“Eu lhes tenho dado a tua Palavra” (Jo 17.1-26) (135)

c) Louvando a Deus 

Sabemos que somos postos sobre a terra para louvar a Deus com uma só mente e uma só boca, e que esse é o propósito de nossa vida. – João Calvino (1509-1564).[1]

Os hinos e salmos que são cantados na adoração são músicas espirituais, isto é, elas são as músicas do Santo Espírito (Atos 4.25; Ef 5.19). – Hughes Oliphant Old (1933-2016).[2]

Quando Ele [Deus) nos concede talentos, incluindo o talento musical, Ele nos concede, não para que se transforme em ídolo, mas para ser usado para sua glória” – Frank E. Gaebelein (1899-1983).[3]

 O mesmo pode ser dito com respeito à adoração pública: “E estavam sempre no templo, louvando a Deus (Lc 24.53). A Igreja expressava a sua fé e gratidão louvando a Deus (At 2.47; Ef 5.18-20; Cl 3.16). O cântico deve ser uma expressão de nossa oração conforme ensinada nas Escrituras.

Bonhoeffer (1906-1945) escreveu com sensibilidade: “O saltério é a oração da comunidade de Jesus Cristo; ele deve acompanhar o  Pai Nosso”.[4]

A música, quer instrumental, quer vocal ou de ambas as formas sempre esteve presente em todas as expressões de cultura humana. “Não há povo antigo no qual não se encontrem manifestações musicais. (…) não existe linguagem mais instintiva, mais espontânea do que a música”, escreve Alaleona (1881-1928).[5]

Música como ingrediente de todos os cultos

A música sempre fez parte dos cultos pagãos (Ver: Dn 3.4-7). Entendia-se que os deuses gostavam de música, havendo, portanto, uma conexão entre a adoração e a música.[6] A flauta era um dos instrumentos populares, inclusive nos cultos.[7] Sendo facilmente confeccionada. Em geral, estava associada à alegria (Jó 21.12; 30.31; Sl 149.3; Is 30.29; Mt 11.17; Lc 7.32; Ap 18.22),[8] ainda que não especificamente (Mt 9.23).[9]

Durante os quarenta dias em que Moisés e Josué estiveram no monte Horebe, o povo de Israel se corrompeu, financiando a confecção de um bezerro (touro ainda jovem?) de ouro para que se transformasse em seu deus.[10] Vemos aqui a tentativa humana, em desespero despropositado, de criar os seus próprios deuses, atribuindo-lhes virtudes e poder (Ex 32.1-4).

Ainda que Arão tentasse impiamente associar a adoração pagã com a genuína adoração ao Senhor, havia elementos distintos (Ex 32.5-8). Quando Moisés e Josué descem do monte Horebe, ouvem cantos; ambos não souberam identificar. Se Moisés não soube, muito menos Josué. Este até sugeriu tratar-se de alarido de guerra, certamente que algum elemento no ritmo parecia como de guerra. Moisés, porém, mais experiente, retrucou: não é cântico de vencedores nem de vencidos; é alarido dos que cantam. O quê exatamente era, eles não sabiam, mas era algo diferente. (Ex 32.17-20).

            Notemos que a música por eles entoada não era algo que se harmonizasse com o cântico religioso de Israel e mesmo com o cântico conhecido [Moisés certamente conhecia bem os ritmos egípcios e judeus (At 7.22)]. Havia algo de estranho naquilo tudo.

            Quando chegaram ao local, o povo estava adorando ao bezerro de ouro com muita alegria, leia-se: orgia (Ex 32.6,19, 25; At 7.41). Observemos que há uma diferença fundamental na forma como cantavam, pois Moisés poderia falar: olhe, isso parece com música de Igreja – cometendo aqui um anacronismo –, não dá para entender a letra por causa da distância, mas é um cântico de Igreja.

            O cântico sacro é facilmente identificável. No entanto, nada fora identificado por ambos. Josué até pensou tratar-se de canto de guerra. Devia ser algo alegre, ritmado, pois para guerra canta-se algo que impulsione, estimule para uma batalha. Recordo-me do testemunho do guitarrista Jimi Hendrix (1942-1970), na década de 60, na revista Life (03/10/69), falando sobre o efeito hipnotizante do rock, a batida era constante para que facultasse o sujeito ser hipnotizado por aquilo, e quando ele é dominado por aquela batida fica mais fácil assimilar a mensagem; no rock, a força está na batida.

            O fato é que a fé judaico-cristã sempre foi caracterizada pela música. Em momentos de alegria e tristeza, a música com a suas especificidades pontilhavam as experiências do povo (Mt 26.30; At 16.25; Rm 15.9; 1Co 4.15; Ef 5.19; Hb 2.12; Tg 5.13).[11]

            Plínio, o jovem (c. 62-113 AD) foi enviado pelo Imperador Trajano (53-117 AD)[12] à Ásia Menor para sanar um problema existente: o número de cristãos tinha aumentado tanto, que os templos pagãos estavam quase que totalmente desertos e, consequentemente, tais cristãos não veneravam a imagem do imperador, nem adoravam os deuses romanos.

            Para resolver tal questão, Plínio dispunha de poderes amplos, podendo até mesmo usar da força se julgasse necessário; o que de fato fez. Contudo, havia alguns casos a respeito dos quais ele preferiu escrever ao Imperador Trajano, a fim de saber como solucioná-los. E através de uma dessas cartas, escrita por volta do ano 112 AD, vamos saber que os cristãos, durante o interrogatório, disseram que: “…. sua culpa se reduzia apenas a isto: em determinados dias costumavam comer antes da alvorada e rezar responsivamente hinos a Cristo, como a Deus….”.[13] Notamos aqui, que o culto era realizado pela manhã, cantavam-se hinos e, tinha dias fixos, que geralmente se interpreta como sendo o domingo.

            No IV século, houve um entusiasmo sem precedente entre alguns Pais da Igreja, tais como, Basílio (c. 330-379), Crisóstomo (347-407) e Ambrósio (340-397), quanto ao cântico de Salmos na vida cotidiana.[14]

            Depois do IV século – mesmo Ambrósio  tendo introduzido o costume do cântico congregacional na Igreja de Milão, seguindo o modelo do Oriente[15] –, o cântico congregacional perdeu a sua ênfase; a música foi confiada a um coro de sacerdotes, sendo a congregação silenciada, “os leigos eram mais testemunhas de um milagre que participantes do ato misericordioso e redentor de Deus”, descreve Pearce.[16] O cântico congregacional passou a ser permitido apenas por ocasião do Natal e da Páscoa.[17]

Maringá, 30 de agosto de 2020.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]João Calvino, O Livro dos Salmos,São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1. (Sl 6.5), p. 129.

[2] Hughes Oliphant Old, Worship: That Is Reformed According to Scripture, Atlanta: John Knox Press, 1984, p. 6.

[3] Frank E. Gaebelein, The Christian and Music. In: Leland Raken, ed., The Christian Imagination: essays on literature and the arts, 2. ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1986, p. 443.

[4] Dietrich Bonhoeffer, Orando com os salmos, Curitiba, PR.: Editora Encontrão, 1995, p. 15.

[5]Domingos Alaleona, História da Música, São Paulo: Ricordi, (1972), edição revista e atualizada pelo tradutor, João C. Caldeira Filho, 1984, p. 38. Isso não significa que concordemos com o autor em sua proposição de que “a linguagem musical, em forma rudimentar, precedeu a linguagem propriamente dita” (p. 38) e o seu espírito antirreligioso em geral. Na realidade, as Escrituras nos dizem que após Deus criar o homem e o colocar no jardim do Éden para o cultivar e guardar (Gn 2.15), incumbiu-lhe de dar nome aos animais (Gn 2.19-20).

[6] Veja-se: Johannes Quasten, Music & Worship in Pagan & Christian Antiquity, Washington, D.C.: National Association of Pastoral Musicans, 1983, p. 1ss. e Parcival Módolo, “Impressão” ou “Expressão” O Papel da Música na Missa Romana Medieval e no Culto Reformado: In: Teologia e Vida, São Paulo: Seminário Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição, 1/1 (2005), p. 114.

[7]Cf. Johannes Quasten, Music & Worship in Pagan & Christian Antiquity, p. 2ss.

[8] “Visto que as flautas eram muito fáceis de se fazer, e podiam ser construídas de uma variedade de materiais – juncos, canas, ossos etc. – elas eram muitos populares. Segundo os quadros da Antiguidade o revelam, tais flautistas eram amiúde acompanhados de palmas” (William Hendriksen, Mateus, São Paulo: Cultura Cristã, 2001, v. 1, (Mt 9.23), p. 612). Para uma visão panorâmica do uso de flauta e suas variações, veja-se: Stanley Sade, ed. Dicionário Grove de Música: Edição concisa, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1994, p. 331-333

[9] “Tendo Jesus chegado à casa do chefe e vendo os tocadores de flauta e o povo em alvoroço, disse: Retirai-vos, porque não está morta a menina, mas dorme….” (Mt 9.23-24).

[10] Em Ex 32.1 e 4, a palavra “deus” é usada no plural na forma pagã e politeísta. Foram esses deuses que “tiraram” o povo da terra do Egito (Ex 32.6).

[11] Quanto ao uso dos Salmos nas reuniões familiares, veja-se o excelente artigo de Cardoso: Dario Araújo Cardoso, O Cântico de Salmos na Igreja Cristã até a Reforma: In: Ciências da Religião: História e Sociedade, São Paulo: Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie, (9/1, /2011): 26-51. Ao que parece, nos primeiros séculos, a prática dos cânticos nas reuniões familiares pagãs e em seus cultos, se constituiu, de certa forma, em um obstáculo à música na igreja.  Veja-se:  Johannes Quasten, Music & Worship in Pagan & Christian Antiquity, Washington, D.C.: National Association of Pastoral Musicans, 1983, p. 121ss.; 125ss.

[12] Trajano, no ano 107, crucificou a Simão, irmão de Jesus, bispo de Jerusalém e, posteriormente (110 AD), lançou a Inácio (30-110 AD), Bispo de Antioquia, às feras em Roma.

[13]Plínio, Epístola ao Imperador Trajano,X.96. In:Henry Bettenson, Documentos da Igreja Cristã,São Paulo: ASTE., 1967, p. 29; Eusebio de Cesarea, Historia Eclesiástica, Madrid: La Editorial Catolica, S.A. (Biblioteca de Autores Cristianos, Vols. 349 e 350), IV.23.11 e IV.26.2. Veja-se comentário do assunto In: J.B. Lightfoot, ed. and transl.The Apostolic Fathers, Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1989, II/2, p. 129-130; Philip Schaff, History of the Christian Church,Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1996, v. 2, p. 201-205.

[14] Cf. Calvin R. Stapert, A New Song for an Old World: Musical Thought in the Early Church, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 2007, p. 150ss.; Dario Araújo Cardoso, O Cântico de Salmos na Igreja Cristã até a Reforma: In: Ciências da Religião: História e Sociedade, São Paulo: Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie, (9/1, /2011): 26-51. Para um levantamento de representativos documentos primários, veja-se; James W. McKinnon, ed.  Music in Early Christian Literature, Cambridge, UK.: Cambridge University Press, © 1987,  1989 (Reprinted), 192p.

[15] Cf. Agostinho, Confissões,São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 6), 1973, IX.7.15. p. 178-179.

[16]Gordon H.M. Pearce, El Culto Medieval: In: R.G. Turnbull, ed. ger. Diccionario de la Teología Práctica, Grand Rapids, Michigan: SLC., 1977, p. 29; Donald P. Hustad, Jubilate! A Música na Igreja, São Paulo: Vida Nova, 1986, p. 109; Henriqueta R.F. Braga, Música Sacra Evangélica no Brasil, Rio de Janeiro: Livraria Kosmos Editora, (1961), p. 19; R.G. Rayburn, Adoração na Igreja: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1988-1990, v. 1, p. 23.

[17]Henriqueta R.F. Braga, Música Sacra Evangélica no Brasil, p. 19

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