Teologia da Evangelização (81)

2.4.9.3. Definindo a doutrina

Podemos dizer que a Eleição é o ato eterno de Deus, por meio do qual, Ele decretou – livre, soberana e misericordiosamente – salvar em Cristo Jesus um determinado número de homens – dentre toda a raça humana voluntariamente caída –, aplicando, no decorrer da História a sua graça Redentora, capacitando-os, pelo Espírito Santo, a responderem com fé, à mensagem redentiva de Cristo, sendo preservados assim, até o fim.

2.4.9.4. Uma demonstração prática da doutrina

Duas coisas obrigam à pregação da predestinação. A primeira é a humilhação do nosso orgulho e o reconhecimento da graça de Deus; e a segunda é a natureza da fé Cristã em si mesma. – Martinho Lutero (1483-1546).[1]

Quando Paulo pregava o Evangelho, ele sabia que a verdade da eleição divina não era nenhum empecilho para o amplo alcance de sua mensagem. Em vez disso, ele via a graça soberana como uma garantia do seu bom êxito. – Steven J. Lawson.[2]

A propagação do calvinismo foi incomum. Em contraste com o catolicismo, que se manteve pela força militar e civil,  e com o luteranismo, que sobreviveu por tornar-se uma religião de políticos, o calvinismo tinha, em geral, apenas sua coerência lógica e sua fidelidade às Escrituras. Em uma geração, ele se propagou pela Europa. – Charles Miller.[3]  

 Quando nos familiarizamos com os textos de Calvino e lemos algo sobre a sua vida e ministério, descobrimos um homem, ciente de suas lutas e pecados,[4] que busca sempre uma harmonia entre o que acredita ser a correta interpretação das Escrituras e a sua vida pessoal, valendo-se da Palavra, dos Sacramentos e da oração como meios fundamentais de crescimento em sua fé,[5] procurando viver conforme o modelo proposto por Deus em Cristo.[6]

          Ao mesmo tempo, transpira em seus textos um amor a Deus e à sua Igreja, dedicando-se com todo empenho a glorificar a Deus por meio de sua obediência sincera na concretização do que considera ser a vontade de Deus.

          Busca viver conforme escrevera a Farel quando, mesmo desejando permanecer em Estrasburgo,  atende ao pedido do  Conselho dos Duzentos,  e à persuasiva sugestão de Farel,  voltando para Genebra: “Mas quando eu me lembro que não pertenço a mim próprio, eu ofereço meu coração, apresentado como um sacrifício ao Senhor”.[7] 

          Dentro desse propósito, não mede esforços para levar adiante a sua vocação. Mesmo com o corpo fragilizado por tantas dores e doenças,[8] falta de recursos, carga extenuante de trabalho, calúnias,[9]  incompreensões e querelas intermináveis,[10] ele persegue com perseverança[11] o alvo colocado por Deus em seu coração. Em outras palavras: Ele não abandona sua vocação.[12]

          Para Calvino, cosmovisão é um compromisso de fé e prática. Por isso, o seu trabalho em Genebra consistiu na aplicação de sua fé às condições concretas de sua existência. A fé é chamada a se materializar nos desafios que se configuram diante de nós em nossa história de vida.

Maringá, 07 de outubro de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]Martin Luther, De Servo Arbitrio.In:E. Gordon Rupp; Philip S. Watson, eds.Luther and Erasmus: Free Will and Salvation,Philadelphia: The Westminster Press, 1969, p. 137.

[2] Steven J. Lawson, Fundamentos da Graça: 1.400 a.C. -100 d.C: longa linha de vultos piedosos,  São José dos Campos, SP.: Editora Fiel,  2012, v. 1, p. 671

[3] Charles Miller, The Spread of Calvinism in Switzerland, Germany, and France. In: John H. Bratt, ed. The Rise and Development of Calvinism, Grand Rapids, MI.: Eerdmans, 1959, p. 27.

[4]No primeiro dia de 1553, período turbulento, Calvino escreve a sua carta dedicatória dos comentários do Evangelho de João aos síndicos de Genebra. A certa altura diz:

“Espontaneamente reconheço diante do mundo que mui longe estou de possuir a cuidadosa diligência e outras virtudes que a grandeza e a excelência do ofício requerem de um bom pastor, e como continuamente lamento diante de Deus os numerosos pecados que obstruem meu progresso, assim me aventuro declarar que não estou destituído de honestidade e sinceridade na realização de meu dever” (João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1,  p. 23). Entende que “quanto mais eminentemente alguém se destaca em santidade, mais ele se sente destituído da perfeita justiça e mais que claramente percebe que em nada pode confiar senão unicamente na misericórdia de Deus” (João Calvino, O Livro dos Salmos,São Paulo: Paracletos, 1999, v. 2, (Sl 32.1), p. 42).

[5] “Invocar a Deus é o principal exercício  da fé e da esperança; e é assim que obtemos da parte de Deus todas as bênçãos” (João Calvino, Efésios,  São Paulo: Edições Paracletos, 1998, (Ef 6.18), p. 195). “Nada anima mais nossa esperança do que nos lembrarmos da benevolência pregressa de Deus, e, em meio às suas orações, amiúde encontramos Davi dedicando-se a reflexões desse gênero” (João Calvino, O Livro dos Salmos,  São Paulo: Paracletos, 1999, v. 2, (Sl 61.3), p. 563). “A Palavra de Deus e os seus santos sacramentos têm mais importância e mais poder para preservar do que os vícios e erros de alguns para destruir” (João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 2, (II.4), p. 104). “Essa Palavra é algo vivo e cheio de poder secreto, a qual não deixa nada no homem que não seja tocado” (João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 4.12), p. 110). “Ninguém jamais aprenderá o que Cristo é, ou o propósito de suas ações e sofrimentos, salvo pela orientação e ensino das Escrituras. Até onde, pois, cada um de nós deseja progredir no conhecimento de Cristo, teremos que meditar bastante e continuamente sobre a Escritura” (João Calvino, O evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, (Jo 2.17),  p. 100).

[6]  “A medida de todos nós é sermos aquilo que Deus pretende que sejamos” (João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1,  (Jo 3. 27), p. 142).

[7]John Calvin, “Letter to Farel,” John Calvin Collection,nº 73. (Edição brasileira: Cartas de João Calvino, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 49). Posteriormente, pregando em Genebra (26/02/1554), diria: “Em primeiro lugar temos de aprender a sujeitar nosso coração a ser obediente a Deus” (Juan Calvino, El Carácter de Job, Sermones Sobre Job, Jenison, Michigan: T.E.L.L., 1988, (Sermon nº 1), p. 32). “Quanto tem avançado aquele homem que há aprendido a não se pertencer a si mesmo, nem a ser governado por sua própria razão, senão que submete a sua mente a Deus! (…) O serviço do Senhor não só implica uma autêntica obediência, senão também a vontade de pôr aparte seus desejos pecaminosos e submeter-se completamente à direção do Espírito Santo” (John Calvin, Golden Booklet of the True Christian Life, 6. ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1977, p. 21).

[8]Vejam-se: John Calvin, To Farel, “Letters,” John Calvin Collection,[CD-ROM], (Albany, OR: Ages Software, 1998), nº 34; Vejam-se: John Calvin, To the Physicians of Montpellier, “Letters,” John Calvin Collection,[CD-ROM], nº 665. (Em português: As Cartas de João Calvino, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 173-177);  John Calvin, To Monsieur de Falais, “Letters,” John Calvin Collection,[CD-ROM], 161;  John Calvin, To Mercer, “Letters,” John Calvin Collection,[CD-ROM], nº 494; T.H.L. Parker, Portrait of Calvin, London: SCM Press, 1954, p. 72; Thea B. Van Halsema, João Calvino era Assim,São Paulo: Editora Vida Evangélica, 1968, p. 131-132).

[9] Calvino falando das diversas calúnias que levantavam contra ele (João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 2, (Sl 64.4), p. 601), partindo, inclusive de falsos irmãos, diz: “Só porque afirmo e mantenho que o mundo é dirigido e governado pela secreta providência de Deus, uma multidão de homens presunçosos se ergue contra mim alegando que apresento Deus como sendo o autor do pecado (Ver:João Calvino, O Livro dos Salmos,  v. 2, (Sl 51.4), p. 429)…. Outros tudo fazem para destruir o eterno propósito divino da predestinação, pelo qual Deus distingue entre os réprobos e os eleitos….” (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999,  v. 1, p. 44,45.  Veja-se também: John Calvin, “To the Seigneurs of Berne,” John Calvin Collection,  [CD-ROM],  (Albany, OR: Ages Software, 1998),nº 398)

[10] No dia 25 de dezembro de 1555, Calvino escreve ao pastor de Zurich, Johann Wolf (c. 1521-1572), amigo de Bullinger, em resposta à sua carta de 3 de dezembro. Nela retrata algumas de suas angústias:

“Creia-me, tive menos problemas com Serveto  e tenho agora com Westphal e seus companheiros, do que com aqueles que estão próximos de mim, cuja quantidade não pode ser estimada e cujas paixões são irreconciliáveis. Se pudesse escolher, seria melhor ser queimado pelos papistas do que ser eternamente praguejado pelos vizinhos. Eles não me dão um momento de descanso, embora possam ver claramente que estou entrando em colapso sob a carga do trabalho, perturbado por tristes acontecimentos intermináveis e por demandas importunas, Meu único conforto é que a morte logo me tirará desse serviço sobremodo difícil” (Calvino para o pastor em Zurich: Rudolf Schwarz, ed., Johannes Calvins Lebenswerk in seinen Briefen,  Neukirchener Verlag: Germany, 1962 v. 2, p. 819).

[11] “Por mais que o mundo nos odeie e nos persiga, não obstante devemos continuar firmes em nosso posto, para não nos privarmos do direito de reivindicar as promessas de Deus, ou para que elas não nos escapem; e por mais que e quanto mais somos molestados, devemos continuar sempre sólidos e inabaláveis na fé para a qual fomos chamados por Deus” (João Calvino,O Livro dos Salmos,São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 11.1), p. 237).

[12] “Nada poderá encher-nos de mais coragem do que o reconhecimento de que fomos chamados por Deus. Pois desse fato podemos inferir que o nosso labor, que está sob a direção divina e no qual Deus nos estende sua mão, não ficará infrutífero. Portanto, pesaria sobre nós uma acusação muito grave caso rejeitássemos o chamado divino” (João Calvino, As Pastorais,São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 6.12), p. 173). “Além de tudo mais, se não tivermos a nossa vocação como uma regra permanente, não poderá haver clara consonância e correspondência entre as diversas partes da nossa vida. Assim, será muito bem ordenada e dirigida a vida de quem a conduzir tendo em vista esse propósito. Desse modo de entender e de agir nos resultará esta singular consolação: Não há obra, por mais humilde e humilhante que seja, que não brilhe diante de Deus e que não Lhe seja preciosa, contanto que a realizemos no serviço e cumprimento da nossa vocação” (João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006,  v. 4, (IV.17). p. 225).

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