Rei e Pastor: O Senhor na visão e vivência dos salmistas (16)

Nossa mente finita

            A nossa mente finita não consegue compreender exaustivamente as perfeições de Deus.[1] O alcance e limite de nosso conhecimento é determinado pela revelação. O não revelado não pode ser objeto de nossas especulações.

A revelação de Deus também não é completa no sentido de abarcar total e exaustivamente o ser de Deus.[2] Porém, “como Deus se revela, assim ele é”.[3] Não há uma representação artificial naquilo que Ele nos dá a conhecer. Portanto, muitíssimos de seus atos soberanos nos escapam. O finito não pode comportar o infinito! No entanto, podemos conhecer a Deus genuína e verdadeiramente à luz de sua autorrevelação.

            Bavinck coloca bem a questão: “Não é contraditório (…) dizer que um conhecimento é inadequado, finito e limitado e ao mesmo tempo é verdadeiro, puro e suficiente”.[4] À frente, insiste: “O conhecimento absoluto, plenamente adequado de Deus, é, portanto, impossível”.[5]

A soberania de Deus na utilização dos meios

            Deus é soberano na utilização dos meios por Ele mesmo estabelecidos. Ele usa sábia, santa e soberanamente os meios que quer. Aqui Ele usou os caldeus para disciplinar a Judá (Hc 1.12/Is 10.5-6). Deus é senhor dos meios e dos fins!

            Os caldeus, por certo, atribuíam as suas vitórias aos seus poderosos feitos (Hc 1.11,15,16). Eles não entendiam que por meio de sua própria livre e espontânea maldade, havia a direção de Deus para o fim proposto. Os seus caminhos são com frequência incompreensíveis à nossa razão. A nossa razão, por sua vez, em nome de uma racionalidade autônoma, especula meios possíveis para explicar a ação de Deus:

Pois eis que suscito os caldeus, nação amarga e impetuosa, que marcham pela largura da terra, para apoderar-se de moradas que não são suas. (Hc 1.6).

Não és tu desde a eternidade, ó SENHOR, meu Deus, ó meu Santo? Não morreremos. Ó SENHOR, para executar juízo, puseste aquele povo; tu, ó Rocha, o fundaste para servir de disciplina. (Hc 1.12).

Os caminhos de Deus são eternos. (Hc 3.6).

Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos, os meus caminhos, diz o SENHOR. (Is 55.8).

A relação entre a fé num Deus santo e justo e a aparente vitória do mal

O livro do profeta Habacuque reflete o conflito entre a fé do profeta e a amarga experiência vivida. Como Deus pode permitir isso? Esta é a questão do profeta. Confesso, que por vezes, é a nossa também.

Ele objetiva mostrar que mesmo que Deus tivesse usado uma nação pagã para disciplinar o seu povo, mais tarde, Ele mesmo destruiria os caldeus devido a sua idolatria e extrema perversidade,[6] resultante de sua própria deliberação.

            No entanto, não devemos nos precipitar. A aparente demora de Deus em nos atender visa nos estimular à prática perseverante da oração e a confiança em suas promessas.

            Calvino (1509-1564) nos consola quanto a isso:

O Pai, cheio de clemência, jamais dorme nem cessa o seu cuidado. Todavia, às vezes parece dormir e cessar, a fim de que por isso sejamos incitados a dirigir-lhe orações e súplicas; recurso divino válido para corrigir a nossa preguiça e o nosso esquecimento. Portanto, é grande perversidade querer alguém fazer com que deixemos de orar, alegando que é coisa supérflua solicitar, por nossas preces, a providência de Deus, a qual, sem ser solicitada, vela pela preservação de todas as coisas. O que ao contrário se vê é que o Senhor não testifica em vão que estará perto de todos os que invocarem seu nome em verdade.[7]

            Por isso, continua o Reformador: “Todo crente deve ter o desejo fervoroso de contar com Deus em cada momento de sua vida”.[8]

            Deus tem o controle preciso de todas as coisas: “Embora, segundo o juízo da carne, Deus pareça retardar demais seus passos, todavia ele mantém supremo domínio sobre todas as coisas, para que Ele, por fim, realize no devido tempo o que determinara”, interpreta Calvino.[9]

            Habacuque começa o livro trazendo um “fardo” (Hc 1.1): a sentença de Deus. Depois revela a sua incompreensão diante dos fatos que estão ocorrendo. Até que ele enquadra corretamente o problema dentro daquilo que tinha certeza absoluta: que Deus é Todo-Poderoso, Eterno, Autossuficiente e Santo. Depois orou, colocando diante de Deus toda a sua perplexidade, descansou em Deus e aguardou atentamente a sua resposta: tirou os olhos do problema e volveu-os para Deus (Hc 2.1). Deus lhe responde. Agora Habacuque mais firme em sua fé, encerra o livro com uma palavra de confiança renovada, reafirmada, mesmo em meio a possíveis provações:

Ainda que a figueira não floresça, nem haja fruto na vide; o produto da oliveira minta, e os campos não produzam mantimento; as ovelhas sejam arrebatadas do aprisco, e nos currais não haja gado, todavia, eu me alegro no SENHOR, exulto no Deus da minha salvação. O SENHOR Deus é a minha fortaleza, e faz os meus pés como os da corça, e me faz andar altaneiramente. (Hc 3.17-19).

            Erickson está correto ao declarar:

Orar é, em grande parte, criar em nós mesmos uma atitude correta com respeito à vontade de Deus. (…) Orar não é bem conseguir que Deus faça nossa vontade, mas demonstrar que estamos interessados tanto quanto Ele na concretização da Sua vontade.[10]

            Aprendamos com o profeta essa lição: conheçamos o nosso Deus, entreguemos-lhe a nossa perplexidade e angústia, seja ela qual for, e aguardemos confiantes a sua resposta: Ele certamente responderá! Os caminhos de Deus são eternos! Os seus pensamentos são inatingíveis. Que Deus nos capacite a nele confiar. Afinal, esse Deus é o nosso Pastor. De nada mais precisamos. Amém

São Paulo, 10 de setembro de 2019.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] “Deus não pode ser apreendido pela mente humana. É mister que Ele se revele através de sua Palavra; e é à medida que Ele desce até nós que podemos, por sua vez, subir até os céus” (João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6,São Paulo: Parakletos, 2000, v. 1, (Dn 3.2-7), p. 186). “A teologia reformada sustenta que Deus pode ser conhecido, mas que ao homem é impossível ter um exaustivo e perfeito conhecimento de Deus (…). Ter esse conhecimento de Deus seria equivalente a compreendê-lo, e isto está completamente fora de questão: ‘Finitum non possit capere infinitum’.” (L. Berkhof, Teologia Sistemática, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1990, p. 32). Do mesmo modo Schaeffer (1912-1984): “A comunicação que Deus tem com o homem é verdadeira, mas isto não significa que seja exaustiva. Esta é uma distinção importante que precisamos sempre ter em mente. Para conhecer qualquer coisa exaustivamente, precisaríamos ser infinitos, como Deus. Mesmo na vida eterna não seremos assim” (Francis A. Schaeffer, O Deus que Intervém, Jaú, SP.: Refúgio; ABU. 1981, p. 143).

[2] Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 33.

[3] Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 114.

[4] Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 110, 113.

[5] Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 110.

[6] Veja-se: Stanley A. Ellisen, Conheça melhor o Antigo Testamento, São Paulo: Editora Vida, 1999 (7. impressão), p. 320.

[7]João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 3, (III.9), p. 93-94.

[8]João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo: Novo Século, 2000, p. 31.

[9]João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 2002, v. 3, (Sl 105.19), p. 648.

[10] Millard J. Erickson, Introdução à Teologia Sistemática,São Paulo: Vida Nova, 1997, p. 179.

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