Teologia da Evangelização (40)

2.4.3.2.2.4. A Fé salvífica   (Continuação)

Deus providencia os meios para que os seus eleitos ouçam o Evangelho e, ao mesmo tempo, os chama poderosamente, aplicando a Palavra aos seus corações.

          Calvino, resume este ensinamento:

O reino do céu deveras se nos abre pela pregação externa do evangelho, mas ninguém entra nele a menos que Deus lhe estenda sua mão; ninguém se aproxima a menos que seja interiormente atraído pelo Espírito. Portanto, Paulo e Barnabé mostram, pelos resultados, que sua vocação era aprovada e ratificada por Deus, porquanto a fé dos gentios era precisamente como se um selo fosse impresso pela mão de Deus, a fim de a confirmar.[1]

          A eleição divina é-nos totalmente estranha até que nos conscientizemos desta realidade pela fé.     Como comenta Agostinho, “a misericórdia de Deus se lhe antecipa, sendo chamado para que cresse”.[2]

          A fé é a causa instrumental de nossa salvação; todavia, a causa essencial é a nossa eleição. A fé e o arrependimento são resultados da eleição.[3]

      Usando uma expressão de Calvino, podemos dizer que a “eleição é mãe da fé”.[4] Dito de outro modo:  “A fé é um fruto da eleição”.[5] A fé não é precondição da eleição, no entanto, ela evidencia e confirma como um selo a nossa eleição.[6]

          A fé em nada é meritória. Uma fé autossuficiente seria uma negação de sua própria essência. 

          Calvino comenta:

A causa eficaz de fé não é a perspicácia de nossa mente, mas a vocação de Deus. E ele [Pedro] não se refere somente à vocação externa, que é em si mesma ineficaz; mas à vocação interna, realizada pelo poder secreto do Espírito, quando Deus não somente emite sons em nossas orelhas pela voz do homem, mas, pelo Seu próprio Espírito atrai intimamente nossos corações para Ele mesmo.[7]

O fundamento de nossa vocação é a eleição divina gratuita pela qual fomos ordenados para a vida antes que fôssemos nascidos. Desse fato depende nossa vocação, nossa fé, a concretização de nossa salvação.[8]

Deste modo, percebemos como Deus em sua misericórdia em tudo se antecipou a nós.[9] A fé é dos eleitos de Deus (Tt 1.1). Aquele que crê é um eleito de Deus. No entanto, devemos enfatizar que esta relação não é mecânica: Eleição & Fé.

Os eleitos “não são eleitos porque creram, mas são eleitos para que cheguem a crer”, resume Agostinho (354-430).[10] A Palavra nos ensina que, fomos eleitos para que tivéssemos fé; e esta fé é gerada e sedimentada em nossos corações pelo Espírito por meio do conhecimento de Cristo.

“A fé salvadora é um salto à luz porque se baseia no conhecimento do Senhor Jesus Cristo”, ilustra Kuiper (1886-1966).[11] E o conhecimento de Cristo deve ser a nossa vocação incondicional. “E a vida eterna é esta: que te conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste” (Jo 17.3).

          Paulo considerou todas as outras coisas como perda, diante da realidade sublime do conhecimento de Cristo. Conhecer a Cristo era a sua prioridade. Ele declara: “Sim, deveras considero tudo como perda, por causa da sublimidade do conhecimento de Cristo Jesus meu Senhor: por amor do qual, perdi todas as cousas e as considero como refugo, para ganhar a Cristo” (Fp 3.8).[12]

          Deus não nos elegeu na eternidade porque um dia teríamos fé; mas sim, para que tivéssemos fé: Sem a graça de Deus não haveria fé.[13] A fé é essencial à salvação, como uma evidência da nossa eleição: Só os que creem serão salvos; só creem os eleitos! (1Ts 1.3,4; 2Ts 2.13; Tt 1.1).[14] A fé não tem méritos salvadores. Ela é apenas o instrumento gracioso de Deus para a recepção da salvação preparada pelo Trino Deus para o seu povo escolhido (Lc 8.12; At 16.31; 1Co 1.21; Ef 2.8; 2Ts 2.13).[15]

          Deus é quem abre o nosso coração e mente para que possamos entender salvadoramente a mensagem do Evangelho. Ilustremos isso com alguns episódios narrados por Lucas.

          Após a ressurreição de Cristo os discípulos ainda não entendiam adequadamente as Escrituras em relação ao Messias, Jesus Cristo. Com dois deles, no caminho de Emaús, o Senhor abriu-lhes os olhos para que a compreendessem e cressem por meio da exposição das Escrituras. Foi esta a percepção deles.

          Narra Lucas:

E aconteceu que, quando estavam à mesa, tomando ele o pão, abençoou-o e, tendo-o partido, lhes deu; então, se lhes abriram (dianoi/gw)[16] os olhos, e o reconheceram; mas ele desapareceu da presença deles. E disseram um ao outro: Porventura, não nos ardia o coração, quando ele, pelo caminho, nos falava, quando nos expunha (dianoi/gw) as Escrituras? (Lc 24.30-32).

          Agora, com os demais discípulos, Jesus mostra como as Escrituras se cumpriram em seu ministério, vida, morte e ressurreição. Lucas resume: “Então, lhes abriu (dianoi/gw) o entendimento (nou=j) para compreenderem (suni/hmi) as Escrituras” (Lc 24.45).

          De passagem, podemos observar que o caminho para atingir a mente e o coração das pessoas é a exposição da Palavra. O Espírito que opera por meio dela não força as evidências, nem nos obriga a diminuir a nossa capacidade de pensar, antes, nos faz enxergar e crer nas evidências que estão ali diante de nós tão eloquentemente (At 3.16; 16.14; 18.27; Rm 4.16; 1Co 3.5; Fp 1.29).[17]

          Lucas relata aspectos da rotina evangelística de Paulo:

Paulo, segundo o seu costume, foi procurá-los e, por três sábados, arrazoou com eles acerca das Escrituras, expondo (dianoi/gw = “explicando”, “interpretando”) e demonstrando ter sido necessário que o Cristo padecesse e ressurgisse dentre os mortos; e este, dizia ele, é o Cristo, Jesus, que eu vos anuncio. (At 17.3).

 São Paulo, 19 de agosto de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]John Calvin, Commentary upon the Acts of the Apostles, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1996 (Reprinted), v. 19, (At 14.27), p. 31.

[2] Agostinho, A Graça (II), São Paulo: Paulus, 1999, p. 193. “É em razão de ser misericordioso que Deus primeiro nos recebe em sua graça, e então prossegue nos amando” (João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 1.2), p. 27).

[3] “O arrependimento não está no poder do homem” (João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 6.6), p. 155).

[4] Ver: João Calvino, As Institutas, III.22.10.

[5]João Calvino, Sermões em Efésios, Brasília, DF.: Monergismo, 2009, p. 76.

[6] Ver: João Calvino, As Institutas, III.24.3.

[7]John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1996 (reprinted), v. 22, (2Pe 1.3), p. 369.

[8]João Calvino, Gálatas, (Gl 4.9), p. 128.

[9] Veja-se: St. Augustin, On The Gospel of St. John. In: Philip Schaff; Henry Wace, eds. Nicene and Post-Nicene Fathers of Christian Church, (First Series), 2. ed. Peabody, Massachusettes: Hednrickson Publishers, 1995, v. 7, Tractate 86 (Jo 15.16), p. 354.

[10]Agostinho, A Graça (II), São Paulo: Paulus, 1999, p. 194.

[11]R.B. Kuiper, El Cuerpo Glorioso de Cristo, Michigan: Subcomision Literatura Cristiana de la Iglesia Cristiana Reformada, 1985, p. 230.

[12] “O conhecimento de Deus não está posto em fria especulação, mas Lhe traz consigo o culto” (João Calvino, As Institutas, I.12.1) “Jamais poderemos conhecer demasiadamente as grandes doutrinas da fé, mas se esse conhecimento não nos leva a uma experiência cada vez mais profunda do amor de Cristo, não passa de conhecimento que ‘incha’ (1Co 8.1)” (D.M. Lloyd-Jones, As Insondáveis Riquezas de Cristo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1992, p. 8. “Prefácio”). “O conhecimento é absolutamente essencial; sem conhecimento não pode haver nenhum crescimento. Todavia o conhecimento, no sentido verdadeiramente cristão, nunca é meramente intelectual. É assim, e isso porque é o conhecimento de uma Pessoa. O propósito de toda doutrina, o valor de toda instrução, é levar-nos à Pessoa do nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo” (D.M. Lloyd-Jones, As Insondáveis Riquezas de Cristo, p. 165).

[13] “É pela fé que nos apropriamos da graça de Deus, a qual está oculta e é desconhecida do entendimento carnal” (João Calvino, O Livro dos Salmos,v. 1, (Sl 13.5), p. 267).

[14]3Recordando-nos, diante do nosso Deus e Pai, da operosidade da vossa fé, da abnegação do vosso amor e da firmeza da vossa esperança em nosso Senhor Jesus Cristo, 4 reconhecendo, irmãos, amados de Deus, a vossa eleição” (1Ts 1.3-4). “…. Devemos sempre dar graças a Deus por vós, irmãos amados pelo Senhor, porque Deus vos escolheu (ai(reomai) desde o princípio para a salvação, pela santificação do Espírito e fé na verdade” (2Ts 2.13). “Paulo, servo de Deus e apóstolo de Jesus Cristo, para promover a fé que é dos eleitos de Deus e o pleno conhecimento da verdade segundo a piedade” (Tt 1.1).

[15] Veja-se: Anthony A. Hoekema, Salvos pela Graça, São Paulo: Cultura Cristã, 1997, p. 195.

[16] Este verbo tem uma aplicação espiritual, conforme a do texto de Lc 24.31,32,45, e também física (Mc 7.34-35).

[17] “Pela fé em o nome de Jesus, é que esse mesmo nome fortaleceu a este homem que agora vedes e reconheceis; sim, a fé que vem por meio de Jesus deu a este saúde perfeita na presença de todos vós” (At 3.16). “Certa mulher, chamada Lídia, da cidade de Tiatira, vendedora de púrpura, temente a Deus, nos escutava; o Senhor lhe abriu (dianoigw) o coração para atender às coisas que Paulo dizia (At 16.14). “Querendo ele percorrer a Acaia, animaram-no os irmãos e escreveram aos discípulos para o receberem. Tendo chegado, auxiliou muito aqueles que, mediante a graça, haviam crido(At 18.27). “Essa é a razão por que provém da fé, para que seja segundo a graça, a fim de que seja firme a promessa para toda a descendência, não somente ao que está no regime da lei, mas também ao que é da fé que teve Abraão (porque Abraão é pai de todos nós” (Rm 4.16). “Quem é Apolo? E quem é Paulo? Servos por meio de quem crestes, e isto conforme o Senhor concedeu a cada um” (1Co 3.5). “Porque vos foi concedida a graça de padecerdes por Cristo e não somente de crerdes nele (Fp 1.29).

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