São Paulo: Vida Nova; Mundo Cristão, 1979, (Gn 2.1-3), p. 50).

[8]“Deus sustenta o mundo por seu poder, governa-o por sua providência, nutre e propaga todas as criaturas, ele está sempre em atividade. (…) Se Deus apenas afastasse sua mão sequer um pouquinho, todas as coisas pereceriam imediatamente e se dissolveriam em nada. (…) Deus só é corretamente reconhecido como o Criador do céu e terra quando sua perpétua preservação lhe é atribuída” (John Calvin, Commentaries on the First Book of Moses Called Genesis,Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (Calvin Commentarie’s) 1996 (Reprinted), v. 1, (Gn 2.2), p. 103-104). Vejam-se também: João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 2002, v. 3, (Sl 104.29), p. 628-629; Santo Agostinho, Comentário ao Gênesis, São Paulo: Paulus, 2005 (Coleção Patrística; 21), IV.12, p. 133-135; Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 604.

[9] “Seu poder não cessou, mesmo no sétimo dia, no governo do céu e da terra e de todas as coisas que criara, pois do contrário em seguida se desfariam. De fato, o poder do Criador e a virtude do Onipotente e do Mantenedor é causa da subsistência de toda a criatura” (Santo Agostinho, Comentário ao Gênesis, São Paulo: Paulus, 2005 (Coleção Patrística; 21), IV.12, p. 133).

[10] “Deus não descansou literalmente, Ele simplesmente terminou a sua obra de Criação. Se Ele tivesse descansado, tudo o que Ele havia feito nos primeiros seis dias teria se desintegrado. Deus não se cansa; Ele esteve tão ativo no sétimo dia como estivera nos outros seis – sustentando tudo que Ele havia feito” (John F. MacArthur, Jr., Deus: face a face com sua Majestade, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2013, p. 97).

[11]“Seis dias farás a tua obra, mas, ao sétimo dia, descansarás; para que descanse o teu boi e o teu jumento; e para que tome alento o filho da tua serva e o forasteiro” (Ex 23.12).

[12]Veja-se: Fred van Dyke, et. al. A Criação Redimida, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 90ss. Francis A. Schaeffer, Poluição e a Morte do Homem, passim. Sobre o panteísmo moderno, ver, em especial, o segundo capítulo, intitulado: “Panteísmo: O Homem é semelhante ao capim”, p. 17ss.

[13] “Neste Salmo (Salmo 91) somos ensinados que Deus vigia sobre a segurança de seu povo e jamais o abandona nos momentos de perigo.  São exortados a avançar pelo meio dos perigos na confiança de sua proteção. A verdade inculcada é de uma grande utilidade prática, pois embora muitos falem tanto da providência divina e confessem crer que Deus exerce uma vigilância especial sobre seus próprios filhos, poucos são aqueles que realmente se dispõem a confiar-lhe sua segurança” (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 2002, v. 3, (Sl 91), p. 444).

[14] Esses assuntos relacionados à Criação e Preservação, discuto com mais vagar em meu livro, O homem no teatro de Deus: providência, tempo, história e circunstância, Eusébio, CE.: Peregrino, 2019,  p. 117-142.

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