Teologia da Evangelização (29)

2.4.3.2.2.2. Vocação

2.4.3.2.2.2.1. A Palavra como instrumento eficaz do Trino Deus

A vocação é um ato exclusivo de Deus. O Espírito de Deus por meio da Palavra nos chama eficazmente. O Espírito nos regenera,[1] nos atraindo a Cristo, nos capacitando a responder com fé, atendendo ao seu chamado. Em outras palavras, Deus chama eficazmente os seus eleitos (Ef 1.4-5).

Mas, o que significa vocação? Tomemos aqui a definição de Hoekema (1913-1988): “[Vocação eficaz é] a ação soberana de Deus através do Espírito Santo, pela qual Ele habilita o ouvinte do convite do Evangelho a responder ao apelo em arrependimento, fé e obediência”.[2]

            Assim como a eleição eterna, o chamado de Deus não cai no vazio porque Ele é poderoso para levar adiante o seu propósito salvador. “Fiel é Deus, pelo qual fostes chamados (kale/w) à comunhão de seu Filho Jesus Cristo, nosso Senhor” (1Co 1.9).

O Senhor não somente nos convida, antes, opera o seu chamado de modo gracioso, poderoso e eficaz, quebrando toda a resistência pecaminosa de nossa parte.

            O homem natural está tão dominado pelo seu pecado, tão prazerosamente cativo à vontade de Satanás, que jamais poderia desejar a sua salvação já que a sua sensação é de autonomia (2Tm 2.25-26).[3]

O pecado é enganoso justamente pela capacidade que tem de nos socializar em seu domínio, não nos deixando enxergar o nosso estado terminal.

O pecado entre as suas artimanhas de sobrevivência e fortalecimento, se vale da concessão da falsa sensação de liberdade. Todos queremos ser livres.  O trágico é que justamente o pecado, o mais escravizador de todos os senhores (Jo 8.34), que nos conduz a todo tipo de amarras, nos levando a multifacetados vícios escravizantes, faz-nos pensar que a liberdade buscada, o sentido da vida perseguido, está justamente no vício. Que tragédia!

O supremo encarcerador nos fascina com a promessa de total liberdade. É precisamente por isso que, dominados por  esse engano, o governo de Cristo é considerado como “laços” e “algemas” (cordas, correntes) pelos incrédulos (Sl 2.3).

            Aqui, o pregador deve atuar considerando essas duas realidades: O pecador jamais atenderá à mensagem que anunciamos. Deus é poderoso para, por meio do Evangelho, método que Ele mesmo estabeleceu, alcançar a todos a quem Ele destinou fazê-lo.

Calvino afirma esta mesma verdade de forma inversa: “O reino do céu deveras se nos abre pela pregação externa do evangelho, mas ninguém entra nele a menos que Deus lhe estenda sua mão; ninguém se aproxima a menos que seja interiormente atraído pelo Espírito”.[4]

Deus transforma as nossas vozes que podem apenas alcançar os ouvidos dos homens, e as transporta poderosamente para o coração homem, os fazendo ter consciência de sua situação e a desejarem desesperadamente a salvação.

            Paulo enfatizando a liberdade soberana de Deus na manifestação de sua vontade e graça, escreve: “Que nos salvou e nos chamou (kale/w) com santa vocação (klh=sij); não segundo as nossas obras, mas conforme a sua própria determinação e graça que nos foi dada em Cristo Jesus, antes dos tempos eternos” (2Tm 1.9).

            Jesus Cristo já dissera aos judeus incrédulos que o interpelaram: “As minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem” (Jo 10.27). (Vejam-se também: Rm 8.30; Jo 6.44; 16.13-14; Rm 4.17).[5] Aqueles que o seguem são de fato os que lhe pertencem, constituindo o seu povo.[6]

            O autor de nossa eleição é o autor de nosso chamado (Rm 8.29-30).[7]  O instrumento ordinário determinado por Deus para este chamado , é o Evangelho, o qual compete à Igreja anunciar de forma fiel, intensa e sinceramente a todas as pessoas, independentemente de raça, classe social, cor de pele ou idade (Is 45.22; 55.1,6,7; Mt 11.28; Mc 16.15-16; Ap 22.17).[8]

A igreja em sua missão é agente da Trindade enviada ao mundo com a nobre tarefa de representar o seu Senhor conclamando os homens ao arrependimento e à fé, a fim de que crendo, sendo assim reconciliados com Deus por meio de Cristo, sejam incorporados à igreja, o Corpo de Cristo, passando a ter comunhão com o Senhor e os demais membros, aguardando em adoração e proclamação a vinda do Reino.

            Esta é a nossa tarefa. Todavia, o chamado interno, que é poderosamente eficaz (“vocação eficaz”), é operado pelo Espírito Santo em nosso coração que nos regenera, nos convence por meio da Palavra de nosso pecado, conduzindo-nos ao arrependimento e fé em Cristo Jesus. Somente o Espírito torna o Verbum Dei externum em Verbum Dei internum. Deus opera em nosso coração mudando a nossa disposição criando fé. Somente Deus pode operar esta transformação vital.[9]

Bavinck enfatizado a soberania de Deus, escreve:

Para Deus, nenhuma porta é trancada, nenhuma criatura é inalcançável, nenhum coração é inacessível. Com seu Espírito, Ele pode entrar na parte mais íntima de cada ser humano , com ou sem a Palavra, por meio da consciência ou independente dela, em idade avançada ou no momento da concepção.[10]

            Nas palavras de Cristo, vemos os dois aspectos da mesma operação divina, conforme diversos outros textos das Escrituras:

37Todo aquele que o Pai me dá, esse virá a mim; e o que vem a mim, de modo nenhum o lançarei fora. (…) 44 Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o trouxer; e eu o ressuscitarei no último dia. 45 Está escrito nos profetas: E serão todos ensinados por Deus. Portanto, todo aquele que da parte do Pai tem ouvido e aprendido, esse vem a mim. (…) 65 E prosseguiu: Por causa disto, é que vos tenho dito: ninguém poderá vir a mim, se, pelo Pai, não lhe for concedido. (Jo 6.37,44-45,65).

            Packer (1926-2020) a respeito desse e de outros textos dentro do contexto, escreveu:

O plano de Deus para salvar o pecador por meio de sua graça soberana é às vezes visto como um tema para debates calorosos. Acredita-se que o fato de Deus ter esse plano de salvação é uma ameaça para queles que ainda não creem, mas por implicar em dizer que se essas pessoas se voltarem para Deus, podem descobrir que ele não terá misericórdia delas por não fazerem parte de seus eleitos. Contudo, esse temor não procede, porque ninguém se volta para Deus – “ninguém pode vir a mim”, disse Jesus – sem obter a graça soberana que implementa o misericordioso plano divino.[11]

            Na Oração Sacerdotal, Jesus Cristo diz que seus discípulos pertencem a Deus desde a eternidade (Jo 17.6). Notemos então, que Deus chama os seus por meio da Palavra. A transmissão da Palavra faz parte do propósito eterno de Deus.[12] É um elo fundamental dentro da consecução do Pacto da Graça, tendo em Jesus Cristo o seu fiel despenseiro.

            Os gentios, extasiados com a mensagem da graça também destinada a eles, vibram. Lucas registra: Os gentios, ouvindo isto, regozijavam-se e glorificavam a palavra do Senhor, e creram todos os que haviam sido destinados para a vida eterna” (At 13.48).[13]

            Calvino (1509-1564) enfatiza: “Só quando Deus irradia em nós a luz de seu Espírito é que a Palavra logra produzir algum efeito. Daí a vocação interna, que só é eficaz no eleito e apropriada para ele, distingue-se da voz externa dos homens”.[14]

As Escrituras apontam para Cristo fornecendo-nos um conhecimento fidedigno. Ele nos conduz ao Pai: pertencemos a Deus. Fomos chamados por intermédio da Palavra. Paulo tem esta consciência: “Para o que também vos chamou (kale/w) mediante o nosso evangelho, para alcançardes a glória de nosso Senhor Jesus Cristo” (2Ts 2.14).

            Os Cânones de Dort (1619)descrevem a forma como a graça de Deus opera em nosso chamado:

Deus realiza seu bom propósito nos eleitos e opera neles a verdadeira conversão da seguinte maneira: ele faz com que ouçam o Evangelho mediante a pregação e poderosamente ilumina suas mentes pelo Espírito Santo de tal modo que possam entender corretamente e discernir as coisas do Espírito de Deus. Mas, pela operação eficaz do mesmo Espírito regenerador, Deus também penetra até os recantos mais íntimos do homem. Ele abre o coração fechado e enternece o que está duro, circuncida o que está incircunciso e introduz novas qualidades na vontade. Esta vontade estava morta, mas ele a faz reviver; era má, mas ele a torna boa; estava indisposta, mas ele a torna disposta; era rebelde, mas ele a faz obediente, ele move e fortalece esta vontade de tal forma que, como uma boa árvore, seja capaz de produzir frutos de boas obras.[15]

            Olhando por outro ângulo, entendemos que esta é a mais nobre tarefa da Igreja: glorificar a Deus por meio de sua obediência, anunciando fielmente a Palavra para que os pecadores eleitos sejam reunidos e possam, juntamente conosco, glorificar a Deus por sua maravilhosa graça, cultuando-o em Espírito e verdade.

São Paulo, 05 de agosto de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] “Seria tolice um pregador chegar a um enterro e encorajar os cadáveres a levar uma vida reta. Para que as palavras pudessem fazer algum efeito, os cadáveres teriam de reviver. Só assim poderiam responder” (James M. Boice, Fundamentos da Fé Cristã: Um manual de teologia ao alcance de todos, Rio de Janeiro: Editora Central Gospel, 2011, p. 445).

[2] A.A. Hoekema, Salvos pela Graça,São Paulo: Cultura Cristã, 1997, p. 93.

[3]25 Disciplinando com mansidão os que se opõem, na expectativa de que Deus lhes conceda não só o arrependimento para conhecerem plenamente a verdade,  26 mas também o retorno à sensatez, livrando-se eles dos laços do diabo, tendo sido feitos cativos por ele para cumprirem a sua vontade” (2Tm 2.25-26).

[4] John Calvin, Commentary upon the Acts of the Apostles, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1996 (Reprinted), v. 19/1, (At 14.27), p. 31.

[5]13 quando vier, porém, o Espírito da verdade, ele vos guiará a toda a verdade; porque não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos anunciará as coisas que hão de vir. 14 Ele me glorificará, porque há de receber do que é meu e vo-lo há de anunciar” (Jo 16.13-14). “Como está escrito: Por pai de muitas nações te constituí.), perante aquele no qual creu, o Deus que vivifica os mortos e chama à existência as coisas que não existem” (Rm 4.17).

[6] Veja-se:  François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 3, p. 120-121.

[7]A Confissão de Westminster declara: “Todos aqueles que Deus predestinou para a vida, e só esses, é ele servido, no tempo por ele determinado e aceito, chamar eficazmente pela sua palavra e pelo seu Espírito, tirando-os por Jesus Cristo daquele estado de pecado e morte em que estão por natureza, e transpondo-os para a graça e salvação” (X.1). “Na verdade, o Senhor chama eficazmente só os eleitos” (João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 6.4), p. 153). “O fundamento de nossa vocação é a eleição divina gratuita pela qual fomos ordenados para a vida antes que fôssemos nascidos. Desse fato depende nossa vocação, nossa fé, a concretização de nossa salvação” (João Calvino, Gálatas, São Paulo: Paracletos, 1998, (Gl 4.9), p. 128). Veja-se: John Murray, Redenção: Consumada e Aplicada, 2. ed. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2010, p. 82-83.

[8] Vejam-se: Os Cânones do Dort, São Paulo: Cultura Cristã, [s.d.], II. Art. 5; L. Berkhof, Teologia Sistemática,Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1990,p. 463-465; A.A. Hoekema, Salvos pela Graça,São Paulo: Cultura Cristã, 1997, p. 77-86.

[9]Veja-se: R.C. Sproul, Somos todos teólogos: uma introdução à teologia, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2017, p. 330-332.

[10] Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 4, p. 126.

[11]J.I. Packer, A Redescoberta da santidade,  2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2018, p. 46.

[12]Quanto à conexão entre pregação e salvação, veja-se: Hermisten M. P. Costa, Efésios – O Deus Bendito, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 98ss.

[13] Calvino resume: “Ora, há a vocação universal, pela qual, mediante a pregação externa da Palavra, Deus convida a si a todos igualmente, ainda aqueles aos quais a propõe como aroma de morte [2Co 2.16] e matéria da mais grave condenação. A outra é a vocação especial, da qual digna ordinária e somente aos fiéis, enquanto pela iluminação interior de seu Espírito faz com que a Palavra pregada se lhes assente no coração. Contudo, às vezes também faz participantes dela aqueles a quem ilumina apenas por um tempo; depois os abandona ao mérito de sua ingratidão e os fere de cegueira mais profunda” (João Calvino, As Institutas (2006), III.24.8).

[14]João Calvino, Exposição de Romanos, São Paulo: Paracletos, 1997, (Rm 10.16), p. 374. A vocação eficaz do eleito “não consiste somente na pregação da Palavra, senão também na iluminação do Espírito Santo” (J. Calvino, As Institutas, III.24.2). “A pregação externa da Palavra é por si só infrutífera, a não ser que ela fira mortalmente os réprobos, de modo tal que os faça indesculpáveis diante de Deus. Mas quando a graça secreta do Espírito vivifica [a mente dos réprobos], todos os sentidos inevitavelmente serão afetados de tal maneira que a pessoa se sente preparada a ir aonde quer que Deus a chame” (João Calvino, O evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, (Jo 1.43), p. 79).

[15] Os Cânones de Dort, São Paulo: Cultura Cristã, [s.d.], III-IV, Art. 11.

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