Pessoa e Obra do Espírito Santo (191)

6.3.6.1. A natureza da fé salvadora 

          1) Definição

                                       Fé salvadora, teocêntrica ou justificadora é um dom da graça de Deus, por meio do qual somos habilitados a receber a Jesus Cristo como nosso único e suficiente Senhor e Salvador e, a crer em todas as promessas do Deus Triúno, conforme estão registradas nas Escrituras.[1]

          A nossa salvação, portanto, não repousa na qualidade ou intensidade de nossa fé, mas, na eficácia da obra expiatória e redentora de Cristo. O que nos salva não é a nossa fé, mas, o fato dela estar depositada em Cristo, o nosso Senhor.[2]

          O Catecismo Menor(1647) na questão 86, assim define: “Fé em Jesus Cristo é uma graça salvadora, pela qual o recebemos e confiamos só nele para a salvação, como ele nos é oferecido no Evangelho”.                                      

  2) Elementos da fé

                                                                                                             A fé salvadora não é simplesmente emocional, como por vezes somos tentados a pensar, antes ela é constituída de três elementos somatórios, a saber:

                                                                                  Caracteriza-se pela convicção racional de que aquilo que a Palavra diz é verdade, porque faz sentido. Aqui nós temos o conteúdo da fé. Fé não é uma crença vazia ou divorciada das Escrituras. Portanto, a razão não é desprezada em nossa relação com Deus. O conhecimento das realidades espirituais passa por nossa mente.                                                                                                  

A) Elemento intelectual (notitia)

Vejamos alguns textos;

Jo 2.23-2423 Estando ele em Jerusalém, durante a Festa da Páscoa, muitos, vendo os sinais que ele fazia, creram no seu nome;  24 mas o próprio Jesus não se confiava a eles, porque os conhecia a todos.

Jo 3.31-3331 Quem vem das alturas certamente está acima de todos; quem vem da terra é terreno e fala da terra; quem veio do céu está acima de todos  32 e testifica o que tem visto e ouvido; contudo, ninguém aceita o seu testemunho.  33 Quem, todavia, lhe aceita o testemunho, por sua vez, certifica que Deus é verdadeiro.

Jo 20.30-31: 30 Na verdade, fez Jesus diante dos discípulos muitos outros sinais que não estão escritos neste livro.  31 Estes, porém, foram registrados para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome.

At 8.13: 13 O próprio Simão abraçou a fé; e, tendo sido batizado, acompanhava a Filipe de perto, observando extasiado os sinais e grandes milagres praticados. 

          At 11.13-14:  13 E ele nos contou como vira o anjo em pé em sua casa e que lhe dissera: Envia a Jope e manda chamar Simão, por sobrenome Pedro,  14 o qual te dirá palavras mediante as quais serás salvo, tu e toda a tua casa.

          Onde não há uso da razão, não há espaço para o exercício da verdadeira fé.[3] A fé, portanto, envolve necessariamente a consciência de quem é Jesus Cristo. A [W71] [HC2] fé vem pelo ouvir, portanto, envolve compreensão (Rm 10.17).[4]

          Este foi um assunto bastante enfatizado pelos Reformadores. A igreja romana ensinava que os crentes comuns por não entenderem a doutrina, precisavam apenas crer na igreja entregando-se aos seus ensinamentos.

Calvino (1509-1564) combateu de forma contundente o conceito “fé implícita”[5] – fortemente enfatizado na teologia católica –,[W73]  declarando que a nossa fé deve ser “explícita”. No entanto, Calvino ressalta que devido ao fato de que nem tudo foi revelado por Deus, bem como à nossa ignorância e pequenez espiritual, muito do que cremos permanecerá nesta vida de forma implícita.

Depois de extenso comentário, Calvino nos diz:

Certamente não nego (de quanta ignorância somos cercados!) que muitas coisas nos são agora implícitas, e ainda o terão de ser até que, deposta a massa da carne, nos tenhamos achegado mais perto à presença de Deus, coisas essas em que nada parece mais conveniente do que suspender nosso juízo, determinando de vez que é mais conveniente que nossa vontade permaneça unida à Igreja. Com este pretexto, porém, é o cúmulo do absurdo adornar com o nome de à ignorância temperada com humildade. Ora, a fé jaz no conhecimento de Deus e de Cristo [Jo 17.3], não na reverência à Igreja.[6](Grifos meus).

                                                                                                           

B) Elemento emocional (assensus)

                                                                                 Se a fé não é somente emocional, também não é apenas uma questão racional. Ela envolve a nossa razão e as nossas emoções. Não basta que eu reconheça racionalmente a Cristo como o meu Senhor e Salvador, é necessário que eu dê crédito a Ele, creia nele como o meu Salvador e Senhor.

Este ato de crer envolve todo o nosso ser, passando a viver intensamente a realidade dessa fé.[W74]  No entanto, essa emoção sincera, mas não duradoura, tende a logo se extinguir:

Sl 106.11-13: 1 As águas cobriram os seus opressores; nem um deles escapou.  12 Então, creram nas suas palavras e lhe cantaram louvor.  13 Cedo, porém, se esqueceram das suas obras e não lhe aguardaram os desígnios.

Ez 33.31-32:   31 Eles vêm a ti, como o povo costuma vir, e se assentam diante de ti como meu povo, e ouvem as tuas palavras, mas não as põem por obra; pois, com a boca, professam muito amor, mas o coração só ambiciona lucro.  32 Eis que tu és para eles como quem canta canções de amor, que tem voz suave e tange bem; porque ouvem as tuas palavras, mas não as põem por obra.

Mt 13.20-21: 20 O que foi semeado em solo rochoso, esse é o que ouve a palavra e a recebe logo, com alegria;  21 mas não tem raiz em si mesmo, sendo, antes, de pouca duração; em lhe chegando a angústia ou a perseguição por causa da palavra, logo se escandaliza.

Jo 5.35:  35 Ele era a lâmpada que ardia e alumiava, e vós quisestes, por algum tempo, alegrar-vos com a sua luz.

Jo 8.30-31:  30 Ditas estas coisas, muitos creram nele.  31 Disse, pois, Jesus aos judeus que haviam crido nele: Se vós permanecerdes na minha palavra, sois verdadeiramente meus discípulos.

At 8.5-8:  5 Filipe, descendo à cidade de Samaria, anunciava-lhes a Cristo.  6 As multidões atendiam, unânimes, às coisas que Filipe dizia, ouvindo-as e vendo os sinais que ele operava.  7 Pois os espíritos imundos de muitos possessos saíam gritando em alta voz; e muitos paralíticos e coxos foram curados.  8 E houve grande alegria naquela cidade.

                                                                                                           

C) Elemento volitivo (fiducia)

                                                                          Aqui já não há apenas uma convicção racional e emocional de que Jesus é o Salvador. Há o desejo do coração tocado e transformado pelo Espírito, de receber a Cristo como o seu Senhor, entregando-se totalmente a Ele.[7] Neste ponto, passamos a confiar totalmente nele. Assim, somente assim, a fé se consuma de fato. Há aqui confiança, dependência e afeição.[8]

          Berkhof (1873-1957), coloca o nosso tema deste modo:

A fé não é apenas uma questão de intelecto, nem de intelecto e sentimentos combinados: também é questão de vontade, determinando a direção da alma, um ato da alma que parte rumo ao seu objeto e dele se apropria. Sem esta atividade, o objeto da fé, que o pecador reconhece como verdadeiro e real, e como inteiramente aplicável às suas necessidades presentes, permanece fora dele.[9]

          Concluindo, podemos dizer que nenhum dos três elementos ou mesmo a combinação de dois deles é suficiente. A fé salvadora envolve os três, compondo um ato ativo de entrega sem reservas a Cristo (Rm 10.9,10; Mt 11.28,29; Jo 1.12; 8.12; 14.1; 16.31).[10] Somos salvos quando depositamos confiadamente a nossa fé em Jesus Cristo, tendo exclusivamente nele a certeza da nossa salvação, buscando, por graça, seguir as suas orientações.

          Wollebius (1586-1629) resume esses três aspectos: Conhecimento (notitia), assentimento (assensos) e confiança (fiducia), da seguinte maneira:

Conhecimento é o entendimento daquilo que é necessário para a salvação. Assentimento significa que tudo o que é ensinado pela palavra de Deus é firmemente crido por ser verdadeiro. Confiança é aquele [aspecto da fé] pelo qual cada um dos fiéis aplica as promessas evangélicas a si mesmo. (…) A confiança é peculiar a esta última [fé salvadora].[11]

Maringá, 21 de maio de 2021.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]“Somos reconhecidos como filhos de Deus, não por conta de nossa própria natureza, nem por nossa própria iniciativa, mas porque o Senhor nos gerou voluntariamente (Tg 1.18), ou seja, com base em seu amor imerecido. Daqui se deduz, primeiramente, que a fé não provém de nossa própria ação, senão que é fruto da regeneração espiritual. Pois o Evangelista afirma que ninguém pode crer, a não ser que seja gerado por Deus. Daqui se depreende que a fé é um dom celestial. Além do mais, a fé não é um mero e frio conhecimento, porquanto ninguém pode crer se porventura não for renovado pelo Espírito de Deus” (João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, (Jo 1.13), p. 47-48).

[2] Veja-se: Timothy Keller, Igreja centrada, São Paulo: Vida Nova, 2014, p. 44.

[3]  Veja-se: François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 2, p. 699-700.

[4] Veja-se: Thomas R. Schreiner; M. Barret, Somente pela fé: a doutrina da justificação, São Paulo: Cultura Cristã, 2017, p. 261.

[5] Que chama de “espectro papista” (João Calvino, Exposição de Romanos, São Paulo: Paracletos, 1997, (Rm 10.17), p. 375) e, “fé forjada e implícita inventada pelos papistas. Pois por fé implícita eles querem dizer algo destituído de toda luz da razão” (João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (Tt 1.1), p. 299), que “separa a fé da Palavra de Deus” (J. Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 10.17), p. 375). Veja-se também: João Calvino, Gálatas, São Paulo: Paracletos, 1998, (Gl 1.2), p. 25. “A fé implícita que, com um cego assentimento, crê no que a igreja romana acredita e não tem valor. A fé não pode existir sem o conhecimento” (Johannes Wollebius, Compêndio de Teologia Cristã,  Eusébio, CE.: Peregrino, 2020, p. 240). Para um estudo mais detalhado da questão da “fé implícita” e “fé explícita”, vejam-se: Hermisten M.P. Costa, Raízes da Teologia Contemporânea, 2. ed.  São Paulo: Cultura Cristã, 2018; Hermisten M.P. Costa, João Calvino 500 anos, São Paulo: Cultura Cristã, 2009.

[6]João Calvino, As Institutas, (2006).III.2.3. (Veja-se também III.2.5ss).

[7] Veja-se: François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 2, p. 673-676.

[8] Cf. R.C. Sproul, Somos todos teólogos: uma introdução à Teologia Sistemática, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2017, p. 345-346.

[9]L. Berkhof, Teologia Sistemática, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1990, p. 508. Strong escreveu: “Precisamos dar ênfase a este elemento ativo na fé salvadora para que os homens não adquiram a noção de que a simples aquiescência indolente no plano de Cristo os salvará. Fé não é simples receptividade. Ela se dá a si mesma assim como recebe Cristo. Não é mera passividade; é também um compromisso próprio. Como toda a aquisição do conhecimento é ativa, e é preciso haver atenção se quisermos aprender, assim também toda a aquisição vinda de Cristo é ativa e é preciso haver uma doação inteligente  bem como aceitação”  (A.H. Strong, Teologia Sistemática, São Paulo: Hagnos, 2003, v. 2, p. 562).

[10]Jo 1.12: Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que creem no seu nome.

João 8.12: De novo, lhes falava Jesus, dizendo: Eu sou a luz do mundo; quem me segue não andará nas trevas; pelo contrário, terá a luz da vida.

João 14.1: Não se turbe o vosso coração; credes em Deus, crede também em mim.

João 16.31: Respondeu-lhes Jesus: Credes agora?

[11] Johannes Wollebius, Compêndio de Teologia Cristã,  Eusébio, CE.: Peregrino, 2020, p. 240.


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