Rei e Pastor: O Senhor na visão e vivência dos salmistas (4)

I – O Deus dos Salmistas

 

As Escrituras não são especulativas. Isso por dois motivos óbvios: Deus como senhor de todo o conhecimento e verdade, de nada precisa saber. Todo o saber lhe pertence; nada lhe é derivado. O segundo motivo é que Ele não deseja que o seu povo se perca em especulações de assuntos não revelados. Guiar-se por especulações significa desejar ir além do que Deus revelou e, ao mesmo tempo, perder-se em hipóteses e teorias frívolas já que pretendem “decifrar” o que Deus sábia e soberanamente não nos quis dar a conhecer. “Nossas especulações não podem servir de medida para nosso Deus”, acentua Packer.[1]

 

A Bíblia é um livro descritivo e extremamente prático. Ela não discute, por exemplo, sobre a existência de Deus ou faz abstrações de sua natureza e essência, antes, parte do pressuposto da existência do Deus Todo-Poderoso que se revela Criando com sabedoria e poder todas as coisas. Portanto, mais do que uma teoria ou abstração, as Escrituras nos põem em contato com o Deus vivo e pessoal, que age e fala.[2] É o Deus que se relaciona e cuida de seu povo.

 

A história do povo de Israel é de certa forma a história da revelação concreta de Deus na História: no tempo e no espaço. “A Escritura, em sua totalidade, é o próprio livro da providência de Deus”, resume Bavinck (1854-1921).[3]

 

Deus é o Senhor eterno antes e independentemente de sua Criação. “Antes que os montes nascessem e se formassem a terra e o mundo, de eternidade a eternidade, tu és Deus”, escreveu Moisés (Sl 90.2).

 

Moisés por revelação direta de Deus, registra de forma inspirada (2Pe 1.20-21), narrando os atos criadores de Deus, sem se preocupar em falar com mais detalhes a respeito daquele que mediante a sua Palavra, faz com que do nada surja a vida, criando o universo, estabelecendo suas leis próprias e, avaliando a sua criação como boa.

 

Moisés apenas apresenta o Deus Todo-Poderoso exercitando o seu poder de forma criadora, segundo o seu eterno propósito. Deus existe − este é o fato pressuposto em toda a narrativa da Criação. Deus cria segundo a sua Palavra e isto nos enche de admiração e reverente temor: a Palavra de Deus é o verbo criador que manifesta a determinação e o poder de Deus (Gn 1.1,26,27; Sl 33.6,9; Jo 1.1-3; Hb 11.3), o qual criou as coisas com sabedoria (Pv 3.19).

 

Deus infinito-pessoal que se revela

 

As Escrituras nunca tratam de Deus de forma impessoal ou abstrata, mas, como o Deus infinito-pessoal que se revela[4] e se relaciona misericordiosamente com os seus.

 

Obviamente, o Deus dos salmistas e das Escrituras não é um deus criado pela imaginação do homem projetando em sua criação seus desejos e vícios,[5] o que facilmente conduz da idolatria ao ateísmo.[6]

 

Douta ignorância

 

Deus não se deixa invadir pela razão humana, ou mesmo pela fé. Ele se dá a conhecer livre, fidedigna e explicitamente. Deus se revela a si mesmo como Senhor.[7] E “Senhorio significa liberdade”, pontua Barth (1886-1968).[8]

 

Conhecer a Deus é um privilégio da graça que tem o seu início sempre no Deus Trino (Mt 11.27;1Co 12.3).

 

“Quanto mais conhecemos Deus, mais compreendemos, e sentimos que seu mistério é inescrutável”.[9] A douta ignorância faz parte essencial da fé genuína e sincera.[10] O conhecimento de nossa limitação não é inato, antes é precedido pela revelação. Sem a revelação de Deus não há teísmo, ateísmo nem agnosticismo. É no encontro significativamente pessoal com Deus que tomamos conhecimento de nossas limitações.[11]

 

Sem a revelação, o homem passaria toda a sua vida e estaria na eternidade sem o menor conhecimento de Deus por mais engenhosos que fossem os seus métodos, por mais sistemáticas que fossem as suas pesquisas, por mais que evoluísse a ciência… O homem nunca conseguiria chegar a Deus, ou mesmo à sua ideia: ignoraria eternamente a própria ignorância! Entretanto, Deus continuaria sendo o que sempre foi: o Senhor! [12] Todavia, graças a Deus, porque ele soberanamente se revelou a si mesmo, para que possamos conhecê-lo e render-lhe toda a glória que somente a ele é devida. Em Cristo, nós somos confrontados com o clímax e plenitude da revelação de Deus (Jo 14.9-11; 10.30; Cl 1.19; 2.9; Hb 1.1-4).

 

Lewis (1898-1963) escreve de forma perspicaz:

 

O ateísmo (…) é uma coisa por demais simplista. Se todo o universo não tem sentido, nunca descobriríamos que ele não tem sentido, do mesmo modo que, se não houvesse luz no universo, nem, consequentemente, criaturas com olhos, nunca saberíamos que era escuro. A palavra escuro seria uma palavra sem sentido.[13]

 

No entanto, Deus se revelou fidedigna e acessivelmente. “No Filho temos a revelação última de Deus. Da mesma forma como é verdade que quem viu o Filho viu o Pai, também é verdade que quem não viu o Filho, não viu o Pai”, escreve Hendriksen (1900-1982).[14] Jesus Cristo, a plenitude da graça encarnada, é a medida da revelação; o seu padrão e apelo final!

 

Bavinck (1854-1921) exulta:

 

A plenitude do ser de Deus é revelada nEle. Ele não apenas nos apresenta o Pai e nos revela Seu nome, mas Ele nos mostra o Pai em Si mesmo e nos dá o Pai. Cristo é a expressão de Deus e a dádiva de Deus. Ele é Deus revelado a Si mesmo e Deus compartilhado a Si mesmo, e portanto Ele é cheio de verdade e também cheio de Graça.[15]

 

Maringá, 24 de agosto de 2019.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 


 

[1]J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 1990, p. 20.

[2]Veja-se: Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara D’Oeste, SP.: SOCEP, 2001, p. 175.

[3]Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 607.

[4] Veja-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 113.

[5] Veja-se: Hermisten M.P. Costa, Princípios bíblicos de adoração cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2009.

[6] “A perda total de significado implícita no ateísmo é de mais para que muitos suportem. As pessoas precisam de alguns valores, alguns padrões, algumas maneiras para orientar suas vidas. Entre essas pessoas, aqueles que continuam a resistir à crença no verdadeiro Deus tornam-se inconsistentes quanto ao seu ateísmo, ou tornam-se idólatras. Se não querem o verdadeiro Deus, terão de procurar outro” (John Frame, Apologética para a Glória de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2010. p. 150).

[7] Ver: Emil Brunner, Dogmática, São Paulo: Novo Século, 2004, v. 1, p. 181,186ss.

[8] K. Barth, Church Dogmatics, Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 2010, I/1, p. 306.

[9]Emil Brunner, Dogmática, São Paulo: Novo Século, 2004, v. 1, p. 156.

[10] Ver: João Calvino, As Institutas, III.21.2; III.23.8. Na edição de 1541, escrevera: “E que não achemos ruim submeter neste ponto o nosso entendimento à sabedoria de Deus, aos cuidados da qual Ele deixa muitos segredos. Porque é douta ignorância ignorar as coisas que não é lícito nem possível saber; o desejo de sabê-las revela uma espécie de raiva canina” (João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 3 (III.8), p. 53-54).

[11] Ver: Emil Brunner, Dogmática, São Paulo: Novo Século, 2004, v. 1, p. 157, 159ss.

[12] “Ainda que o mundo inteiro fosse incrédulo, a verdade de Deus permaneceria inabalável e intocável” (João Calvino, Gálatas, São Paulo: Paracletos, 1998, (Gl 2.2), p. 48-49).

[13]C.S. Lewis, A essência do Cristianismo autêntico, São Paulo: Aliança Bíblica Universitária, (1979), p. 21.

[14]William Hendriksen, O evangelho de João, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, (Jo 14.9) p. 657.

[15]Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 25-26.

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